Os 594 congressistas assumiram nos últimos dez anos um poder inédito de manejo individual das verbas do Orçamento federal, mas os problemas na aplicação desse dinheiro se mantêm: falta de transparência, de critérios estruturantes, desperdício, obras malfeitas, favorecimento político e suspeitas de corrupção.
A estimativa para 2023 é de R$ 46,3 bilhões para as chamadas emendas parlamentares, o que representa quase 30% de tudo o que o governo federal tem para uso livre.
O valor soma a verba que foi rebatizada com o fim das emendas do relator, mas mantém critério político para distribuição.
Com isso, cada um dos 513 deputados federais tem o poder de direcionar ao menos R$ 32 milhões do orçamento para seus redutos eleitorais. Já os 81 senadores, R$ 59 milhões.
Esses valores —que representam o dobro ou o triplo do que tinham há dez anos, apesar de a inflação no período ser de cerca de 70%— são ainda maiores caso o parlamentar exerça alguma influência no Congresso ou sobre o governo.
Como a Folha e outros veículos de imprensa mostraram em diversas reportagens nos últimos anos, emendas estão no centro de suspeitas de corrupção com verba da saúde e para pavimentação, além de serem usadas para obras malfeitas e cuja aplicação deixa de lado critérios técnicos e estruturantes, para privilegiar interesses paroquiais e eleitoreiros.
Locais com escassez de água no sertão nordestino, por exemplo, foram deixados de lado na entrega de caixas d’água no ano passado, enquanto equipamentos estão estocados em redutos de líderes do Congresso.
Líder do centrão, o grupo que encabeça a pressão pela elevação do dinheiro federal para as emendas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é um defensor público do mecanismo, sob o argumento de que os parlamentares são os maiores conhecedores das necessidades dos grotões. Ele diz que basta coibir eventuais irregularidades.
“Eu sempre defendi emenda parlamentar e continuarei defendendo, porque ninguém conhece mais o Brasil do que o parlamentar”, disse recentemente o presidente da Câmara, em entrevista à Folha.
A realidade, porém, é repleta de exemplos que vão no sentido contrário a essa afirmação.
Destino de bilhões em emendas, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) acumula suspeitas de corrupção e registros de uso inadequado da verba federal.
A Folha percorreu recentemente cinco estados do Nordeste e flagrou distorções na entrega de caixas d’água em regiões secas, uma das funções da companhia. O dinheiro para a compra dos equipamentos foi drenado pelas emendas, mas há moradores esquecidos pelas indicações parlamentares.
Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que 201 dos 228 municípios com prioridade alta ou muito alta (88%) não receberam nenhum equipamento.
No governo Bolsonaro, a companhia se afastou da vocação histórica de promover projetos de irrigação e passou a escoar verbas de emendas em obras de pavimentação e maquinários. Lula (PT) manteve o comando da Codevasf em troca de apoio no Congresso.
A Polícia Federal e órgãos de controle ainda apuram se verba da estatal foi desviada. Um dos inquéritos avalia se o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), foi beneficiado com o dinheiro de obras de pavimentação executadas por empresa suspeita de corrupção. Juscelino nega qualquer irregularidade.
No início do ano, o TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a cobrar que a Codevasf trouxesse a público “casos de sucesso” em licitações de pavimentação da estatal.
A determinação constou em acórdão no qual os auditores do tribunal mostraram irregularidades em vários casos e situações em que a estatal colocou asfalto até em ruas que já estavam pavimentadas.
A CGU (Controladoria Geral da União) já havia flagrado um combo de irregularidades em alguns estados, incluindo asfalto que esfarela como farofa e forma crateras, além de maquiagem na prestação de contas e indícios de superfaturamento.
A Codevasf cresceu na gestão de Jair Bolsonaro (PL) e expandiu seu foco e sua área de atuação —mas sem planejamento e com controle precário de gastos, distorções mantidas sob Lula.
Ao mesmo tempo, a estatal se transformou num dos principais instrumentos para escoar a verba recorde das emendas, distribuídas a deputados e senadores com base em critérios políticos, em especial do centrão.
Em 2021, por exemplo, a Folha foi à região de Petrolina (PE), local de destino de ao menos R$ 200 milhões em emendas para obras de pavimentação destinadas pelo então líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).
A cidade era administrada por um de seus filhos, Miguel Coelho.
Na cidade, as obras ganharam apelido de farofa ou Sonrisal, em referência ao esfarelamento dos trechos pavimentados.
O pavimento usado derretia com o forte calor e grudava nos calçados dos moradores. Quando secava e se quebrava em pedaços, começava a esfarelar.
A cronologia do fortalecimento do Congresso no manejo do orçamento federal começa no governo Dilma Rousseff (PT), quando o grupo liderado pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha impôs derrotas em série ao governo.
Antes de 2015, a execução das emendas parlamentares era uma decisão política do governo, que poderia ignorar a destinação apresentada pelos congressistas.
Por meio da emenda constitucional 86, de 2015, estabeleceu-se a execução obrigatória das emendas individuais, o chamado orçamento impositivo, com algumas regras.
Foi sob Bolsonaro que os valores apresentaram a maior expansão.
Ele não só abriu mão de bilhões de reais para conseguir formar uma base parlamentar. Ele também deu uma autonomia completa para a cúpula do Congresso decidir para onde todo esse montante seria destinado —os ministros, muitas vezes, apenas recebiam a notificação da decisão do deputado ou senador.
O valor destinado às emendas se multiplicou. Passou de cerca de R$ 10 bilhões anuais para R$ 46 bilhões em 2020.
A cifra das emendas chegou a representar mais da metade da verba discricionária federal prevista, ou seja, dos recursos que não estão comprometidos com salários e outras obrigações e podem ser usados em obras e investimentos públicos.
Lula, durante a campanha eleitoral, criticou esse modelo de negociação com o Congresso e prometeu que os acordos não ficariam às escuras. Mas, quando assumiu a Presidência da República, manteve a falta de transparência e privilegia cidades de deputados e senadores mais poderosos.
Em 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou inconstitucional a emenda de relator. A verba foi rebatizada e transferida ao orçamento dos ministérios, mas o governo Lula driblou a decisão e manteve o uso político dos recursos —há R$ 9,8 bilhões reservados em 2023 para esse tipo de negociação.
Assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), Alessandra Cardoso afirma que o Legislativo não observa prioridades regionais e políticas públicas ao direcionar os recursos. “Isso distorce completamente a execução orçamentária do governo federal”, diz.
Para o próximo ano, o Congresso já discute um novo formato que continuará fortalecendo a cúpula das duas Casas e deverá reduzir ainda mais o poder de Lula sobre esses recursos.