Em uma votação acachapante, por 11 votos a 0, o Supremo Tribunal Federal (STF) bateu o martelo: as Forças Armadas não têm atribuição de mediar o conflito entre os Poderes. Qualquer interpretação da Constituição que coloque os militares como um “poder moderador” foi enterrada pelos ministros, em uníssono.
Para o jurista Ives Gandra da Silva Martins, a decisão deixa uma lacuna. “Como o Legislativo poderá zelar pela sua competência?”, questiona. “O Congresso não tem nenhuma força contra o Poder Judiciário.”
Logo após a Assembleia Constituinte, em 1988, Ives Gandra escreveu 15 volumes comentados do texto constitucional. A interpretação sobre o artigo 142 da Constituição, que regulamenta a atuação das Forças Armadas, caiu nas graças dos bolsonaristas anos depois. O dispositivo passou a ser visto por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro como a grande brecha jurídica para justificar uma intervenção militar contra o Poder Judiciário.
A Polícia Federal até encontrou, no celular do tenente-coronel Mauro Cid, documentos sobre a obra de Ives Gandra, acompanhados de sugestões golpistas.
Ao Estadão, ele afirma que houve uma “distorção monumental” do que escreveu, mas reitera que, em sua avaliação, o Congresso deveria ter a possibilidade de acionar as Forças Armadas em caso de invasão de suas competências legislativas pelo Poder Judiciário. “Jamais para descontinuar Poderes ou para dar um golpe de Estado.”
Questionado sobre as investigações do inquérito do golpe, que colocam o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos no centro de articulações para anular o resultado das eleições de 2022 e se manter no poder, o jurista evita opinar.
“Eu não vi os autos, só conheço as notícias de jornal. Nesse particular, eu não tenho estudos antecipatórios nem faço previsões futuras.”
Veja a entrevista completa:
Concorda que o STF enterra a sua interpretação sobre o artigo 142?
Quando eu fui interpretar o artigo 142, eu me pus o seguinte problema: o artigo 49, inciso 11, da Constituição declara que cabe ao Congresso Nacional zelar pela sua competência legislativa perante os outros Poderes (Executivo e Judiciário). Eu considerei que a forma de fazer isso, em um eventual conflito, seria o Congresso pedir que as Forças Armadas fossem o poder que acalmasse o conflito. Jamais para descontinuar Poderes ou para dar um golpe de Estado. Até porque, pela própria característica da Constituição, as Forças Armadas são um poder que tem a tríplice função: defender a pátria, garantir as instituições e garantir a lei e ordem por solicitação de qualquer dos Poderes. Houve uma distorção monumental do que eu escrevi. A minha interpretação jamais poderia ser usada para um golpe de Estado. É só ler o que eu escrevi.
Agora qual é a decisão, hoje, do Supremo Tribunal Federal? É que mesmo que o Supremo invada a competência do Poder Legislativo, não cabe ao Poder Legislativo zelar pela sua competência, porque a última palavra será sempre do Poder Judiciário. É evidente que eu vou me subordinar à interpretação oficial do Supremo, mas eu continuo perguntando: como encontrar uma solução para cumprir o que está no artigo 49 se houver invasão da competência legislativa, se o Supremo Tribunal Federal legislar no lugar do poder legislativo, como já aconteceu?
Mas os Poderes não vão se equilibrando na nossa jovem democracia? Existem mecanismos de controle. Se cabe ao STF a revisão constitucional, o Senado tem a atribuição, por exemplo, de aprovar as indicações do presidente ao tribunal. Também tem o poder de abrir processo de impeachment contra os ministros. Não seria mais interessante seguir pelo caminho institucional do que envolver as Forças Armadas na mediação do conflito entre os Poderes?
Eu nunca pretendi envolver as Forças Armadas. Eu sempre defendi que era uma hipótese quase impossível. Como eu tinha que interpretar a Constituição, em 1997, eu tinha que encontrar uma solução para garantir a lei e a ordem. Se a última palavra for sempre do Supremo Tribunal Federal, qual é o instrumento que o Congresso tem para zelar por sua competência? Essa é a pergunta que eu me fiz na época e que, evidentemente, a decisão do STF não vai solucionar. Eu tenho uma pergunta não solucionada, mas na prática eu jamais queria que houvesse uma participação das Forças Armadas. O que o Supremo está dizendo hoje é que, se eles invadirem a competência do Congresso, quem vai dar a última palavra são eles que representam a interpretação do Direito no Brasil.
O senhor já disse que sua interpretação sobre o papel das Forças Armadas foi distorcida. O julgamento do STF não ajuda a desfazer esse mal-entendido?
Acho que o julgamento do STF, à essa altura, esclarece a interpretação oficial que eles dão ao artigo 142. O Supremo deixou claro: se eles invadirem, com o poder de cautela, eles têm o direito de entender que não estão invadindo e o Congresso não tem nenhuma força contra o Poder Judiciário. É evidente que o Supremo decidindo sobre isso, passa a ser a interpretação oficial. Não foi a primeira vez que houve uma interpretação contrária à minha e possivelmente não vai ser a última. No campo do Direito, isso é normal.
Então, o senhor avalia que o Congresso sai enfraquecido?
Se o Supremo invadir a competência do legislativo, eu pergunto ao Supremo Tribunal Federal: como o legislativo poderá zelar pela sua competência? Qual é o instrumento que o legislativo pode utilizar, com base o artigo 49, inciso 11, para zelar pela sua competência perante o Judiciário? Não estou contestando a decisão, eu estou colocando uma pergunta que não vi solucionada nos votos.
Em junho de 2023, quando a Polícia Federal encontrou um questionário respondido pelo senhor no celular do Mauro Cid, nós conversamos e o senhor disse que não havia a menor chance de um golpe. No entanto, as investigações tem revelado articulações concretas para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder mesmo após a derrota nas eleições. Depoimentos dos próprios ex-comandantes do Exército e da FAB vão nesse sentido. O senhor mantém a posição?
Eu não fui procurado por nenhum desses militares. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, eu falei quatro vezes com ele. Foram quatro conversas rápidas. Jamais fui questionado sobre o artigo 142.
Minimizar a possibilidade de um golpe não enfraquece a possibilidade de punição aos envolvidos em articulações golpistas? O senhor acredita que eles devem ser responsabilizados?
Eu jamais examinei processos de outras pessoas antecipando julgamentos que só o Poder Judiciário pode dar. À essa altura, eu não julgo absolutamente aquilo que está na alçada dos magistrados decidirem. Eles é que têm a prova. Eu não vi os autos, só conheço as notícias de jornal. Nesse particular, eu não tenho estudos antecipatórios nem faço previsões futuras.