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sábado 14 de maio de 2022 às 12:30h

Confusão na política da Irlanda do Norte faz Reino Unido e União Europeia reviverem atrito do ‘Brexit’

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Quando o nacionalista Sinn Féin foi confirmado, no último sábado (7), como o maior partido da Irlanda do Norte, especialistas falaram em abalo sísmico pela possibilidade, agora menos remota, de que as duas Irlandas possam se reunificar depois de cem anos. Os primeiros tremores, porém, foram causados por outro velho conhecido na região –o brexit.

Quase seis anos após o referendo e mais de dois anos depois da saída do Reino Unido da União Europeia (UE), a disputa por 90 cadeiras da Assembleia regional de Belfast fez reacender a troca de farpas entre autoridades de Londres e Bruxelas, com o risco de que seja detonada uma guerra comercial entre as partes no meio de uma guerra de verdade em que ambas são aliadas.

A escalada, na última semana, começou logo após a vitória do Sinn Féin, que levou 27 cadeiras e se tornou, pela primeira vez na história, a maior força política do país, empurrando para o segundo lugar o Partido Unionista Democrático (DUP), pró-Reino Unido. Na prática, uma alternância simbólica, porque os dois precisam governar o país juntos.

Pelas regras do Acordo de Belfast, de 1998, o Acordo da Sexta-Feira Santa, as duas legendas são obrigadas a compartilhar o poder. O mais votado indica o primeiro-ministro e o segundo, o vice -e ambos têm o mesmo status. O tratado tinha como intenção pôr fim a décadas de conflitos violentos entre unionistas e nacionalistas.

O DUP, no entanto, recusa-se a formar o governo enquanto a parte do brexit que envolve o país não for revisada. O chamado Protocolo da Irlanda do Norte procura amenizar os efeitos do divórcio entre Reino Unido e UE sobre as duas Irlandas, já que a parte nordeste da ilha saiu do bloco junto com os britânicos, enquanto a do sul, a República da Irlanda, continua no mercado europeu.

Para evitar uma fronteira dura entre elas, o que poderia ser um novo elemento a desestabilizar a região, o governo britânico concordou em deslocar essa linha para o mar. O resultado é que hoje, ainda que o protocolo não tenha sido integralmente implementado, há controles alfandegários entre Irlanda do Norte e Grã-Bretanha, ambos parte do Reino Unido.

“Isso teve um impacto limitado na economia do país, mas, em termos políticos e de identidade, um efeito enorme no unionismo, porque todo o discurso deles é sobre ser parte do Reino Unido. Na visão deles, o protocolo é uma ameaça a isso”, explica a professora de sociologia política Katy Hayward, da Queen’s University, em Belfast.

Na sexta (13), O DUP deu um passo ainda mais radical. Além de bloquear a formação do Executivo, recusou-se a participar da nomeação do presidente da Assembleia, paralisando também o Legislativo.

“O protocolo é um desafio direto aos princípios que sustentaram todos os acordos alcançados na Irlanda do Norte nos últimos 25 anos”, disse Jeffrey Donaldson, líder do partido, indicando que uma solução rápida é difícil. “Tenho paciência e determinação para ver a fronteira do mar removida.” Pelas regras, unionistas e nacionalistas têm 24 semanas para chegarem a um acordo e consolidar um novo governo.

A líder do Sinn Féin, Michelle O’Neill, possivelmente futura primeira-ministra, considerou a decisão vergonhosa. “Hoje é o dia em que deveríamos formar um governo para colocar dinheiro no bolso das pessoas e começar a consertar nosso sistema de saúde. O DUP está sequestrando a população por sua bagunça do brexit”, afirmou.

O partido, assim como a maioria dos eleitos, é a favor do Protocolo da Irlanda do Norte. Segundo Hayward, 54 dos 90 assentos da Assembleia são ocupados por apoiadores do acordo pós-brexit. No referendo de 2016, a maioria da população no país (55,8%) votou pela permanência na UE.

Com a paralisação do Executivo e do Legislativo, ministros da gestão anterior seguem no cargo, mas sem poder para decisões importantes. Na imprensa britânica, a situação é descrita como um governo “zumbi”. Para Jon Tonge, professor da Universidade de Liverpool especializado na política da Irlanda do Norte, trata-se de um limbo que pode pôr em risco o próprio acordo de paz. “Os unionistas podem resistir por muito tempo, o que seria o fim do Acordo da Sexta-Feira Santa. Se não há compartilhamento de poder, qual é o objetivo dele?”

Se o impasse persistir, o Reino Unido pode convocar novas eleições, o que, segundo Tonge, não mudaria o cenário. “E o governo britânico poderia abandonar as instituições de poder compartilhado e tomar o controle sobre a Irlanda do Norte de volta para Londres, o que ninguém quer.”

Hayward destaca ainda que o protocolo não pode ser resolvido nem pelo DUP nem pelos outros partidos, por ser um assunto entre o Reino Unido e a União Europeia. É por essa razão que, nos últimos dias, o debate atravessou as águas irlandesas e chegou a Bruxelas e até em Washington –os EUA atuaram na construção do acordo de paz nos anos 1980 e 1990.

Apesar de ter negociado e aprovado o protocolo com o objetivo de preservar a estabilidade na região, o governo de Boris Johnson defende agora que ele seja revisto, pelo excesso de inspeções e burocracia sobre a circulação de mercadorias entre Irlanda do Norte e Grã-Bretanha. E porque, diante da recusa dos unionistas de formar o governo, o texto virou um risco para a paz.

Na última quinta (12), a secretária de Relações Exteriores, Liz Truss, afirmou que, se a UE demonstra não ter flexibilidade, ao governo “não restam escolhas a não ser agir”. A ameaça é romper unilateralmente e derrubar partes do protocolo, o que, segundo a imprensa local, poderia ter início já na próxima semana.

No mesmo dia, Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão Europeia, disse que o bloco sempre procurou resolver o que considera problemas legítimos –como fez com medicamentos, setor que teve regras flexibilizadas em outubro. “É preciso haver honestidade sobre o que o Reino Unido assinou. Nossa posição é consistente: não vamos renegociar”, disse. Para ele, uma ação unilateral é inaceitável.

Como resposta, a UE pode colocar em prática retaliações comerciais e ampliar controles nas fronteiras (o que poderia resultar em filas e escassez de produtos), além de acionar o Reino Unido legalmente. “Muita gente acha que o governo deveria estar concentrado no custo de vida. Muitos se perguntam: no meio de uma crise, Boris realmente quer provocar uma possível guerra comercial com a UE, que pode resultar em mais aumento de preços?”, questiona Jill Rutter, pesquisadora do think tank UK in a Changing Europe.

Esse tem sido só o primeiro estalo causado pela vitória do Sinn Féin. Especialistas dizem que os abalos sísmicos ligados ao manifesto original do partido –a reunificação da Irlanda- ainda são possíveis.

Embora não tenha sido bandeira de campanha, centrada na alta dos preços e nas deficiências do sistema de saúde, o objetivo continua na mira e passa por dois processos. Primeiro, a construção de maior apoio popular à reunificação, hoje em torno de 30%, para a convocação, pelo governo britânico, de um referendo. Depois, os resultados que o Sinn Féin pode obter nas eleições da República da Irlanda, em 2025.

“Se o partido se tornar o maior também no sul, o que parece provável hoje pelas pesquisas, então a pressão por reunificação aumenta”, avalia Tonge. “Ter se tornado o maior na Irlanda do Norte é o primeiro passo de um caminho que levaria a uma Irlanda reunida. Não é algo para o curto prazo, mas pode ser para daqui a dez anos.” A previsão na ilha é de mais terremotos.

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