Com um discurso moderado e em defesa da ciência e do Estado democrático de direito, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, abriu nesta terça-feira (1º) os trabalhos do ano judiciário. O ministro também começa a cumprir o segundo ano de sua gestão à frente da Corte.
Confira a íntegra do discurso:
“Na qualidade de Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, imbuído de profundo senso de cautela, mas genuíno otimismo, dou início ao Ano Judiciário de 2022.
Decorridos quase dois anos desde que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia da COVID-19, as medidas de enfrentamento ao coronavírus ainda ditam o nosso cotidiano e influenciam as principais decisões políticas e econômicas das nações.
Entre ciclos alternados de altos e baixos pandêmicos, temos aprendido a navegar com atenção por esse mar agitado, ora avançando, ora refluindo a marcha, e, por vezes, retrocedendo estrategicamente alguns passos para mais à frente progredirmos outros.
Nessa cadência cautelosa, caminhamos com a certeza de que estamos na direção correta, sempre guiados pelas bússolas da razão e da ciência.
Com a vacinação em massa e a progressiva ampliação do conhecimento médico sobre o vírus, a letalidade da COVID-19 tem arrefecido e, embora ainda não possamos prever quando a pandemia terá fim, especialmente com a ascensão das novas variantes, impõe-nos visualizar luz onde outrora havia apenas escuridão.
Nesse contexto, já é possível assimilar alguns impactos permanentes da pandemia em nossas vidas, desafios à humanidade e às nações, cujos efeitos representam um divisor de águas na história contemporânea e, por isso mesmo, são merecedores da nossa reflexão.
Com efeito, a conjuntura crítica iniciada em 2020 surgiu em um momento de profunda fragmentação social, de indesejável polarização política e cultural, de indiferença entre os diferentes e de déficit de diálogo social.
Tendo legado à História mais de 5 milhões de vidas perdidas no mundo, das quais mais de 600 mil no Brasil, o enfrentamento da pandemia nos fez enxergar que, para além das nossas diferenças, todos nós somos integrantes da mesma teia social e dependemos radicalmente uns dos outros não apenas para sobrevivermos, mas também para sermos livres e autônomos como cidadãos de sociedades democráticas.
Não à toa, Victor Hugo, em sua monumental obra Os Miseráveis, vaticinou que “humanidade é similaridade; todos os homens são a mesma argila”, no que foi aprofundado por Fernando Pessoa, para quem “viver é ser outro”.
Nesse contexto de interdependência, não existem vitórias individuais ou isoladas, mas decerto êxitos decorrentes de articulações coletivas bem-sucedidas.
Essa premissa nos inspira a que sempre busquemos senso de resolutividade e cooperação pragmática, seja com os nossos semelhantes, seja com os nossos diferentes.
Trata-se de postura que tem sido imperiosa para o sucesso do combate à COVID-19 e que tem proporcionado aprendizados institucionais imprescindíveis para daqui em diante melhor lidarmos com os grandes desafios da humanidade, como a pobreza extrema, a desigualdade socioeconômica, a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
Para fazermos as engrenagens de uma sociedade cada vez mais interdependente e complexa girarem como uma sinfonia perfeita, precisamos, mais do que nunca, de líderes que estejam atentos a essas transformações e que sejam capazes de engajar ações coletivas, congregar pensamentos opostos e inspirar colaboração recíproca em pequena e grande escalas.
Igualmente, nós, mulheres e homens que há décadas nos dedicamos à missão pública, devemos nos indagar diariamente como podemos nos superar para fazermos mais pelo povo brasileiro.
Ao longo desse primeiro ano de gestão, em pleno pico da pandemia, o Supremo Tribunal Federal, sempre atento aos desafios, trabalhou incansavelmente para que os cidadãos e os agentes públicos deste país internalizassem a importância do agir coletivo e da cooperação nas esferas público e privada.
Movidos por singular espírito cívico e sempre em busca do bem-estar social, proferimos colegiadamente decisões ponderadas sobre temas de alta complexidade científica e constitucional, cujo desfecho produziu impactos políticos, econômicos e sociais positivos para o Brasil, como, por exemplo, os esforços para salvar vidas e empregos.
Por essa razão, a pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal, neste primeiro semestre de 2022, continuará dedicada às agendas da estabilidade democrática e da preservação das instituições políticas do país; da revitalização econômica e da proteção das relações contratuais e de trabalho; da moralidade administrativa; e da concretização da saúde pública e dos direitos humanos afetados pela pandemia, especialmente em prol dos mais marginalizados sob o prisma social.
Deveras, este ano de 2022 também será marcado por acontecimentos relevantes para a vida política do país.
O novo ciclo eleitoral se avizinha.
É cediço que a política e as eleições despertam paixões acerca de candidatos, de ideologias e de partidos. Embora esses sejam sentimentos legítimos, a política também deve ser visualizada pelos cidadãos como a ciência do bom governo.
Por sua vez, as eleições devem ser uma oportunidade coletiva para realizarmos escolhas virtuosas e votos conscientes voltados à prosperidade nacional.
Os debates acalorados nesses momentos são comportamentos esperados em um ambiente deliberativo marcado pela pluralidade de visões.
Não obstante os dissensos da arena política, a democracia não comporta disputas baseadas no “nós contra eles”! Em verdade, todos os concidadãos brasileiros devem buscar o bem-estar da nação, imbuídos de espírito cívico e de valores republicanos.
Em sendo assim, este Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, concita os brasileiros para que o ano eleitoral seja marcado pela estabilidade e pela tolerância, porquanto não há mais espaços para ações contra o regime democrático e para violência contra as instituições públicas.
Ao contrário, o período eleitoral deve nos servir de lembrança do quão importante é cultivar os valores do constitucionalismo democrático, com a fiscalização de seu cumprimento diuturnamente.
É imperioso que não olvidemos que entre lutas e barricadas, vivemos um Brasil democrático, um Estado de Direito, no qual podemos expressar nossas divergências livremente, sem medo de censuras ou retaliações.
Nesse cenário, o império da lei, a higidez do texto constitucional brasileiro e a liberdade de imprensa reclamam estar acima de qualquer que seja o resultado das eleições.
Neste ano, também daremos sequência ao processo complexo – porém instigante – de adequação do Poder Judiciário brasileiro às agendas do nosso tempo, com enfoque à contínua digitalização dos serviços judiciais e implementação da governança de dados; à concretude às pautas do direito internacional dos direitos humanos; e ao fomento ao desenvolvimento sustentável.
No tocante ao uso de novas tecnologias, além de em 2021 o Supremo Tribunal Federal ter se tornado uma Corte Constitucional com 100% de seus serviços oferecidos na rede mundial de computadores, necessitamos ir além.
Nos próximos dias, lançaremos o Programa Corte Aberta, que revolucionará o modo como o Tribunal estrutura e disponibiliza dados públicos, tornando-os mais confiáveis, íntegros, completos e acessíveis, em concomitância com os necessários pilares da transparência, da proteção de dados pessoais e da segurança da informação.
Na mesma direção, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dará continuidade à democratização do acesso à justiça digital, precipuamente por meio do “Programa Justiça 4.0”, o qual abrange ações e projetos que empregam o uso colaborativo de novas tecnologias, como uso de inteligência artificial e a automatização de fluxos nos tribunais do país.
Além disso, o CNJ também lançará em breve um Painel de Estatísticas com dados do Judiciário, uma parceria com o PNUD, que representa um salto da Justiça brasileira na direção da já mencionada transparência.
A proteção dos direitos humanos continuará como valor essencial do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, hoje chancelado como uma das grandes iniciativas do CNJ pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Organizacao das Nações Unidas, máxime pelo enfrentamento da violência contra a mulher, pela disseminação de práticas de conciliação e mediação para proteção dos povos indígenas, pelas iniciativas de melhoria da dignidade dos moradores de rua, pelo combate à homofobia e da transfobia, e pela ressocialização das pessoas privadas de liberdade.
Um dos destaques para o ano de 2022, no âmbito do Programa Fazendo Justiça, é o início do fluxo nacional permanente de identificação e emissão de documentação civil da população privada de liberdade, uma ação complexa e inédita com dezenas de parceiros, em especial o Tribunal Superior Eleitoral, cujo escopo maior é permitir a essas pessoas que exerçam a sua cidadania na plenitude consagrada na Constituição Federal.
O Observatório do Meio Ambiente e de Mudanças Climáticas investirá em 2022 em projetos de inteligência artificial para o aprimoramento da apuração e priorização das ações sobre crimes ambientais.
Por fim, com o apoio do CJF e do PNUD, destacamos, ainda, o desenvolvimento dos seguintes módulos: i) a nova versão do Sistema Nacional de Adoção (SNA); ii) o Sistema Nacional de Bens Apreendidos (SNBA); iii) o Sistema Nacional de Pesquisa Patrimonial e Recuperação de Ativos (Sniper), e iv) o Sistema Nacional de Precedentes Judiciais.
Senhores Ministros e Senhoras Ministras, com a convicção de que temos dado passos significativos para o aprimoramento da gestão judiciária e para a aproximação dos tribunais com a sociedade, hoje, como destaquei, início o segundo ano de gestão à frente da Presidência do Supremo Tribunal Federal, maior honra e desafio que um juiz de carreira pode experimentar.
O caminho é longo, mas conto o indispensável apoio dos meus pares. Em primeiro lugar, da minha Vice-Presidente, Ministra Rosa Weber, com quem dividi a quatro mãos os dias de recesso do Tribunal.
Aos demais pares, um sincero agradecimento àqueles que espiritualmente sempre estão ao meu lado.
Tenho, assim, a satisfação de me encontrar rodeado de mulheres e de homens com valores republicanos e espírito democrático, de sorte que nossas divergências são pontuais em comparação à grandeza da instituição que pertencemos.
Afinal, é a pluralidade de visões dentro do Tribunal que o permite enxergar os diferentes ângulos das escolhas trágicas que somos instados a realizar.
O percurso árduo e sinuoso não nos permite adotar qualquer postura pessimista.
Ao revés, juízes sem esperança não guardam a Constituição, a qual, no ano de 2022, nos conclama a uma luta renhida pela solidez das nossas instituições e do nosso regime democrático.
Afinal, uma verdadeira benção a essa luta que leva o Brasil a um futuro de estabilidade institucional relembra-nos Gonçalves Dias em sua bela Canção do Tamoio:
“Não chores, meu filho; Não chores, que a vida é luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, Só pode exaltar.”
Que Deus nos proteja”.