A comunidade do Vale Encantado foi fundada no século 19 por trabalhadores nas plantações de café, antes da região ser reflorestada se tornando a Floresta da Tijuca, uma das maiores do mundo em perímetro urbano.
Os bisavôs de Otávio Barros, hoje presidente da Associação de Moradores e da cooperativa do Vale, mudaram-se para a região justamente para trabalhar nas plantações — e as gerações seguintes dedicaram-se a outras atividades, como agricultura e floricultura.
“Eu sou da quarta geração. Também teve uma fase de extração do granito, que causou desmatamento. Mas em 1989 as empresas foram embora. Muitas pessoas que vieram para trabalhar não se adaptaram e foram junto. Ficaram mais as famílias originarias.”
Segundo a BBC News, após 150 anos o Vale Encantado se encontrou isolado na floresta, sem poder mais ganhar a vida através da extração de recursos naturais do entorno.
Hoje, de acordo com o último censo realizado pela associação de moradores, cerca de 100 pessoas compondo 40 famílias moram nas 27 casas da comunidade.
Em 2005, após a visita do francês Jérôme Auriac, presidente de uma ONG de desenvolvimento sustentável que atua no Brasil, Barros começou a considerar a ideia de que o Vale Encantado poderia ser um bom destino para o turismo sustentável, atividade que ajudaria a comunidade a gerar renda.
“Em 2007, após eu e um colega já estarmos formados como guias, um dos turistas que nos visitava perguntou se poderia tomar banho na cascata. Eu expliquei que não, porque o esgoto da comunidade era despejado ali. Seguimos com o passeio, mas aquilo me incomodou. Comecei a procurar alguma forma de melhorar o sistema de canalização, apesar de não ter conhecimentos técnicos”, diz.
O início da busca pelo sistema de esgoto
Para os moradores, um esgoto devidamente canalizado representava a presença de menos insetos, roedores, e um risco menor de transmissão de doenças, além da não contaminação das nascentes da região.
Mas também ajudava em uma questão que os ameaçava de forma diferente. Em 2006, o Ministério Público do Estado do Rio entrou com uma ação civil pública e um pedido de liminar, contra a Prefeitura do Rio, em razão da ocupação das áreas do Alto da Boa Vista, onde o Vale Encantado está localizado.
A ação não tinha como foco único a comunidade, mas a incluía como ameaça à preservação ao meio ambiente, o que fez com que o presidente da associação de moradores se sentisse ainda mais motivado a buscar soluções.
Em 2011, um pesquisador da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, onde Otávio Barros trabalhava como secretário do curso de graduação de matemática, indicou que ele conversasse com Leonardo Adler, engenheiro ambiental sanitarista que acumulava experiências que poderiam ajudar a comunidade.
“Na época, só conversamos por e-mail. Eu passei algumas instruções, mas não chegamos a nos encontrar”, diz Adler.
Mas dois anos depois, o Vale Encantado recebia de uma ONG internacional uma primeira doação que contribuiria para o caminho de sustentabilidade que os moradores buscavam, um biodigestor para restos de alimentos que seria usado na espécie de restaurante da associação, que vende pratos típicos, como o “jacalhau” e a “torta de umbigo de banana” para turistas.
Em seguida, a cozinha do restaurante usava o gás gerado pelo biodigestor para cozinhar.
Para trabalhar na implementação da tecnologia, o engenheiro Leonardo Andler e outros voluntários passaram a integrar a rotina da comunidade.
Apesar dos avanços, a maior contaminação no ambiente continuava. Com dificuldades para atender muitas regiões do Rio, seria difícil imaginar a concessionária chegar um dia com saneamento básico neste local pequeno e isolado. E isso afetava a qualidade de vida e a geração de renda local.
A construção do biossistema para o tratamento de esgoto
Mas depois de ter mais profissionais experientes conhecendo a realidade dos moradores, em 2015, o biossistema de saneamento ecológico do Vale Encantado começou a ser desenvolvido através de uma nova parceria, desta vez com um edital da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), uma agência de fomento à pesquisa.
O objetivo era a construção de um biodigestor de porte e tamanho apropriados, dimensionado para tratar o esgoto de todas as 27 casas do Vale Encantado, mas com o apoio inicial, apenas cinco moradias foram beneficiadas.
O processo de arrecadar o dinheiro para completar as obras foi lento e a pandemia causada pelo coronavírus atrapalhou o planejamento, mas em 2021, com a ajuda de diferentes organizações sociais, a comunidade conseguiu recursos faltantes para realizar a conclusão do sistema conectando todas as casas à rede completa de saneamento.
O tempo de espera serviu também para capacitar os moradores da comunidade para que eles mesmo fizessem a obra — sendo remunerados com parte do dinheiro levantado.
De acordo com o engenheiro ambiental sanitarista Leonardo Andler, treinamentos foram feitos com a ajuda de um engenheiro civil e um encanador.
Desde maio de 2022, o esgoto é coletado das residências e é levado a um tanque de concreto de forma arredondada, onde passa por dois processos naturais para a limpeza da água.
“O sistema faz a degradação de matéria orgânica em ambientes sem oxigênio. Desse ambiente, as bactérias que se desenvolvem digerem a matéria orgânica e elas têm como subproduto dessa digestão o biogás. Na prática é a mesma coisa que acontece na nossa barriga — a digestão de uma parte líquida que saí por um lado, outra sólida, que é depositada no fundo do biodigestor, e então a criação do gás que, nesse caso, pode ser usado para as atividades da cozinha”, explica Andler.
O morador Otávio Barros conta que, antes do projeto, muitas casas usavam “fossa sumidouro”, uma espécie de tanque ao lado de uma fossa, para armazenar seus dejetos.
“A qualidade da água que descia cortando as casas era péssima e formava poças proliferando mosquito e roedores. Agora, a água é muito limpa. Os moradores estão satisfeitos e não tiveram custo algum. Acho que meus antepassados estariam orgulhosos”, diz.
Seu sonho, conta ele, é que o Vale Encantado possa se tornar um ponto turístico para gerar renda para as famílias que são mais vulneráveis. Seu próximo passo é criar uma pousada para visitantes.
Além disso, Otávio está passando por um curso de instalações hidrossanitárias, do qual Leonardo Andler é um dos professores, e cogita aproveitar os conhecimentos adquiridos nos últimos anos para participar de outros trabalhos como o que foi feito em sua comunidade.