Qualquer um que tenha passado pelos bancos escolares brasileiros até meados dos anos 1980 certamente aprendeu uma floreada história sobre o episódio chamado de descobrimento do Brasil, o dia em que o navegador português Pedro Álvares Cabral (1467-1520) e sua comitiva avistaram as terras que depois se tornariam a maior colônia lusitana, em 22 de abril de 1500.
Trata-se de uma narrativa épica, em que Cabral e seus comandados enfrentavam conforme reportagem de Edison Veiga, da BBC News, a fúria do Atlântico para consolidar a então nova rota comercial que ligava a Europa à Índia, contornando o continente africano e dobrando o Cabo da Boa Esperança.
Mas então, nervosas que estavam as águas do oceano e sob intensa tempestade com forte ventania, as embarcações acabaram sendo obrigadas a ajustar a rota, “abrindo” cada vez mais para o oeste e distanciando-se da costa da África. Até que, acidentalmente, chegaram às tais novas terras, “descobrindo” o Brasil e tomando posse do território, com direito a celebração de missa e troca de presentes com os nativos.
E assim, apregoavam os professores de história do ensino primário de antigamente, havia nascido o Brasil.
Historiadores contemporâneos, contudo, colocam em xeque esta narrativa. Não há um consenso por que os documentos conhecidos são poucos e não explicam com clareza. Mas o que a grande maioria concorda é que Cabral ao menos sabia que encontraria alguma coisa indo por ali — não necessariamente um território tão grande.
E que parte de sua missão, além de consolidar a nova rota para a Índia, selando o sucesso empreendido anteriormente por Vasco da Gama (1469-1524), era estabelecer a conquista daquilo que havia sido garantido à coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, firmado seis anos antes com a Espanha.
Por que então foi criado o mito da descoberta por acaso? Quais eram os interesses dessa historiografia que foi tratada como verdadeira sobretudo do início do século 19 até a década de 1980?
Criação de uma narrativa nacional
Pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato explica à BBC News Brasil que essa versão “foi construída principalmente no século 19”. “O Brasil e o mundo passavam por um contexto de formação dos nacionalismos modernos, com o desenvolvimento de histórias teleológicas, com começo, meio e fim, muito lineares”, comenta ele.
“Essa ideia de descobrimento é muito fortificada no século 19 pela monarquia brasileira e tem a intenção clara de criar um caminho reto, progressista, entre uma determinada ideia de descobrimento de um povo que está em busca de algo, juntamente com uma terra que necessita ser descoberta”, diz Missiato.
Durante o período colonial, Portugal parece não ter feito questão de acentuar se a conquista do território brasileiro havia se dado de propósito ou não — a intencionalidade do feito não estava no centro das preocupações, a julgar pelos registros produzidos.
“Se a descoberta foi acidental ou não, na época não havia problemas com isto”, afirma à BBC News Brasil o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor da Unesp. “O que realmente interessava a Portugal era efetivar a posse do território que lhe pertencia pelo direito atribuído pelo Tratado de Tordesilhas.”
Como enfatiza Rodrigues, “o importante foi a posse, mesmo que nosso processo de povoamento fosse tardio, uma vez que o interesse português naquela época estava no Oriente, por causa das riquezas proporcionadas pelo comércio das especiarias.”
“A notícia do achamento de novas terras, a [então chamada de] Terra de Santa Cruz, pela expedição de Cabral ganhou a Europa rapidamente por cartas de mercadores radicados em Lisboa e pelo próprio rei, que espalhavam aos quatro cantos a descoberta de terra firme que lhe pertenciam no além-mar”, conta Rodrigues. “Se foi por acaso ou não, essa questão não interessava. O que valia era efetivar o direito de posse.”
Contexto e posse
Para a historiadora Clarissa Sanfelice Rahmeier, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), “toda a história do descobrimento ou achamento do Brasil deve ser entendida à luz de, no mínimo, dois elementos que caracterizavam o contexto em que se deu a vinda dos europeus para cá”. São eles os tratados de limites estabelecidos entre Portugal e Espanha “e a situação socioeconômica vivenciada pelos países ibéricos à época da chegada de Cabral”.
“A narrativa que apresenta a versão da chegada por acaso deriva do primeiro elemento, referente à disputa, por Portugal e Espanha, das terras achadas ou por achar no processo de expansão marítima impulsionado pelos dois países”, pontua ela.
Isso porque, como a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas não era precisa, tanto o planejamento quanto a comunicação das viagens exploratórias eram impactados. “Havia várias interpretações a seu respeito e a falta de uma exata localização, bem como o desconhecimento do que seria encontrado nas terras do além-mar”, afirma Rahmeier.
A historiadora ressalta que foi por conta disso que a coroa portuguesa financiou a viagem do explorador Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) em 1498. Muitos acreditam que ele — e não Cabral — tenha sido o primeiro português a pisar nas terras que hoje são o Brasil.
“A viagem foi mantida em segredo e os relatos advindos dela também”, destaca Rahmeier. “Se considerarmos a expansão marítima uma corrida por territórios, e pelas potenciais riquezas que eles teriam, entendemos melhor a não divulgação da viagem de Pacheco Pereira. Manter os planos da viagem em segredo não chamaria a atenção dos espanhóis para a região a que Portugal se destinava. Além disso, argumenta-se que Pacheco Perreira aportou em terras onde os limites do Tratado de Tordesilhas não eram claros, no norte do que hoje é o Brasil, na região onde [atualmente] localizam-se os estados do Maranhão e do Pará.”
Segundo ela, “a divulgação da viagem poderia despertar o interesse dos espanhóis para essa região fronteiriça”. Daí veio a viagem empreendida por Cabral. “A opção do rei Dom Manoel I, então rei de Portugal, foi organizar uma nova expedição com o intuito de tomar posse de uma área que seria certamente de domínio português de acordo com o Tratado de Tordesilhas”, explica ela. “Assim, a expedição de Cabral foi montada com o intuito de chegar a terras que com certeza pertencessem a Portugal e, assim, tomar posse do que fosse encontrado. Foi o que ocorreu.”
Rahmeier acrescenta que como os documentos da viagem de Pacheco Pereira foram mantidos em sigilo, a expedição oficial de Cabral, “realizada em 1500 e com o intuito de tomar posse do que era português antes mesmo do achamento se tornou o centro das narrativas do descobrimento”.
“O tamanho da expedição de Cabral e o fato de sua frota seguir para as Índias após a tomada de posse das terras além-mar acabaram por reforçar a versão da descoberta acidental do Brasil”, salienta. “Essa narrativa se perpetuou mesmo após os documentos relativos à viagem de Pereira serem divulgados, no século 19.”
No caso, é o documento ‘Esmeraldo de Situ Orbis’, um manuscrito de autoria do próprio Pacheco Pereira, escrito no início do século 16 — mas que foi mantido como secreto por Portugal até ser reencontrado e publicado no fim do século 19.
No documento, o explorador aborda onde hoje é o Brasil de forma que possibilita interpretar que ele esteve no território. Escreveu ele que, em 1498, “vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além da grandeza do mar Oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela e é grandemente povoada”.
“Tanto se dilata sua grandeza e corre com muita lonjura, que de uma parte nem da outra não foi visto nem sabido o fim e cabo dela”, relatou. “É achado nela muito e fino brasil com outras muitas cousas de que os navios nestes reinos vêm grandemente povoados.”
De acordo com a historiadora Rahmeier, este documento costuma ser interpretado como os registros da viagem de Pacheco Pereira ao Brasil — e confirmaria que a sua viagem teria fornecido as bases para a expedição de Cabral.
“[Este documento vem à tona no fim do século 19] quando a narrativa do descobrimento acidental por Cabral já era amplamente consolidada na historiografia oficial, em currículos escolares e na imaginação sobre o descobrimento”, diz a professora.
Versão oficializada pelo império
Para o historiador Victor Missiato, não há dúvidas que quem consolidou essa ideia de “descobrimento por acaso” foi o império brasileiro, no contexto da pós-independência. É do período a construção do imaginário a respeito do episódio da chegada dos portugueses. “Se a gente pegar aquela obra do [pintor Victor] Meirelles [(1832-1903)], ‘Primeira Missa no Brasil’ [feita entre 1869 e 1861], há toda uma referência de um destino manifesto por parte da Igreja e de Portugal, no sentido de trazer a palavra, a verdade, o sentido de colonização para essas terras”, comenta ele.
Foram assim erguidas as bases da narrativa. Segundo Missiato, “o descobrimento de um povo que vai construir sua história a partir das ideias do catolicismo e do nacionalismo”.
“Essa versão [da descoberta ‘sem querer’] durou muito tempo porque primeiro ela se constituiu como uma história oficial no século 19 e essa ideia de história oficial que se utiliza apenas de fontes oficiais, durante muito tempo, foi considerada a história científica da modernidade”, aponta Missiato.
Durante décadas, “toda a sociedade brasileira foi formada a partir dessa ideia oficial de descobrimento do Brasil”, ressalta o pesquisador. A partir dos anos 1930, ideias diferentes começaram a surgir no âmbito acadêmico. Mas ainda levaria muito tempo para serem adotadas essas versões pelos livros e apostilas escolares.
“Havia interesses claros no sentido de perpetuar uma perspectiva redentora, salvadora e ao mesmo tempo uma perspectiva centralizadora da história do Brasil”, comenta ele. Afinal, uma chegada por acaso tira o peso da “conquista planejada”, que pode ser interpretada como nociva e dominadora. Uma descoberta acidental, fortuita, parece evocar um capricho do destino, facilitando a conexão mítica com ideias de salvação e redenção.
Cuidado interpretativo
O historiador André Figueiredo Rodrigues, contudo, recomenda cuidado antes de defender este ou aquele ponto de vista interpretativo. Ele enfatiza que “a documentação contemporânea da viagem de Cabral não permite estabelecer com precisão se a chegada portuguesa em terras nas Américas foi acaso ou intencionalidade”.
Ele ressalta que o relato mais importante, a carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), foi reconhecido como “o documento do descobrimento” apenas em 1817. “E somente após o fim da década de 1980, mais ou menos, é que outros 13 documentos coevos se juntaram ao rol do que chamamos de ‘documentos do descobrimento’”, comenta. “Dados constantes nesses novos documentos permitem acreditar que o território que mais tarde será chamado de Brasil foi pelo menos visitado por outros viajantes antes da chegada da esquadra de Cabral.”
Rodrigues situa “a dúvida acerca do acaso ou intencionalidade do descobrimento” por conta da expedição realizada por Vasco da Gama à Índia em 1498.
“Para formalizar acordos ali estabelecidos, o rei de Portugal armou a expedição de Cabral para atender aos requisitos do samarim, o senhor da cidade de Calicute, e de outros senhores do Oriente para trazer para a Europa as especiarias do Oriente”, contextualiza Rodrigues. “A expedição de Cabral tinha como objetivo retornar às Índias e estabelecer acordos comerciais locais. No trajeto e com receio de perder seus territórios nas Américas, a esquadra desembarca no Brasil, tomando posse oficial das terras nas Américas pertencentes a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.”
“Nessa história, um dado se soma: esse tomar posse das terras pertencentes a Portugal nas Américas ocorreu por acaso. É isso que se acreditava, pois os fatos narrados acima não eram de conhecimento, e a carta de Caminha vislumbra-se pelo acaso e não pela intencionalidade”, aponta ele.
Até 1817, quando o texto de Caminha foi descoberto e tornado público, nem a data era sabida. Acreditava-se que o Brasil havia sido descoberto pelos portugueses em 3 de maio de 1500, e não 22 de abril — daí o nome dado de Terra de Santa Cruz, já que celebra-se esse dia em tal data.
E se a questão surgiu em 1817, isso acabou sendo incorporado como narrativa pelo Império Brasileiro, logo após a Independência de 1822 — e com os interesses em se criar uma identidade nacional. “O fato de inicialmente conhecermos apenas uma versão dos fatos levou-nos a acreditar na proposta do acaso, baseada apenas na versão dos documentos divulgadas pelos cronistas”, acrescenta Rodrigues.
“Mas com a divulgação esporádica de documentos ao longo do século 19, questionamentos passaram a suscitar dúvidas sobre o achamento das terras do Brasil”, comenta.
O primeiro a apostar na intencionalidade
Possivelmente o primeiro a levantar essa lebre foi o historiador Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891). Em 1852, ele publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um artigo chamado ‘O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral foi devido a um mero acaso ou teve ele alguns indícios para isto?”. “[Ali, ele] defendia a intencionalidade da descoberta efetuada por Cabral. É a partir de então que se inicia o debate, que se arrasta até hoje”, diz Rodrigues.
“Joaquim Norberto de Sousa e Silva é quem revoluciona a interpretação [da chegada por acaso], trazendo à luz novos questionamentos como o que contesta o desembarque involuntário da esquadra de Cabral no litoral da Bahia, ocasionado pela corrente marítima equatoriana”, explica o historiador. “Se os ventos fossem os responsáveis pelo desvio da rota, a armada de Cabral deveria ter chegado ao litoral brasileiro mais ao norte e não na altura de [onde hoje fica] Porto Seguro.”
O poeta Gonçalves Dias (1823-1864) usa a mesma revista para publicar um texto refutando Sousa e Silva. “[Ele indica] que o encontro do Brasil foi por acaso e que o ato da intencionalidade retiraria de Cabral o seu grandioso feito de nosso descobrimento”, analisa Rodrigues.
De qualquer forma, esta não parecia ser uma questão que importava, naquele momento.
A partir de 1861, o livro “Lições de História do Brasil”, do escritor, médico e professor Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) acabou se tornando um material didático amplamente difundido no Brasil. E suas ideias, conforme ressalta Rodrigues, “circulavam pelas escolas como reprodutora de nossa história nacional e promulgadora do patriotismo estimulado aos jovens”.
“Foi o grande livro da época… Em suas páginas, quando se lê sobre o descobrimento, nada existe sobre a polêmica intencionalidade ou acaso”, frisa o historiador. “O que ele fez foi valorizar a presença portuguesa em terras americanas, nada mais.”