domingo 22 de dezembro de 2024
Homem se apresentava como Viktor Muller Ferreira e havia se candidatado a posto de estágio não remunerado na instituição, responsável por investigar, entre outras acusações, possíveis crimes de guerra cometidos na Guerra da Ucrânia
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segunda-feira 13 de março de 2023 às 19:08h

Como suposto espião russo ‘esquentou’ documentos no Brasil, segundo a PF

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Um arquivo guardado em uma espécie de pen drive escondido na mata. A escrevente de um tabelionato de notas de São Paulo. Um colar Swarovski.

Documentos obtidos pela BBC News Brasil apontam que esses são os elementos do mais novo episódio envolvendo o russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, detido no Brasil e apontado por autoridades de diferentes países como um agente secreto da Rússia.

Condenado no Brasil por falsificação de documentos, ele surpreendeu as autoridades brasileiras pela forma como conseguiu obter toda uma leva de documentos de identificação falsos e ficou praticamente indetectável no país por quase uma década.

Nos últimos meses, porém, começaram a surgir pistas de parte do que seria a rede que lhe deu suporte para falsificar documentos e manter sua identidade de cidadão brasileiro normal.

Elas apontam que Sergey teria tido a ajuda de uma escrevente de cartório brasileira para conseguir a anulação de multas eleitorais e a liberação documental para a compra de um apartamento em São Paulo. Pela ajuda, ele teria presenteado a mulher com um colar da marca Swarovski avaliado em US$ 400, pouco mais de R$ 2 mil.

Sergey foi preso em abril de 2022 após tentar, sem sucesso, entrar na Holanda. As autoridades do país europeu apontam que se fazia passar por Victor Muller Ferreira, um cidadão brasileiro que tinha conseguido um estágio no Tribunal Penal Internacional, em Haia.

O serviço de inteligência holandês afirma que em vez de ser um estudante brasileiro, Victor era, na realidade, Sergey, um agente secreto do FSB, um dos serviços de inteligência da Rússia.

Ao chegar ao Brasil, ele foi preso, processado e condenado a 15 anos de prisão por uso de documentos falsos. Aqui, ele admitiu ser russo, mas negou qualquer ligação com os serviços de inteligência russos.

Alertada sobre a possibilidade de ter um espião internacional em suas mãos, a Polícia Federal passou a investigar Cherkasov e conseguiu apreender documentos e dispositivos eletrônicos escondidos em uma área de mata em Cotia (SP).

Esses dispositivos, acreditam os investigadores, eram usados para o russo deixar mensagens e passar relatórios sobre suas atividades aos seus “controladores” em território nacional.

A ajuda

Foi num desses dispositivos parecidos com um pen drive que os investigadores da PF encontraram um arquivo com um relato que acredita-se ter sido feito por Sergey para um de seus controladores no qual ele narra como a agora ex-escrevente de um tabelionato de notas de São Paulo o teria ajudado em troca de um colar Swarovski.

A BBC optou por omitir a identidade da agora ex-funcionária enquanto a investigação ainda está em curso.

“Os fatos, objeto da investigação, ocorreram em São Paulo/SP, entre os anos de 2021 e 2022, quando o russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, passando-se pelo fictício brasileiro Victor Muller Ferreira, cooptou […] a quem deu vantagem indevida, consistente num colar swarosky (sic), no valor de U$D 400,00, para que ela o auxiliasse na autenticação de documentos, na anulação de multas eleitorais, na autorização de compra de um apartamento, dentre outros auxílios, em face dos quais há robustos indícios de irregularidades”, diz o trecho de um pedido de prisão contra Cherkasov relacionado ao caso.

Nos documentos encontrados pela PF e que teriam sido elaborados por Cherkasov, o russo diz que a funcionária teria feito uma espécie de autenticação de seu RG tendo como base uma foto do documento apresentada por ele em seu telefone. Segundo o suspeito de espionagem, isso teria facilitado sua vida no país.

“Com essa autorização consegui iniciar o processo de cidadania (portuguesa), consegui nova carteira de motorista e obter novas certidões de nascimento e etc. (sic) sem sequer ter um documento de identidade”, diz um trecho do documento encontrado e traduzido do inglês pela PF.

A menção ao processo de cidadania portuguesa chama atenção porque, segundo as investigações, Cherkasov tentava obtê-la para transitar com mais facilidade em suas viagens internacionais.

“Ela autenticou todos os documentos dos meus ‘pais’, o que ajudou a economizar muito tempo e atenção desnecessária dos advogados. Loyola anulou as multas eleitorais por não votar no país por cinco anos, limpou meu CPF e está pronta para autorizar a compra do meu apartamento como feito com bens financeiros legitimamente obtidos”, diz outro trecho do documento.

O termo “pais” entre aspas é uma provável referência ao fato de que, para dar cobertura à sua história, Cherkasov teve que “fabricar” uma família falsa composta por um pai com cidadania portuguesa e uma mãe brasileira, ambos já falecidos.

Mais adiante, Cherkasov afirma que presenteou a funcionária por sua “ajuda”.

“Por sua ajuda, dei-lhe um presente em janeiro – colar Swarowksy no valor de US$ 400”, diz o documento.

Segundo o relato atribuído a Cherkasov, a funcionária seria de um Tabelionato de Notas de São Paulo. A reportagem da BBC News Brasil conseguiu confirmar que ela trabalhou até pelo menos 2021 no estabelecimento.

O relato contido nos documentos fazem parte de um pedido de prisão feito pela Polícia Federal em dezembro deste ano. O caso tramitou na Justiça Federal de São Paulo. O pedido de prisão, na realidade, tinha um caráter meramente formal, uma vez que Cherkasov já estava preso.

Apesar de mencionar o nome da funcionária, a PF não pediu a sua prisão e nem informou detalhes sobre que medidas teriam sido tomadas para investigá-la.

Nos documentos obtidos pela reportagem, não fica claro se a PF aprofundou investigações sobre as ações atribuídas a ela, ou se ela sabia da real identidade de Sergey.

Por e-mail, o tabelionato informou que a escrevente trabalhou no estabelecimento, mas não disse em qual período. O tabelionato também disse não ter tido nenhum conhecimento sobre os fatos irregulares supostamente praticados por ela.

Por telefone, a ex-funcionária confirmou que trabalhou no tabelionato, mas disse que não poderia responder a nenhuma questão sobre o caso.

Procurada, a PF não se manifestou sobre o assunto.

Preso, investigado e alvo da Rússia

Os elementos colhidos pelas autoridades holandesas apontam que Cherkasov faria parte de um grupo específico de agentes de inteligência russos.

Usando sua identidade brasileira, segundo as investigações, Cherkasov morou na Irlanda e nos Estados Unidos onde fez cursos em universidades dos dois países. Foi com seus documentos falsos brasileiros que ele obteve vistos emitidos por autoridades americanas.

Em outubro de 2022, um outro caso semelhante ao de Cherkasov foi revelado pelas autoridades da Noruega.

A polícia local prendeu um homem supostamente brasileiro que atuava como pesquisador em um centro que estuda questões relacionadas ao Ártico e ameaças híbridas.

Do ponto de vista geopolítico, a Noruega é considerada importante para a Rússia por conta da proximidade com o país e pelo fato de o país fazer parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

O caso de Cherkasov chamou ainda mais atenção a partir de agosto de 2022, quando o governo da Rússia pediu a sua extradição. No pedido, as autoridades russas afirmam que ele seria investigado no país por crimes relacionados ao tráfico de drogas.

O que despertou a curiosidade de pessoas familiarizadas com o caso no Brasil foi o fato de que Cherkasov se manifestou favorável à sua extradição para a Rússia uma vez que as penas às quais ele pode estar sujeito em seu país-natal são maiores que aquelas às quais ele estaria sujeito no Brasil.

O pedido de extradição, agora, depende do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda não há data prevista para o julgamento.

A reportagem da BBC News Brasil procurou a Defensoria Pública da União (DPU), que atua no caso da extradição de Cherkasov. Por meio de nota, o órgão disse que não poderia se manifestar sobre eventuais denúncias contra ele em outras instâncias da Justiça.

A reportagem também fez contato com advogados que começaram a defendê-lo logo que ele foi preso, mas não obteve retorno.

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