Uma antiga comunista criou uma nova legenda encampando o principal tema da ultradireita: a migração. Enquanto isso, os sociais-democratas e os verdes, que estão no governo, penam nas pesquisas. A jovem Sarah Wagenknecht era comunista – e continuou sendo mesmo após amadurecer e muito depois da queda do Muro de Berlim e do fim da ditadura na Alemanha Oriental. Por anos, essa política nascida no estado da Turíngia foi um dos rostos mais conhecidos do partido A Esquerda (Die Linke, em alemão) – visível sobretudo nas discussões internas, frequentemente públicas, sobre os rumos que a legenda deveria tomar.
Em outubro de 2023, ela anunciou uma decisão que já era aguardada há tempos e deixou o partido para criar o seu próprio. Uma decisão sintomática de uma crise que afeta todo o espectro político da esquerda alemã, que está em queda nas pesquisas eleitorais e à procura de reorientação.
Isso vale não só para o partido A Esquerda, que aprofundou sua crise com o racha liderado por Wagenknecht, mas também para o Partido Social-Democrata (SPD) e o Partido Verde. Ambos se veem como pertencentes ao campo da esquerda e formam, desde 2021, a coalizão do governo federal com o Partido Liberal Democrático (FDP, na sigla original), uma legenda liberal de forte orientação para a economia de mercado – ou seja, de direita.
Ultradireita em alta
Na primeira pesquisa Deutschlandtrend de 2024, A Esquerda, SPD e Partido Verde registraram, juntos, 31% da preferência dos entrevistados. Exatamente o mesmo percentual que os conservadores, reunidos nos partidos União Democrata Cristã (CDU) e União Social Cristã (CSU).
E há ainda a Alternativa para a Alemanha (AfD), de ultradireita, que tem setores considerados como extremistas pelo Departamento de Proteção da Constituição (serviço secreto interno da Alemanha, que vigia as ameaças à ordem democrática), com 22%.
Para o cientista político Werner Patzelt, a perda de relevância dos partidos de esquerda na Alemanha tem uma explicação principal: eles estão se dedicando muito pouco aos problemas do cidadão comum. Este se sente, por exemplo, ameaçado pelos elevados preços dos aluguéis nas grandes cidades alemãs e não consegue entender as preocupações da chamada esquerda woke.
O cidadão comum e a AfD
A palavra woke vem do inglês e significa ter consciência e estar alerta para injustiças sociais e o racismo. A expressão original é stay woke, ou fique acordado, no sentido de estar alerta para essas questões.
Mas, para Patzelt, essas são questões que ocupam sobretudo a esquerda acadêmica ou altamente instruída. E, se isso não mudar, ele afirma que não deveria causar espanto, nos partidos de esquerda, se “os cidadãos comuns depositarem suas esperanças na direita”.
A AfD alcança seus elevados índices de intenção de voto sobretudo com seu discurso virulento contra a migração. O manifesto de fundação do partido de Sarah Wagenknecht não vai tão longe, mas inclui palavras de alerta e ceticismo.
“O preço do aumento da concorrência por aluguéis acessíveis, dos empregos com salários piores e por uma integração mal-sucedida não é pago, primeiramente, por aqueles que estão do lado ensolarado da vida”, lê-se no texto.
Sentenças como essas soam para Patzelt como uma conexão entre os extremos à direita e à esquerda.
Migração, o tema que divide
“Na política social, a ideia é fazer uma política clássica da esquerda para os cidadãos comuns e, na política migratória, uma política que hoje em dia é sobretudo associada à direita”, sintetiza o cientista político, ao esboçar o campo de ação do novo partido político da Alemanha.
Para ele, a Aliança Sahra Wagenknecht – por Sensatez e Justiça, nome atual do novo partido, tem um certo apelo eleitoral, mas se ele vai se manter coeso é uma questão ainda em aberto.
Wagenknecht considera “altamente problemática” a postura de boas vindas aos refugiados, iniciada em 2015 pela então chanceler federal Angela Merkel – não porque essas pessoas não mereçam uma vida melhor, como ela salienta, mas porque essa postura sobrecarrega a Alemanha.
Nos últimos meses, SPD e Partido Verde também iniciaram uma guinada na política migratória e querem limitar o ingresso de pessoas em situação irregular na Alemanha. Ao mesmo tempo, fizeram cortes em políticas econômicas e sociais. “Isso está sendo imposto a esses partidos pela realidade”, comenta Patzelt, pois cortes desse tipo não são a primeira opção de partidos de esquerda.
A largada das campanhas para as eleições ao Parlamento Europeu, marcadas para junho de 2024, e para as três eleições estaduais de setembro na Alemanha está sendo difícil para todos os partidos que se colocam no campo da esquerda.
No tema migração, A Esquerda descartou qualquer concessão e aposta numa política de fronteiras abertas. A candidata cabeça de chapa para a eleição europeia já foi definida: a ativista climática e capitã náutica Carola Rackete, que, como comandante do navio de resgate Sea Watch 3, ficou conhecida por ignorar uma proibição das autoridades italianas e ancorar no porto de Lampedusa com 53 imigrantes a bordo, resgatados em alto mar.
A candidatura dela ainda não mostrou qualquer efeito nas pesquisas eleitorais, e no nível nacional o partido está abaixo da cláusula de barreira dos 5% de votos.
Nos casos de SPD e Partido Verde, que também balançam nas pesquisas eleitorais, Patzelt aconselha a esses partidos olharem para o que ocorre na Dinamarca e na Suécia. Nesses dois países escandinavos, os social-democratas já há anos passaram a adotar uma política migratória restritiva.
Para Patzelt, com isso esses partidos incorporaram muito bem o conteúdo central de uma política de esquerda: “Atuar para os cidadãos comuns, que se veem ameaçados na vida que lhes é familiar pela globalização e pela migração que vem com a globalização, entre outras coisas.”
No novo partido de Sahra Wagenknecht, isso soa assim: “A imigração e a coexistência de diferentes culturas podem ser um enriquecimento. Mas isso só vale se o afluxo permanecer limitado a um nível que não sobrecarregue o nosso país e a sua infraestrutura e se a integração for ativamente apoiada e for bem-sucedida.”