O novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), surpreendeu o governo de Lula da Silva (PT) com falas simpáticas a pautas bolsonaristas dias após ser eleito com amplo apoio da base do governo e da oposição.
Após evitar se posicionar sobre temas que dividem os dois lados, ele rechaçou os ataques do 8 de janeiro de 2023, mas disse que não considerava a invasão dos edifícios dos Três Poderes em Brasília como um golpe de Estado e criticou supostas penas excessivas dos condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
As falas, em entrevista a uma rádio da Paraíba no dia 7 de fevereiro, incomodaram o Palácio do Planalto e deixaram o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados mais animados sobre a possibilidade de aprovar no Congresso uma controversa anistia para os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro.
Isso poderia, em tese, favorecer o próprio Bolsonaro, que foi indiciado pela Polícia Federal como mentor do suposto golpe e enfrenta a ameaça de um processo criminal. O ex-presidente nega qualquer crime.
Na mesma entrevista, Motta deixou a votação da proposta em aberto: “Não posso chegar aqui e dizer que vou pautar a anistia semana que vem, ou não vamos pautar. Será um tema que vamos analisando, digerindo”.
Apesar dessas declarações, a probabilidade de a proposta de anistia ir à votação ainda é considerada baixa por cientistas políticos ouvidos por Mariana Schreiber, da BBC News Brasil.
Os motivos, avaliam, é a oposição do governo e do STF, além da falta de apoio popular.
Pesquisa Datafolha do final de 2024 apontou que 62% da população são contra a proposta, enquanto 33% é a favor, e o restante não opinou.
Ambos também não veem os recentes gestos de Motta à base bolsonarista como um sinal de que ele escolheu o lado do ex-presidente e se afastou do Palácio do Planalto.
Na verdade, os especialistas ouvidos avaliam que Motta — um político de apenas 35 anos, mas já no seu quarto mandato de deputado — tem se equilibrado entre os dois campos.
Eles citam como gestos à esquerda seu discurso de posse com enfática defesa da democracia — em que fez referência ao filme Ainda Estou Aqui, sobre o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva pela ditadura militar — e o encontro com Lula no Palácio do Planalto logo após sua eleição para comandar a Câmara, junto com Davi Alcolumbre (União-AP), novo presidente do Senado.
Os dois voltaram a se reunir com o presidente na residência da Granja do Torto, na noite de 12 de fevereiro.
“Foi uma conversa amistosa, falamos um pouco sobre economia. Combinamos de ficar sempre conversando a partir de agora”, disse Motta a jornalistas no dia seguinte, sem detalhar a conversa.
O encontro ocorreu em meio a discussões sobre um possível reforma ministerial para acomodar mais indicações do Centrão — classificação que abarca partidos predominantemente conservadores, mas que costumam apoiar governos de diferentes tendências políticas em troca de cargos e acesso a verbas públicas.
As negociações acontecem em um momento de fragilidade do governo, com a popularidade de Lula em queda acentuada.
Segundo pesquisa Datafolha divulgada na sexta-feira (14), a aprovação do presidente recuou de 35% para 24% em dois meses, pior nível já registrado pelo petista em todos os seus mandatos. A reprovação também é recorde, subindo de 34% a 41%.
Para Creomar de Souza, da consultoria Dharma, a postura de Motta, de manter um diálogo aberto com o governo enquanto faz acenos para o bolsonarismo é uma estratégia para se fortalecer em meio à polarização.
“A impressão dos primeiros dias do Hugo Motta é que ele vem com um pé em cada canoa, o que significa dizer que ele tá com o pé na canoa dele”, nota o analista.
“Vemos de maneira muito clara uma continuidade dessa tentativa de atores do Centrão de se utilizarem de instrumentos de polarização para defenderem suas próprias agendas”, continua.
“E quais são essas agendas? A manutenção das emendas orçamentárias e dessa espécie de consórcio [de partidos do Centrão] que, sob a mentoria intelectual do Eduardo Cunha, mantém controle da Câmara dos Deputados, praticamente durante toda a última década”, diz ainda, em referência ao ex-presidente da Câmara que ampliou a autonomia da Casa em relação ao governo e autorizou o início do processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff em 2016.
O cientista político Lucas de Aragão, sócio da Arko Consultoria, também considera que Motta “está tentando se posicionar como um cara que flutua entre todos os campos políticos”.
Quanto às falas de Motta sobre o 8 de janeiro, Aragão lembra que outra pesquisa Datafolha, de março de 2024, mostrou que 65% da população consideram que aqueles ataques foram vandalismo e que apenas 30% avaliaram os atos como uma tentativa de golpe.
Ou seja, ressalta o analista, Motta se alinhou à opinião pública majoritária, mas isso não significa que vai articular politicamente para votar e aprovar uma anistia.
“Ele mostrou disposição em falar de temas sensíveis, como a anistia, mas ele joga a responsabilidade por construir o consenso [para aprovação] para quem tem interesse no tema”, ressalta Aragão.
Outro exemplo disso, acrescenta o cientista político, foi a fala de Motta à emissora CNN Brasil na semana passada, quando o deputado se alinhou a críticas ao prazo de oito anos de inelegibilidade previsto na Lei da Ficha Limpa, que classificou de “um tempo extenso”.
Nesta frente, aliados de Bolsonaro tentam articular a redução do prazo para dois anos, o que liberaria o ex-presidente — hoje inelegível devido a uma condenação no Tribunal Superior Eleitoral — a concorrer na eleição de 2026.
Motta, porém, também não manifestou um compromisso imediato com a apreciação da pauta.
Disse na mesma entrevista que não havia dialogado ainda com os líderes dos partidos na Câmara “para sentir o ambiente sobre a necessidade ou não de uma mudança na Lei da Ficha Limpa”.
Para Aragão, alterar a Ficha Lima não é algo simples, pois a medida costuma ser vista como uma agenda a favor de corruptos, gerando reação da sociedade.
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Além do equilíbrio entre as principais forças políticas, Aragão diz que Motta também chamou atenção nos primeiros dias da sua gestão com uma comunicação forte nas redes sociais, em que aproveita o comando da Câmara para se tornar mais conhecido nacionalmente.
Com assessoria do publicitário Chico Zaidan Mendez, adotou uma linguagem leve e dinâmica nas suas contas, com mensagens didáticas sobre o funcionamento da Câmara, focadas em um público menos especializado em política.
No primeiro vídeo após a eleição, que soma mais de 600 mil visualizações no seu Instagram, ele explica como “a direita e a esquerda caminharam juntas na eleição da Câmara” e brinca com a ideia de um novo buscador de informações, o Hoogle, um trocadilho entre seu nome e o Google.
“Não me lembro de um presidente da Câmara que tenha utilizado as redes sociais de maneira tão direta”, nota Aragão, destacando que Motta é um político jovem, de 35 anos.
“Se ele conseguir criar essa linha de comunicação direta [com a população], isso fortalece não só ele com a base de voto dele na Paraíba, mas ele com o Congresso. O que eleva a autonomia dele, seu capital político.”
Sem votos para aprovar anistia, bolsonaristas tentam humanizar pauta
Nome importante do bolsonarismo na Câmara, a deputada Bia Kicis (PL-DF), disse à reportagem que a pauta prioritária do grupo é a anistia.
No entanto, ela reconhece que não há previsão para votação da proposta, nem votos para aprová-la no momento.
“Vamos votar quando a gente tiver certeza da vitória”, afirmou Kicis.
“Estamos trabalhando [para isso]. Eu acho que essa pauta traz muito apelo. Muita gente que não é apoiador do Bolsonaro, mas que apoia uma anistia humanitária.”
A deputada também celebra as declarações de Motta a respeito do assunto.
“Recebemos com bastante confiança a fala dele, uma fala equilibrada. Uma fala de alguém que não é do núcleo do Bolsonaro”, reforçou.
A reportagem conversou com a deputada após uma coletiva promovida no Congresso pela base bolsonarista com Vanessa Vieira, esposa de Ezequiel Ferreira Luís, condenado a 14 anos de prisão por participação no 8 de janeiro, acusado de crimes como golpe de Estado e associação criminosa armada.
Com o marido foragido, Vieira compareceu à Câmara com seis filhos, alegou que seu marido foi condenado sem provas e pediu “misericórdia” a Hugo Motta, que depois a recebeu em seu gabinete, em reunião fechada.
Para Creomar de Souza, a possibilidade de a anistia entrar em votação dependerá da evolução da aprovação do governo Lula.
“Uma eventual votação da anistia no Congresso tem muito mais a ver com a capacidade que o governo terá de reverter a tendência de queda de popularidade e das percepções econômicas [negativas da população] do que pela força que o bolsonarismo efetivamente tem de colocar a pauta para aprovação.”
‘Mandato de Motta vai ser um no cravo, outro na ferradura’
Apesar do desconforto dentro do Palácio do Planalto e do PT com as falas iniciais de Motta, a base governista tem minimizado o impacto das declarações.
Para o secretário de Comunicação do PT, o deputado federal Jilmar Tatto (SP), é preciso esperar para ver como ele vai agir na prática na condução da Casa.
Os trabalhos na Casa só devem ganhar mais fôlego depois do Carnaval, quando as comissões temáticas serão instaladas, após a negociação entre os partidos.
“O mandato do presidente Hugo Motta vai ser um no cravo, outro na ferradura. Ele ora vai agradar à esquerda, ora vai agradar à direita”, disse Tatto à BBC News Brasil.
“Ele fez uma declaração infeliz sobre o 8 de janeiro. Temos que ver qual vai ser o conteúdo [da sua gestão]. Independente das falas dele, é o comportamento dele como presidente da Câmara [que importa].”
O governo apresentou ao Senado e à Câmara suas prioridades para os próximos dois anos no Congresso, dando especial ênfase à proposta de isentar o Imposto de Renda até R$ 5 mil e elevar o imposto sobre rendas de mais de R$ 50 mil.
“Queremos que seja aprovada ainda este ano para que esteja valendo já em 2026”, disse o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a jornalistas, após se reunir com Motta na quinta-feira passada (12)
A reforma do Imposto de Renda, porém, ainda não foi enviada ao Congresso, já que o Ministério da Fazenda ainda fecha os detalhes da proposta, para garantir que a arrecadação maior sobre os mais ricos vai cobrir integralmente a desoneração dos que ganham até R$ 5 mil.
A avaliação é que não há espaço fiscal para o governo abrir mão de receitas sem que haja aumento da dívida pública, algo que pode pressionar a cotação do dólar, a inflação e os juros no país.
Motta já deu declarações favoráveis à proposta, mas também tem criticado o governo por aumentar impostos, cobrando mais cortes de gastos.
“Não conheço o que o ministro vai nos trazer”, disse Motta na semana passada antes de se reunir com Haddad.
“O projeto da isenção do Imposto de Renda é um projeto simpático. Quem é que não gostaria de aprovar um projeto que ajuda as pessoas que têm uma faixa de renda menor, que é a larga maioria da população brasileira?”, comentou.
“Mas temos que ter muito equilíbrio para que uma medida como essa não venha a ter um efeito ruim do ponto de vista econômico, já que temos hoje uma alta taxa de juros, o dólar chegando a níveis máximos, e isso traz efeito no que diz respeito à inflação.”