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Busto de Luís de Camões com máscara, em Lisboa, demonstra o atual momento de Portugal diante do coronavírus Imagem: NurPhoto via Getty Images
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quinta-feira 21 de janeiro de 2021 às 09:46h

Como Portugal foi de país-exemplo a um recorde mundial de covid-19

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Foi um sábado de inigualável céu azul nas principais cidades portuguesas, daqueles que convidam toda a gente a sair de casa, passear pelas ruas, lotar as praças com os filhos em skates e bicicletas.

Nem as baixas temperaturas (uma média de 8ºC em Lisboa) afastaram as pessoas das ruas. Senhores vertiam suas xícaras de café nas calçadas obrigando os esportistas de final de semana a terem que desviar para seguirem felizes em suas corridas e caminhadas. Não fosse um novo lockdown, seria um final de semana como qualquer outro.

Mas não era: desde 15 de janeiro, a sexta-feira anterior, Portugal voltou à sua fase mais rígida de confinamento, numa tentativa de barrar os altos números causados pela pandemia da covid-19, que atingiu recordes de 10.946 casos e 219 mortes em um só dia no país.

Porém, ao contrário daquele período mais desafiador de quarentena, em que os contatos eram apenas visuais (quando muito) com muitas janelas e até carros de distância, desta vez o intenso fluxo de pessoas em pequenas aglomerações surpreendia.

Mulher passeia com cão e criança em Lisboa, usando máscara - NurPhoto via Getty Images - NurPhoto via Getty Images
Mulher passeia com cão e criança em Lisboa, usando máscara

Imagem: NurPhoto via Getty Images

Um desavisado que passasse pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, ou pela Avenida do Brasil, no Porto, não poderia imaginar os índices inéditos que a televisão reportava com alarde em looping nas principais emissoras: os hospitais do país no limite, listas de espera até mesmo para cremar os corpos de entes queridos.

Subida nos números

Naquele sábado de sol brilhante, para além de uma falsa aparência de normalidade, Portugal em nada parecia aquele que foi reconhecido mundialmente como um dos melhores exemplos globais na conduta da pandemia.

Tinha se tornado, na segunda-feira seguinte (18), o país a registrar mais casos diários por milhão de habitantes no mundo, à frente da Espanha, do Reino Unido e até dos EUA e do Brasil. Os internamentos subiram mais de 70% em semanas e a média de mortes passou de 70 para 150 pessoas.

Pessoas passam por anúncio de rua sobre o uso de máscaras contra o coronavírus, em Lisboa - Corbis via Getty Images - Corbis via Getty Images
Pessoas passam por anúncio de rua sobre o uso de máscaras contra o coronavírus, em Lisboa

Imagem: Corbis via Getty Images

“Os hospitais de Portugal estão à beira de ficar sobrecarregados com casos de coronavírus, com temores de que o sistema hospitalar do país possa se curvar diante do aumento constante das infecções”, publicou na terça-feira o “The New York Times” dando conta da tragédia portuguesa: o país só dispõe de 672 leitos de cuidados intensivos em todo o país.

O avanço da crise

A situação, entretanto, começou a fugir do controle do governo — que a classificou como “muito extrema”, nas palavras da ministra da Saúde semanas antes. Desde o final de outubro, começaram a ser adotadas medidas como a proibição de deslocamento entre cidades (ou conselhos, como dizem aqui) e o dever geral de recolhimento nas regiões do país em situação mais crítica do avanço de contágios.

A cada quinze dias, o governo se reunia para classificar as cidades por seus quatro níveis de riscos de transmissão (baseado nas taxas de Rt) e impunha regras de restrições de acordo com os dados: em termos gerais, dezenas de municípios ficaram obrigados a fechar todos os comércios das 23h às 05h de dias da semana, e a partir das 13h aos finais de semana.

Mulher passa em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa - NurPhoto via Getty Images - NurPhoto via Getty Images
Mulher passa em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa

Imagem: NurPhoto via Getty Images

A medida polêmica gerou uma série de críticas, principalmente por parte de donos de restaurantes, que ficaram impedidos de trabalhar em seus melhores dias de faturamento — sábados e domingos. Protestos em algumas cidades do país (como Lisboa, Faro e Porto) foram organizados pelo movimento batizado de “Sobreviver a Pão e Água”, que reunia ainda empresários da noite e artistas.

Um dos mais famosos chefs do país, Ljubomir Stanisic, conhecido por seus programas de televisão, encabeçou uma greve de fome que contou com outros manifestantes e levou uma semana para acabar, até que o governo aceitasse recebê-los para pôr em prática medidas de socorro aos setores prejudicados.

Efeito contrário

O que era uma medida para conter reuniões entre grupos principalmente aos finais de semana — quando as pessoas se juntam para almoçar ou visitam amigos e parentes — passou a ter efeito contrário: nos dias das semanas, restaurantes ficaram lotados (nem sempre seguindo as diretrizes de distanciamento impostas pela Direção Geral de Saúde) e, aos sábados e domingos, filas e mais filas em supermercados e nos comércios abertos por poucas horas.

Em dezembro, as taxas, que tinham tido alguma melhora (depois de sete a cada 10 cidades terem apresentado descida no número de casos), voltaram a subir. E novas regras tiveram que ser impostas de forma a tentar impedir confraternizações comuns no fim do ano: tudo em prol de não atrapalhar o Natal.

Casal usa máscaras em praia de Portugal - Getty Images - Getty Images
Casal usa máscaras em praia de Portugal

Imagem: Getty Images

Como um presente aos portugueses que tinham se comportado muito bem durante todo o ano de pandemia, o governo resolveu afrouxar as regras, o que, segundo médicos, o próprio presidente, Marcelo Rebelo de Sousa (que fez um mea culpa em entrevistas que deu à imprensa), e especialistas foi um “erro catastrófico”, como defendeu Henrique Oliveira, matemático e professor no Instituto Superior Técnico, que tinha previsto mais de 1500 mortes em decorrência apenas das festas natalinas.

Na véspera, dia 24, a limitação de circulação foi restringida apenas no horário das 2 às 5 horas da manhã, e também replicada no dia 25. O primeiro-ministro, António Costa, fez questão de salientar que não cabia ao governo fixar um limite para o número de pessoas nas reuniões familiares, como fizeram alguns outros países europeus.

Encontros sem medo

Crianças com máscara passam em frente ao café A Brasileira, em Lisboa, durante o Natal - Corbis via Getty Images - Corbis via Getty Images
Crianças com máscara passam em frente ao café A Brasileira, em Lisboa, durante o Natal

Imagem: Corbis via Getty Images

Foi, então, um Natal de grandes encontros, como em tempos pré-pandêmicos. Dados da consultora de dados PSE mostraram que no 24 houve praticamente a mesma percentagem de deslocações ocorridas em 2019.

“Se é para fazer recolhimento obrigatório, os portugueses cumprem; se não é para fazer restrições, os portugueses cumprem também”, afirmou Nuno Santos, diretor da PSE e coordenador do estudo.

A conta por tantas confraternizações chegou alta: Portugal começou 2021 com recordes diários de mais de 10 mil infectados por cinco dias seguidos, números até três vezes maiores do que durante a quarentena do início da pandemia.

As altíssimas taxas de contágio, entretanto, já não pareceram causar qualquer temor na maior parte dos portugueses: na primeira semana do ano, lojas de ruas e shoppings centers ficaram abarrotados de clientes para efetuar as famosas trocas do período.

Perante a escalada de novos casos, o governo aprovou uma extensão do Estado de Emergência (com apoio de outros partidos) e anunciou novas medidas mais rígidas de combate à Covid-19. Ainda apelou aos portugueses por responsabilidade para se conseguir controlar a pandemia.

Lockdown 2.0

Entre as exigências aprovadas, estava o fechamento de lojas de comércio, padarias e restaurantes (que só podiam operar em delivery e take away), o cancelamento de shows e atividades culturais e encerramento das atividades de academias e centros de esportes (que passaram a ser permitidos somente ao ar livre).

Nos dias da semana e também aos sábados e domingos, farmácias e supermercados podiam permanecer abertos o dia todo, para evitar que as pessoas tivessem que fazer suas compras ao mesmo tempo. Cafeterias e outras lojas de alimentos podiam vender seus produtos pela janela, desde que os clientes não adentrassem os estabelecimentos.

Máscara para proteção contra o coronavírus é deixada sobre taça de vinho em Lisboa - Getty Images - Getty Images
Máscara para proteção contra o coronavírus é deixada sobre taça de vinho em Lisboa

Imagem: Getty Images

Mas o que, para o governo, parecia tratar-se de restrições mais rígidas, para os portugueses, que já não saíam de casa após um almoço de sábado há semanas, ganhou um quê de liberdade tardia.

Praias e praças ficaram lotadas. Avenidas mais arborizadas também. Amigos combinaram de se encontrar para tomar café juntos, ainda que em pé na rua. Em um passeio pelo quarteirão da minha casa, na região da Boavista, no Porto, contei quatro grupos de homens mais velhos reunidos, muitos deles com as máscaras abaixo do nariz.

Motivos para sair

Com a desculpa de fazer exercícios ou de adotar “passeios higiênicos” — como costumam dizer aqui — não houve adesão total ao “dever de recolhimento geral”, como suplicavam os médicos em entrevistas. As pessoas já não querem ficar em casa.

Em Barcelos, no Norte do país, a autarquia afirmou ter provas de que houve moradores alugando pets para poder sair à rua, como uma forma de “furar” o confinamento. Alguns animais foram vistos três vezes em passeios no mesmo dia, mas com “donos” diferentes.

Na televisão, o prefeito de Cascais reportou que a Guarda Municipal encontrou moradores caminhando apenas com coleiras nas mãos, numa tentativa de se enquadrarem também na exceção de serem autorizados a levar o cachorro para passear.

Quando perguntadas onde estava o animal, as pessoas deram a justificativa que eles tinham fugido e andavam à procura dele”, indignou-se Carlos Carreiras, chamando a situação de “absolutamente ridícula”.

A partir do final de semana de sol, a cidade decidiu fechar as marginais e o paredão de frente para o mar, impedindo que pessoas circulem por ali.

Volta às restrições

Diante do que chamou de uma “falta de sobressalto cívico” por parte dos portugueses, o governo federal não viu outra opção senão endurecer suas próprias medidas “aos níveis de antes” — ou seja, do início do primeiro confinamento, com imposições mais rígidas.

Algumas delas envolvem a proibição irrestrita de vendas de bebidas à janela, a volta das restrições aos finais de semana (com mercados e farmácias abertas somente até as 13h), e a possibilidade do fechamento das escolas, algo que o governo tentou manter ao máximo, mesmo com as polêmicas críticas de médicos e outros políticos.

Músico de rua se apresenta na Rua Augusta, em Lisboa - Corbis via Getty Images - Corbis via Getty Images
Músico de rua mascarado se apresenta na Rua Augusta, em Lisboa

Imagem: Corbis via Getty Images

Com a aproximação da votação que vai escolher o novo presidente do país (no próximo dia 21), candidatos opositores do presidente Marcelo — que reúne as maiores chances de ser reeleito — têm feito duras críticas à condução do governo atual na pandemia.

Se no ano passado, a oposição decidiu se aproximar da fala escolhida pelos representantes atuais, agora o cenário parece ser diferente — o que tem levado os portugueses a questionarem as medidas e serem menos “obedientes” a elas. Essa diversidade de opiniões e falta de um discurso uníssono talvez tenha tido um pior reflexo na alta dos casos como nunca.

No domingo que vem, os portugueses se verão livres das restrições para sair de casa em prol de poderem fazer valer seu direito democrático. Muitos, todavia, vão torcer para que seja um dia de céu azul.

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