domingo 22 de dezembro de 2024
Trio de Bell Marques no Circuito Dodô (Barra/Ondina) durante carnaval 2020 em Salvador — Foto: Max Haack/Ag Haack
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domingo 4 de fevereiro de 2024 às 09:15h

Como o carnaval se profissionalizou: festa deve mover R$ 9 bilhões neste ano

CARNAVAL, DESTAQUE, NOTÍCIAS


“O carnaval é um imenso iceberg cuja ponta só emerge quatro dias por ano”, compara o cenógrafo Milton Cunha, comentarista da Rede Globo. “Quem olha a ponta, os desfiles das escolas, se deslumbra. Só que as pessoas não percebem que no restante do ano sua base gigante está lá, submersa, acontecendo o tempo todo.”

Ele prossegue: “O carnaval, hoje, é um investimento que retorna para as cidades, para a população. Na proporção de quatro reais para cada real investido. Não é investimento a fundo perdido”.

Dados da Confederação Nacional do Comércio (CNC) atestam segundo reportagem de  Carlos Eduardo Oliveira, do jornal Valor: em 2023, o carnaval movimentou no país, direta e indiretamente, R$ 8,2 bilhões. Foi uma cifra inédita até então, que corrobora o que análises anteriores já antecipavam: a maior festa do país cresce e multiplica-se. A “indústria do carnaval” abarca diferentes segmentos e é vital à saúde financeira de não poucos deles ao longo de todo um ano.

No momento em que a gigante multinacional de bebidas AmBev confirma o patrocínio oficial dos carnavais nas grandes capitais, em que o governo do Rio de Janeiro faz na festa carioca o maior investimento já noticiado (R$ 62,5 milhões – espera-se alto retorno em tributos) e em que importantes balizadores econômicos (a própria CNC, Fecomercio etc.) indicam o impacto econômico do carnaval em uma ampla paleta de setores, cabe apontar os holofotes para a tal porção oculta do iceberg – a indústria da folia.

Os dados da CNC, auferidos de cinco anos para cá, apontam para um impacto de R$ 9 bilhões neste ano – salto de 10% em relação a 2023. “São dados nacionais. Fazemos estimativas por regiões e conseguimos medir o impacto. Não é 100% preciso, mas é um cálculo bem aproximado”, explica Felipe Tavares, economista-chefe da CNC. Entram nessa conta múltiplos fatores: do mercado imobiliário, que se adapta especificamente para a data, a meios de viagem, transporte e hospedagem, agências de turismo, centros comerciais, varejo em suas múltiplas atividades, serviços especializados, restaurantes e postos de alimentação em geral, entretenimento (clubes, casas noturnas e congêneres) e muitos eteceteras.

Para Tavares, em um passado recente o próprio carnaval, por meio de quem o realiza, “ainda não se via da maneira tão profissional, como um todo, da forma que existe hoje. Mas a pandemia reforçou o quanto ele é importante. Atualmente, mais setores se especializam em serviços que antes não existiam, gerando uma verdadeira indústria e empregos regulares ou subcontratados ao longo do ano. E isso vem em um crescendo, porque cada vez mais cidades e regiões tentam estabelecer o seu próprio estilo de carnaval, com atrações e serviços diferenciados”.

Antônio Coelho: “A expectativa é de que a festividade injete cerca de R$ 2,5 bilhões na economia recifense” — Foto: Divulgação
Antônio Coelho: “A expectativa é de que a festividade injete cerca de R$ 2,5 bilhões na economia recifense” — Foto: Divulgação

“São números superlativos [da CNC], mas podem estar subestimados. Há muitos setores não contemplados nesse levantamento”, endossa Guilherme Dietze, assessor econômico da Fecomercio-SP. “A cadeia desencadeada pelo carnaval é muito transversal, muito ampla. Abrange o turismo como um todo, em seus parâmetros tradicionais, e inclui diversos outros comércios e serviços. Além do impacto ao longo do ano, o carnaval é a maior movimentação nacional em um curto espaço de tempo, é o país todo se movimentando em praticamente uma semana”, analisa.

Nas planilhas da Fecomercio, cerca de 570 atividades comerciais são impactadas, direta ou indiretamente, de Norte a Sul, pela movimentação turística causada pelo carnaval, “uma ativação crescente da economia, inclusive da economia criativa, que é tão transversal como outros setores”, explica Dietze. “Apenas um exemplo aleatório: não estão contabilizados nessa conta dados referentes a montagem de estruturas e palcos para desfiles e blocos, algo que acontece em todas as cidades do país, maiores ou menores, praticamente sem exceção”.

De qualquer forma, Dietze admite, os números da CNC, ainda que passíveis de ajustes, atestam a eloquência socioeconômica da festa. “No geral, as pessoas tendem a pensar no carnaval só como lazer, o que é normal. Mas ele é extremamente importante para a economia do país. Temos regiões que se preparam ao longo do ano e dependem muito do impacto do carnaval, inclusive para empregos regulares. É o caso da Bahia, onde Salvador e outras cidades compõem o destino carnavalesco mais maduro do país”.

A dimensão da folia baiana pode ser mensurada pelo total de investimentos na festa em 2023: R$ 90 milhões – contabilizada só a parte que cabe à Empresa Salvador Turismo, Saltur, de infraestrutura e atrações, sem incluir outros setores da esfera pública.

“O carnaval e os eventos em torno dele são a plataforma do nosso desenvolvimento econômico o ano todo”, assinala Isaac Edington, presidente da empresa. “Falamos de uma ocupação gigante em infraestrutura, de enorme magnitude econômica, que extrapola o setor de turismo e entretenimento e influencia todos os setores, gerando milhares de empregos.”

O orçamento da Saltur inclui tradicionais e importantes festejos pré-folia (Festival da Virada, Festa de Iemanjá, Lavagem de Itapuã etc.), “como estratégia para criar demanda antecipada de turistas e também reter o soteropolitano que costuma viajar para a praia ou interior”, explica Edington.

César Paci: “Todos absorveram a ideia, e São Paulo vestiu a fantasia do carnaval. E não quer mais tirar” — Foto: Divulgação
César Paci: “Todos absorveram a ideia, e São Paulo vestiu a fantasia do carnaval. E não quer mais tirar” — Foto: Divulgação

Com duração praticamente ao longo de todo o verão, a movimentação carnavalesca alimenta setores plurais e diversos que vão da construção civil a eletroeletrônicos, do segmento imobiliário à indústria de transformação. “Além disso, funciona como instrumento de promoção midiática e exposição nacional de Salvador e da Bahia em uma proporção que seria impagável, mesmo com todos os nossos recursos e investimentos.”

Edington ressalta que o atual grau de profissionalismo inerente à infraestrutura do carnaval da cidade – todo o planejamento fica pronto em junho – e o giro da roda da economia que daí resulta atrai cada vez mais a iniciativa privada, incluindo gigantes startups. “É um case de sucesso, hoje temos uma quantidade significativa de marcas investindo no carnaval de Salvador. Mas podemos ter mais.”

Ele lembra ainda de uma peça seminal à engrenagem do carnaval de Salvador: a economia criativa e os informais, ambulantes e congêneres. “É um fator extremamente importante, gente que trabalha o ano inteiro para isso e que com a renda do carnaval põe filho na faculdade, troca de carro, adquire casa própria, consome, paga seus impostos. Essa circulação nos ajuda a atrair investimentos privados e pagar a conta do carnaval. É o ciclo se fechando: o investimento no carnaval sendo repassado à cidade. Preparamos o cenário, investimos em conteúdo, e o investimento volta.”

Em São Paulo, cidade e estado, a renascença carnavalesca de cerca de dez anos para cá alinha-se ao tsunami dos blocos de rua – fenômeno nacional, aliás. “O cenário é cada vez mais estimulante, com muitas oportunidades tanto para quem produz e realiza a festa quanto para novos investidores”, avalia César Paci, o Cesinha, sócio-diretor da Oficina (plataforma do carnaval de rua paulistano, coletivo integrado por ex-executivos de marketing, do mercado financeiro e empreendedores culturais).

“Creio que a partir de um profissionalismo importante que trouxemos para o carnaval, os investimentos privados que têm acontecido e que incluem grandes setores como as fintechs vêm obtendo retornos expressivos ano a ano.”

Felipe Tavares: “Cada vez mais cidades e regiões tentam estabelecer o seu próprio estilo de carnaval” — Foto: Divulgação
Felipe Tavares: “Cada vez mais cidades e regiões tentam estabelecer o seu próprio estilo de carnaval” — Foto: Divulgação

Paci chama atenção para a natural vocação de São Paulo por atividades culturais que ocupem o espaço público, “vide eventos como a Virada Cultural e outros”, afirma. “O que aconteceu foi que, em termos de carnaval, todos passamos a ter um olhar mais cuidadoso. Produtores, blocos, agências, artistas, marcas, o poder público. Todos absorveram a ideia, e a cidade vestiu a fantasia do carnaval. E não quer mais tirar, hoje temos um dos maiores carnavais do Brasil.”

A estratégia, acredita, “mudou a configuração do carnaval da cidade e do país. São números muito expressivos, que impactam na economia e em milhares de postos de trabalho. Cultura é necessidade básica da população, e o carnaval, além de expressão grandiosa, é também uma força motriz de geração de renda, faz girar a economia criativa e diversos outros setores ao longo do ano”.

No Recife, do alto da tradição de um carnaval caracterizado por forte diversidade cultural – Galo da Madrugada, frevo, maracatu, caboclinhos, Noite dos Tambores Silenciosos – e por centenas de shows espalhados por incontáveis polos metrópole afora, os números também expressam grandiloquência carnavalesca. “O carnaval do Recife tem uma importância estratégica, seja para a cultura, para o turismo, mas, principalmente, para movimentar, incentivar e fortalecer a economia da cidade”, afirma Antônio Coelho, atual secretário de Turismo e Lazer.

Em 2023, cerca de 2,7 milhões de foliões esbaldaram-se no carnaval do Recife – neste ano, com o aumento do número total de shows e apresentações artísticas, são esperados 3 milhões. “A expectativa para 2024 é de que a festividade injete cerca de R$ 2,5 bilhões na economia recifense, um montante 25% maior do que em 2023”, diz Coelho. “O impacto imediato é a geração de 50 mil postos de trabalhos diretos e indiretos; são 50 mil famílias que adentram 2024 com uma situação financeira mais sólida. Mas esse reflexo econômico do carnaval se estende pelo ano inteiro.”

E há, claro, as escolas de samba. Para 2024, as 12 agremiações do Grupo Especial do Rio de Janeiro que desfilam na Marquês de Sapucaí embolsam, cada uma, R$ 2,2 milhões, de um repasse total de R$ 26,4 milhões.

Fábio Montibelo (dir.): “O carnaval é uma indústria (...) que gera oportunidades diretas e indiretas o ano todo” — Foto: Divulgação
Fábio Montibelo (dir.): “O carnaval é uma indústria (…) que gera oportunidades diretas e indiretas o ano todo” — Foto: Divulgação

Tome-se o exemplo da Unidos do Porto da Pedra. Com o enredo “Lunário Perpétuo: A Profética do Saber Popular”, homenagem ao ancestral almanaque originário do século XVI, a agremiação volta em 2024 à elite do samba do Rio após mais de uma década na divisão de acesso. Seu orçamento de R$ 12 milhões se espalha por uma grande cadeia de fornecedores.

“Atualmente, o carnaval é uma indústria que se divide entre o social e o espetáculo, e que gera oportunidades diretas e indiretas o ano todo”, assinala Fábio Montibelo, presidente de honra da escola de São Gonçalo (o segundo maior município fluminense).

“Internamente, temos uma folha de pagamentos de funcionários registrados em carteira, como qualquer empresa. De maio a fevereiro, entra a mão de obra sazonal. Por último, vem a mão de obra extra, que trabalha de agosto a fevereiro – essas duas últimas categorias respondem como PJs [pessoas jurídicas], com contratos renováveis ano a ano.”

Montibelo ressalta ser essa uma cadeia produtiva em várias frentes, e que todos os insumos, sejam aviamentos, tecidos e tintas, passando por alimentos e bebidas, são adquiridos no comércio de São Gonçalo, priorizando empreendedores locais.

Guilherme Dietze: “O carnaval é extremamente importante para a economia do país” — Foto: Divulgação
Guilherme Dietze: “O carnaval é extremamente importante para a economia do país” — Foto: Divulgação

Realizados ora na quadra, ora nos bairros (ocasião em que há o apoio da municipalidade), os ensaios pré-desfile movimentam até 5 mil pessoas por noite – cerca de 30% desse público emigra do Rio de Janeiro. “Os ensaios fomentam muito o comércio local, do transporte às lojas e à informalidade dos ambulantes, incluindo até salões de beleza. É uma força-tarefa, são vários trabalhadores que mantém suas casas em torno da Porto da Pedra.”

Salvo casos específicos (destaques em carros alegórico, por exemplo), a Porto da Pedra não cobra pelas fantasias de integrantes que pertençam à comunidade. Dos R$ 12 milhões necessários ao desfile na Sapucaí, a prefeitura de São Gonçalo participa com R$ 1,5 milhão. “Geramos dividendos e impostos para os cofres do município o ano todo, o que justifica a subvenção. Quando o município investe, está reafirmando que enxerga a escola de samba como agente fomentador cultural e econômico”, afirma.

Na extensa cadeia do turismo receptivo do carnaval, setores do elo final, aquele que lida diretamente com o cliente, também necessitam de uma azeitada engrenagem. Destaque há seis anos na Marquês de Sapucaí, o camarote Rio Praia hospeda glamourosamente 1.300 convivas por noite.

“Essas cinco noites na Sapucaí demandam um ano inteiro de preparo”, comenta o empresário de entretenimento Bruno Rios. “Como as escolas de samba, assim que termina um carnaval, começamos outro. São inúmeras empresas envolvidas, de diversos segmentos, meses e meses de negociações, seja no marketing de uma nova temática, renegociação com marcas, renovação de licenças, captação de clientes etc.”

Sem o sol a sol de uma equipe que inclui colaboradores até na esfera jurídica, de engenharia e de arquitetura, e que com o correr do calendário é engrossada por dezenas de contratações temporárias, Rios põe em xeque qualquer êxito. “O carnaval não é diferente, por exemplo, do Rock in Rio, que acontece a cada dois anos, mas que de fato nunca para. Trata-se de uma estrutura gigantesca para a qual cada vez mais gente se qualifica para uma vida profissional em torno do produto carnaval e seus diferentes segmentos.”

O atual círculo virtuoso do carnaval talvez encontre sua mais completa tradução em um inovador projeto no segmento de eventos corporativos. Com duas edições já realizadas (a última, em novembro de 2023), a Expo Carnaval Brazil equilibra o lastro cultural ao negócio da maior festa do país – um de seus parceiros é a Rede Cidades do Carnaval, entidade que reúne representantes da organização dos carnavais de São Paulo, Rio de Janeiro, Olinda, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Brasília.

“Nosso pilar é o viés cultural e artístico, mas também o viés econômico do carnaval”, define a empresária Tuca Zamaroni, CEO da Zum Brasil Eventos, agência idealizadora da feira. “Atualmente o carnaval abrange uma enorme movimentação financeira, mas podemos mais. Parte dessa economia ainda é informal, não no sentido de impostos, mas de acontecer de uma forma que pode ser mais organizada. Nosso objetivo é contribuir para a mudança de mindset, gerar o diálogo, a transformação. E uma feira é uma situação na qual isso é possível.”

Essa transformação inclui tentar discutir o clichê da “bagunça” inerente aos festejos de Momo, que em sua opinião contribui para que o espectro das grandes companhias investidoras na festa restrinja-se, por exemplo, a bebidas e alguns outros poucos segmentos.

“Boa parte das empresas ainda enxerga o carnaval como não aderente a suas marcas. Um banco patrocina eventos culturais, mas não patrocina o carnaval. Tem exageros? Claro que tem. Mas estamos falando de uma expressão cultural da mais genuína qualidade e originalidade, e que hoje movimenta setores importantes e gera empregos o ano todo.”

Para a empresária, “carnaval é conteúdo e experiência, e é isso que tentamos mostrar através da Expo Carnaval. O de Salvador, o de Floripa e o de Cuiabá são diferentes, e nisso reside sua riqueza”. Com ou sem abadá.

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