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segunda-feira 3 de abril de 2023 às 06:41h

Como crise em Israel deflagrou batalha pela identidade nacional do país

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Enquanto pneus queimavam na principal rodovia de Tel Aviv, médicos deixavam hospitais e o principal aeroporto de Israel era fechado, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu mantinha o país esperando.

Protestos e paralisações sem precedentes tomaram conta de Israel na segunda-feira (27) — o clímax de meses de conflitos em torno dos planos do governo de diminuir o poder dos juízes de Israel.

Agora, com uma nação em crise, todos os lados esperavam que o primeiro-ministro agisse.

Quando finalmente apareceu na rede nacional de TV — maximizando o impacto com um discurso ao vivo no horário dos telejornais noturnos das 20h —, o primeiro-ministro israelense escolheu comparar sua posição à do rei Salomão.

Assim como o monarca bíblico teve que julgar qual de duas mulheres era a verdadeira mãe amorosa de um bebê, disse Netanyahu, ele próprio precisou tomar uma decisão diante de dois lados que se colocavam sobre a reforma no judiciário que propôs.

O primeiro-ministro anunciou que estava suspendendo a reforma até a próxima sessão do parlamento e afirmou que “estenderia a mão” em “compromisso” e “diálogo” com os parlamentares da oposição.

O anúncio parece ter feito o suficiente para tirar a crise da beira do abismo por enquanto e para ter dado espaço à oposição para cobrar o compromisso com o diálogo prometido por Netanyahu.

A fala também dividiu o vasto movimento que fazia campanha contra as reformas: os maiores partidos da oposição no parlamento saudaram cautelosamente a decisão, enquanto os líderes de manifestações de rua se mostraram mais desconfiados, prometendo continuar com os protestos.

Netanyahu em cadeira do parlamento, com outro homem ao seu lado cochichando

Benjamin Netanyahu (esq.) afirmou que iria ‘pausar’ a reforma para evitar uma ‘ruptura no povo’ CRÉDITO,REUTERS

Mas as grandes questões subjacentes a esta crise permanecem sem solução, e inclusive estão se agravando: judeus israelenses amargamente divididos sobre o papel da religião e do Estado; a perigosa fragilidade dos controles sobre o poder do governo; e um vazio total nas soluções para um futuro compartilhado com os palestinos.

Netanyahu continuou com sua metáfora. Assim como uma mãe não estava disposta a ver o rei Salomão cortar o bebê em dois, ele não estava disposto, disse, a dividir o país.

Muitos de seus críticos dizem, no entanto, que o primeiro-ministro teve meses para diluir ou interromper as contestadas reformas que iniciou. Os opositores o acusam de deixar o país chegar ao ponto de ebulição primeiro.

As palavras de Netanyahu implicam que uma minoria entre seus oponentes era culpada pela crise — eles sim estariam preparados para cortar o bebê ao meio.

A narrativa parece desenhada para ressaltar as linhas divisórias e para dar a Netanyahu o ar de único capaz de salvar o país de si mesmo.

Divisões profundas

Os protestos se intensificaram depois que Netanyahu voltou ao poder no final do ano passado, liderando o governo mais nacionalista e de direita da história de Israel e prometendo restringir os poderes do judiciário.

Ele arquitetou uma aliança de partidos de extrema direita para conseguir apoio suficiente para formar uma coalizão — e tornou-se cada vez mais dependente desses partidos na atual crise.

A reforma no judiciário daria ao governo controle total sobre o comitê que nomeia juízes e, em última instância, retiraria da Suprema Corte poderes cruciais para derrubar leis que pudesse considerar efetivamente inconstitucionais.

Esses projetos desencadearam uma das maiores disputas políticas e sociais da era moderna de Israel — abastecida em boa parte pelos temores de opositores de que o governo ultrarreligioso e de extrema direita estava rapidamente levando o país a um regime teocrático.

Outros apontaram que as mudanças poderiam ajudar a proteger Netanyahu de processos judiciais em que é acusado de corrupção.

Já para os defensores do projeto, ele iria conter os “exageros” de juízes que eles acusam de agir politicamente contra os interesses da agenda nacionalista, a qual teria o apoio da maioria dos israelenses.

Mas a oposição se espalhou profundamente entre os reservistas militares, fazendo com que os chefes de segurança avisassem Netanyahu de que a dissidência estava afetando a capacidade operacional das Forças de Defesa de Israel.

Isso levou o ministro da Defesa, Yoav Gallant, a pedir publicamente a suspensão das reformas. Netanyahu então o demitiu, provocando a crise de segunda-feira.

Cessar-fogo

Grande parte da demora de Netanyahu falar na segunda-feira ocorreu porque ele estava negociando com ministros de extrema-direita da sua coalizão — estabelecendo o preço por decidir pausar as reformas.

Isso ficou claro na noite de segunda-feira, quando o ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir — de extrema-direita e do partido Otzma Yehudit (Poder Judeu) —, anunciou que levaria adiante seus planos de uma “guarda nacional”, aparentemente financiada por um orçamento multibilionário.

Esta seria uma força armada móvel que responderia diretamente a ele. Anteriormente, Itamar Ben-Gvir havia falado que essa força seria destinada a reprimir problemas em cidades árabes-judaicas ou em áreas de alta criminalidade e com muitos cidadãos palestinos de Israel.

Aqueles que se opõem ao plano — até mesmo alguns da polícia israelense — veem esta guarda como uma futura milícia privada. Berti Ohion, ex-chefe de operações policiais, disse na terça-feira que tal força criaria “caos”, levando dois órgãos de segurança a operar em uma mesma área.

A formação política de Ben-Gvir remonta a um violento movimento supremacista judeu que é proibido no parlamento israelense. Ele tem condenações anteriores por incitação racista e antipalestina e por apoiar um grupo terrorista.

Seus apoiadores se reuniram do lado de fora do parlamento israelense na noite de segunda-feira, enquanto grupos de extrema-direita foram posteriormente filmados atacando pedestres palestinos.

Enquanto isso, os palestinos na Cisjordânia ocupada acreditam que os colonos israelenses se sentem mais encorajados do que nunca pela presença de seus partidos ultranacionalistas no governo de Israel — uma atmosfera que ajuda a alimentar a recente onda de ataques envolvendo palestinos e colonos.

Seis palestinos ficaram feridos na segunda-feira em um ataque a casas e veículos na cidade de Hawara, na Cisjordânia, enquanto a crise política se intensificava no país.

Na semana passada, dois soldados israelenses foram feridos em um ataque conduzido por um grupo palestino.

A cidade foi palco de um tumulto por parte de colonos armados no mês passado, deixando um homem morto e centenas feridos — depois que dois israelenses foram mortos a tiros por um atirador palestino.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, de extrema-direita, eventualmente pediu que a cidade fosse “eliminada”.

Alguns manifestantes israelenses contrários ao governo compararam o uso da força policial contra eles com a falta de ação contra os colonos na Cisjordânia.

“Onde você estava em Hawara?”, eles gritavam para agentes em Tel Aviv.

Os principais grupos de oposição reivindicaram que a luta por valores seculares e liberais é a verdadeira demonstração do sionismo, patriotismo e democracia.

As manifestações estavam repletas de bandeiras israelenses. O líder da oposição, Yair Lapid, referiu-se à coalizão religiosa e de extrema direita de Netanyahu como “antissionista” e como uma perigosa ameaça à segurança nacional.

Esta é uma batalha pela identidade do Estado israelense.

Sem um cronograma detalhado sobre a promessa de Netanyahu de interromper as reformas e conduzir negociações, seu discurso na segunda-feira marca apenas um cessar-fogo; a luta está para recomeçar.

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