Como ministro da Indústria, líder revolucionário antecipou adversidades econômicas que o país caribenho enfrentaria a partir da queda da URSS, culminando com a fase pós-pandemia. E propôs soluções – sem sucesso.Um apagão de três dias que ocorreu em meados de outubro em Cuba e deixou praticamente toda a população às escuras é mais uma marca da maior crise econômica que a ilha caribenha passa desde o colapso da União Soviética. A partir da pandemia causada pelo coronavírus, a moeda cubana perdeu valor, a inflação disparou, e as prateleiras das lojas estão quase sempre vazias.
As raízes da crise atual, como a dependência de importações, a baixa produtividade e a falta de diversificação econômica são problemas cubanos centrais. Contudo, elas remontam a questões estruturais que Ernesto “Che” Guevara, um dos líderes da Revolução que derrubou o ditador Fulgêncio Batista em 1959, discutiu há mais de meio século.
Faceta menos conhecida do chamado “guerrilheiro heroico”: Che foi presidente do Banco Nacional de Cuba e, posteriormente, ministro da Indústria, na década de 1960. Sua gestão foi marcada pela busca constante de industrialização, pela elevação da consciência dos trabalhadores como forma de melhorar a produtividade, e pela diversificação agrícola, a fim de tornar a ilha menos dependente dos recursos externos.
Sem ser economista ou acadêmico, o argentino achava importante “utilizar técnicas capitalistas e a tecnologia das nações desenvolvidas” e “criar mecanismos para garantir a modernização industrial e, ao mesmo tempo, trabalhar para a elevação da consciência dos trabalhadores”, segundo Luiz Bernardo Pericás, autor de Che Guevara e o debate econômico em Cuba, ganhador do prêmio Jabuti de 2017.
“Che conduz um debate, que já vinha ocorrendo em Cuba mesmo antes da Revolução, sobre como modificar as relações sociais, reestruturar o Estado, nacionalizar terras e empresas estrangeiras, definir o papel do banco central e do comércio exterior, incrementar o setor industrial e, tudo isso, tentando respeitar as características nacionais. Ele não vai tentar replicar o que estão fazendo na URSS, e procurar soluções para que Cuba possa ser um país soberano em vários aspectos.”
Sequelas da dependência da União Soviética
A falta de energia elétrica para a população é apenas um detalhe dentro dos muitos problemas macroeconômicos que Cuba enfrenta. De acordo com o governo, a economia do país diminuiu 2% em 2023, enquanto a inflação oficial chegou aos 30%.
Em 2024, pela primeira vez na história, o governo pediu auxílio ao Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU, para manter a distribuição de leite a crianças menores de sete anos. Além disso, aumentou o preço dos combustíveis em mais de 500%, em meio a um plano de ajuste fiscal.
Segundo o primeiro-ministro do país, Manuel Marrero Cruz, Cuba não alcançou as receitas de exportação planejadas, e ainda há um enorme déficit cambial. Os bens e serviços não estão se diversificando, e não houve um aumento sustentável da produção, principalmente no que diz respeito aos alimentos. Enquanto isso, o investimento estrangeiro no desenvolvimento econômico é insuficiente.
Para Paulo Feldmann, professor da FIA Business School e da Universidade de São Paulo (USP), o país foi refém de subsídios soviéticos e, após o fim do auxílio financeiro, não conseguiu desenvolver meios para estabilizar sua economia.
“Cuba se deixou levar pela ajuda soviética durante 30 anos. Com o fim do país, foi pega de surpresa e não soube criar mecanismos para viver nesse novo mundo, esse novo mundo que já não é mais socialista. Outros países implantaram mecanismos capitalistas e conseguiram se dar muito bem, como a China e o Vietnã. Mas Cuba, infelizmente, falhou nessa questão.”
Visão econômica profética de Che
A possibilidade de uma crise, contudo, não é novidade para os cubanos desde a Revolução. Enquanto ministro da Indústria e presidente do Banco Nacional cubano, Che Guevara buscou medidas macroeconômicas que pudessem tirar a ilha da dependência externa, aumentassem o consumo interno, e valorizassem diversificação da economia – medidas que suavizariam a atual crise se implementadas.
John Lee Anderson, autor de Che Guevara, uma biografia, afirma que, segundo o revolucionário argentino, para livrar-se da economia baseada na exportação do açúcar, Cuba precisava estabelecer um processo de rápida industrialização, mesmo que o governo Batista a tenha deixado praticamente sem dinheiro.
“Temos que aumentar a industrialização do país, sem ignorar os muitos problemas que esse processo traz consigo”, disse Che, citado por Anderson. “Porém uma política de crescimento industrial exige certas medidas tarifárias que protejam a indústria nascente e um mercado interno capaz de absorver novos produtos. Não podemos expandir esse mercado, a menos que demos acesso às grandes massas camponesas, aos guajiros, que hoje em dia não dispõem de poder aquisitivo, mas têm necessidades a serem satisfeitas.”
Ou seja, para o revolucionário, era necessário a ilha produzir mais do que apenas açúcar. Ele insistia em priorizar a diversificação agrícola e promover uma base industrial sólida. Para isso, tentou sem sucesso que a União Soviética financiasse uma grande siderúrgica e projetos de energia, além de expandir o mercado consumidor externo e interno para os produtos cubanos.
“A situação é que você tem um país que, talvez, não tenha condições de ter esse desenvolvimento tão rápido, o que traz uma diversidade de problemas”, explica Pericás. “Investimentos em educação e saúde exigem a alocação de recursos financeiros significativos, e o país ainda passava por uma reduzida oferta interna de bens de consumo e serviços. Por falta de quadros técnicos, parcos recursos financeiros, Che pensa num sistema orçamentário de financiamento, que vai se contrapor ao da URSS, que ele via como problemático.”
Na encruzilhada entre ideologia e economia
Che imaginava, ainda, que a elevação da consciência revolucionária dos cubanos traria ganhos de produtividade, prossegue o autor: “O trabalho voluntário tem um papel ideológico importante, mas também econômico. [Che] acha que o estímulo moral tem que ser o foco principal, ao aprimorar a consciência política do indivíduo, mas também vai estudar diferentes modalidades de incentivos e a combinação de morais com materiais.”
Apesar da insistência de Che, a dificuldade de industrializar Cuba sem dispor do volume de capital necessário levou o governo a buscar maior rentabilidade no curto e médio prazo, dando ênfase às exportações de cana, aumentando o comércio com o bloco socialista.
“Quando Cuba fez sua revolução, era basicamente monoprodutora de açúcar. O processo de transição para uma economia diversificada é muito complexo. É difícil num país grande, e em Cuba ainda é maior, que tem escassez energética constante e escassez de capital”, analisa a professora da Unicamp Aline Marcondes Miglioli, uma das autoras do livro Entre a utopia e o cansaço – pensar Cuba na atualidade.
Che, por sua vez, acabou por sair de Cuba sem conseguir uma grande industrialização cubana. No contexto da Guerra Fria, o país acabaria optando por ser fornecedor de produtos básicos, importando produtos de maior valor agregado dos aliados que, quando se voltaram para o capitalismo, deixaram a ilha sem opções para enfrentar crises como as atuais.