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domingo 28 de fevereiro de 2021 às 09:46h

Como as eleições municipais afetam os serviços públicos no Brasil

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O que acontece com os serviços públicos no Brasil alguns meses antes e pouco depois das eleições municipais?

Segundo reportagem do G1, o acesso à saúde pública piora – e fica ainda mais precário caso o candidato à reeleição perca a disputa -, incumbentes tentam contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei das Eleições para empregar possíveis aliados, e demissões e contratações em massa provocam caos na prestação de serviços, além de servirem para “ajustar” as contas dos municípios.

Essas foram algumas das descobertas apresentadas pelo pesquisador Guillermo Toral em sua tese de doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, na qual o acadêmico espanhol analisou, entre outros temas, como políticas dinâmicas em quatro eleições municipais afetaram serviços públicos, em especial a saúde, entre 2002 e 2016.

“Estamos acostumados com a dinâmica de que na campanha o político fica mais responsável. Então, a minha premissa era de que antes e durante a eleição a prestação de serviços de saúde melhoraria. Na verdade, os dados mostram que ela piora”, diz à BBC News Brasil Toral, atualmente professor assistente na Universidade Vanderbilt (EUA).

Pela Constituição de 1988, compete aos municípios oferecer (com a ajuda dos Estados e da União) saúde básica e educação a seus habitantes. As prefeituras devem gastar no mínimo 40% de seus recursos nestes dois setores (15% para saúde e 25% na educação), que costumam figurar entre os mais importantes para a população nas eleições municipais.

Ainda assim, o pesquisador identificou que durante o período eleitoral o número de consultas de pré-natal diminuiu, em média, 2,6% em setembro e 10% em dezembro, por exemplo.

Quando o prefeito perdeu, a situação piorou: consultas de pré-natal caíram 13,7% no último trimestre do mandato (e seguiram em queda de 14,7% no primeiro trimestre da nova administração); exames de pré-natal diminuíram 13,7% no período; e consultas médicas com bebês e crianças despencaram 19,3% e 23,3%, respectivamente, assim como visitas de enfermeiros (queda de 24,9%) e médicos (-39%). Essas baixas não foram compensadas no início da gestão seguinte.

Toral optou por dados de saúde materna e da criança porque eles envolvem consultas não eletivas, sendo assim mais simples estabelecer uma relação entre oferta e acesso a serviços. O Ministério da Saúde recomenda ao menos sete consultas de rotina no primeiro ano de vida da criança – e outras duas no segundo ano – para avaliar o seu desenvolvimento.

Caso o número de consultas caia, argumenta Toral, não se trata de as crianças estarem “mais saudáveis ou porque os pais resolveram não levá-las à Unidade Básica de Saúde” (UBS). “Há um calendário de consultas para acompanhá-las. Essas quedas falam sim de um efeito negativo na prestação de serviço de saúde.”

Para chegar a essas conclusões, Toral analisou dados do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema de Informação da Atenção Básica à Saúde (SIAB) entre 2004 e 2015, e informações anuais sobre contratações/demissões de milhões de funcionários públicos municipais (apenas em 2016, por exemplo, foram quase 6 milhões de contratos) em 4.909 municípios (661 foram descartados por falta de dados) pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério da Economia.

Empregadores de todo o país, incluindo governos municipais, precisam inserir os dados de seus funcionários nesta plataforma, como o tipo de contrato e nível de educação.

O pesquisador ainda se baseou em mais de 120 entrevistas em profundidade com promotores, juízes, secretários municipais de Educação, Saúde, Assistência Social, gestores de UBS, entre outros atores, em sete Estados durante 18 meses de trabalho de campo.

Então porque o sistema de saúde sofre durante as eleições?

Há uma série de fatores envolvidos, mas utilizando métodos estatísticos avançados que buscam estabelecer conexões causais entre diversas variáveis (por exemplo, derrota nas eleições com o aumento de demissões de servidores), o acadêmico identificou uma relação forte com a rotatividade de funcionários públicos durante o período eleitoral, uma vez que prefeitos possuem liberdade significativa para definir contratações e demissões de empregados, incluindo professores e médicos.

Vai e vem de servidores

A tese mostra que pouco antes do período eleitoral, entre junho e julho, há “ciclos significativos” na contratação e demissão de funcionários municipais. Essa seria uma estratégia dos prefeitos para contornar restrições legais aplicadas nos últimos dois trimestres do mandato para coibir o uso político de cargos públicos durante o pleito.

A Lei das Eleições proíbe a contratação, nomeação, demissão sem justa causa e a transferência e exoneração de servidores do município nos três meses anteriores à data da eleição. Já a LRF veda o aumento da despesa com pessoal entre 5 de julho e 31 de dezembro do último ano da gestão.

A rotatividade de empregos é mais presente em contratos temporários – que representam um terço do funcionalismo público municipal, segundo Toral -, porque são mais simples de manipular do que acordos de servidores concursados. Essa movimentação, diz a tese, aparenta ser “muito mais forte” quando os prefeitos “estão expostos a níveis mais elevados de competição eleitoral”.

As contratações aumentam 20,8% em junho em um ano eleitoral na comparação com o mesmo período de um ano sem eleições (alta de 15,1% entre não concursados e 8,6% para concursados). Por outro lado, há uma queda de 34,8% nas contratações em agosto e 12,6% em dezembro.

Em janeiro, já na nova gestão e sem congelamento de pessoal, as admissões sobem 143% comparadas ao mesmo período sem eleição. Essa trajetória se mantém em fevereiro (22,1%) e março (27,6%).

Os dados sugerem que essa rotatividade é “de natureza clientelística”, uma vez que trabalhadores “de baixa escolaridade” (e menor renda) “têm maior probabilidade de serem contratados e demitidos na época das eleições” do que no mesmo período não eleitoral.

Durante o congelamento, entre agosto e novembro, as contratações tendem a ser de níveis mais elevados de instrução – que seriam mais fáceis de se justificar -, e novamente mais baixos em janeiro e fevereiro.

“Não é segredo que o emprego público é um recurso político importante. Quando você vai ao interior, ouve-se muito essa ideia de que ‘aqui a política é bem intensa’ e ‘a gestão não pode ser separada da política’. Há a ideia de que o emprego público é um recurso político que de algum jeito está muito polarizado”, explica Toral.

As demissões seguem um padrão semelhante ao das contratações. As saídas diminuem na fase eleitoral e sobem após o pleito, “sugerindo que os prefeitos tentam compensar a inflação pré-eleitoral com demissões” para “ajustar” as finanças do ano fiscal.

Em agosto de um ano eleitoral, por exemplo, há 14,3% menos demissões. Mas as saídas aumentam 44,4% em outubro e 90,9% em dezembro. As demissões no fim do mandato afetam mais os funcionários com menor escolaridade.

O pesquisador ressalva que cargos de confiança não estão sujeitos ao congelamento de pessoal e que algumas saídas são de servidores aposentados ou falecidos e de funcionários que foram candidatos nas eleições e precisam deixar suas vagas, mas as saídas “devem-se principalmente às ações dos empregadores”.

Rotatividade de funcionários causa caos no sistema de saúde

Quando o candidato à reeleição perdeu a disputa, a situação na saúde se deteriorou. Aqui também aumentaram as demissões e contratações, levando a interrupções na entrega de serviços públicos “devido a essas mudanças burocráticas e ao enfraquecimento da responsabilidade intra-governo nos meses após a eleição”.

A dispensa de temporários subiu 42% no último trimestre do ano eleitoral quando o prefeito perdeu, contra 26,2% quando ganhou.

As contratações de temporários nos primeiros três meses da gestão do novo prefeito subiram, em média, 99,2% comparadas às daqueles municípios onde o titular foi reeleito.

“Esses resultados estão de acordo com pesquisas anteriores que mostram que, no Brasil, os vencedores das eleições usam nomeações burocráticas para recompensar seus apoiadores”, diz a tese.

De acordo com Toral, o declínio na oferta de serviços de saúde pode ser provocado por diversos fatores, incluindo a rotatividade de funcionários especializados (médicos e enfermeiros, por exemplo), a menor responsabilização/monitoramento de servidores após a derrota do prefeito, e outras medidas que afetam o trabalho dos profissionais nestes cerca de três meses em que o derrotado ainda tem poder de decisão e a posse do novo governo.

“[Os prefeitos] podem mexer com a contratação de insumos importantes à prestação de serviços. Por exemplo, um entrevistado me falou que se o prefeito perde, eles cancelam os contratos de transporte e a gente não tem como ir para zona rural”, explica.

Para chegar às conclusões de como o acesso à saúde piorou quando o prefeito foi vencido nas urnas, o pesquisador comparou os municípios nos quais o incumbente é reeleito por uma pequena margem e aqueles onde o prefeito perde por pouco.

Essa escolha metodológica, explica Toral, ocorreu porque uma comparação simples entre todos os candidatos seria “tendenciosa”, pois prefeitos reeleitos facilmente tendem a gerir melhor a cidade. E aqueles que antecipam uma derrota ampla poderiam realizar uma rotatividade de servidores maior e a prestação de serviços públicos poderia ser menor antes da eleição.

Derrotados nas urnas se “vingam” dos vencedores

Quando perdem, os prefeitos ainda têm poder para afetar a gestão do candidato vencedor. E para isso podem utilizar os contratos de concursados, que apesar de estarem mais isolados de elementos políticos não estão imunes a eles. Geralmente, os prefeitos decidem quantos servidores efetivos aprovados em concursos serão convocados e quando.

Toral argumenta que os prefeitos derrotados “fazem uso estratégico de seu arbítrio nas nomeações burocráticas, em resposta a seus incentivos políticos únicos”. Ou seja, costumam contratar concursados no fim do mandato para limitar a capacidade fiscal da nova gestão de empregar seus próprios apoiadores em cargos temporários.

As análises das entrevistas qualitativas, diz o pesquisador, sugerem que os derrotados usam demissões de temporários no fim do mandato para “limpar as contas” e reduzir as chances de processos sobre possíveis atos ilícitos quando o novo titular tiver acesso aos dados da administração anterior.

Limitar o impacto negativo das eleições municipais na oferta de serviços públicos à população exige abordagens mais criativas, como encurtar o tempo entre a data do pleito e a posse do vencedor. “Não se justifica ter um período tão longo. Para a imensa maioria dos municípios há quase três meses onde uma pessoa que está de saída segue tomando decisões”, diz Toral.

“E isso pode ferir tanto por ação quanto por omissão porque parte do trabalho dos secretários e do prefeito é de supervisão do serviço público. Mesmo se eles não fazem nada, isso pode ferir a saúde, a educação, etc”, completa.

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