O homem que veste o inconfundível boné vermelho do MST e desce do palanque para ser tietado por pequenos agricultores e produtores de leite, com pedidos de selfies, abraços e sorrisos, é o mesmo que uma década antes prometia tolerância zero com as invasões de terra promovidas pelo grupo que agora abraça. Para quem tinha dúvidas, na sexta 24, em Andradina (SP), o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), pré-candidato a vice na chapa presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, mostrou que será capaz de vestir literalmente o figurino da esquerda ao longo da campanha, sem constrangimento ao que sempre defendeu em sua carreira. Em sua estreia nos palanques ao lado de outro ex-adversário, Fernando Haddad, candidato petista ao governo de São Paulo, Alckmin mostrou-se totalmente à vontade. “Quero dizer aos produtores de chuchu que vocês não serão esquecidos”, disse, fazendo piada com o apelido criado pelos rivais para se referir ao jeito insosso do ex-mandatário do Palácio dos Bandeirantes em quatro ocasiões. Ao fim, com o microfone, pediu a Haddad para aumentar o valor repassado pelo governo aos produtores rurais — que só será possível, claro, se o petista vencer o páreo.
Desde que embarcou na canoa de Lula, Alckmin vem se desdobrando à esquerda e ao centro. A primeira parte da missão parece hoje mais fácil. Com o jeito diplomático e a disposição de encarar a campanha como uma espécie de última oportunidade de sair do ostracismo político a que parecia relegado após o vexame de 2018, o ex-tucano venceu boa parte das resistências dos seus novos companheiros e fez o chuchu se tornar mais palatável entre a turma. Já contabilizado positivamente o simbolismo de que a sua presença ao lado de Lula cria a sensação de uma corrente pluripartidária contra Jair Bolsonaro (PL), Alckmin se dedica agora nos bastidores à tarefa de transformar tal trunfo em apoios políticos.
Sem um escritório formal, o ex-tucano começou a despachar em uma padaria na região do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. No início, seus planos eram estaduais, mas o PSDB foi lhe tomando o espaço, ocasionando a migração para o PSB e, posteriormente, resultando na improvável chapa com um antigo adversário político. A partir de maio, as hostilidades que vinha recebendo de parte dos frequentadores do espaço o fizeram mudar de ideia. Hoje, articula em um escritório do PSB na Avenida Nove de Julho, nos Jardins, onde recebe entre vinte e trinta pessoas por dia, de duas a três vezes na semana. Ali, procura construir pontes entre o PT e grupos historicamente refratários ao partido.
Essa lista de contatos inclui empresários, membros da ala mais conservadora da Igreja Católica, ex-aliados e até tucanos históricos. “Com o tempo eu acho que mais membros do PSDB vão demonstrar apoio ao Lula, à medida que ele vai dando os sinais”, diz o ex-senador Aloysio Nunes Ferreira, um dos poucos líderes tucanos que afirmaram publicamente que vai votar no petista. “Mas desde que ele não seja hostil com o PSDB. O partido está enfraquecido, perdeu substância política nos últimos anos, mas continua existindo”, ressalta, referindo-se à fala de Lula de que a legenda havia acabado. Um dos primeiros sinais que o petista mandou aos tucanos ocorreu na terça 28, durante jantar na casa do empresário Sérgio Renault, um dos muitos organizados pelo Grupo Prerrogativas, de advogados alinhados ao PT. Em discurso a cerca de trinta convidados, Lula disse que os embates com FHC eram “um luxo” e que “um ganhava, o outro perdia, e todos se encontravam nos mesmos restaurantes”.
Enquanto tenta convencer antigos aliados a trocar a camisa polo azul e amarela pela camiseta vermelha, Alckmin também tem a incumbência de fazer o meio de campo com o ex-presidente Michel Temer, um dos principais alvos do PT desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A ação tem dois objetivos: sinalizar a Temer uma (até outro dia) impensável reaproximação com Lula e tentar isolar Bolsonaro. Alckmin e Temer se reuniram no último dia 24, no escritório do ex-presidente, no Itaim, em São Paulo. Entre os assuntos, as propostas petistas para revisar a reforma trabalhista e revogar o teto de gastos, medidas implantadas na gestão do MDB. Alckmin agiu como bombeiro, garantindo que quaisquer alterações só ocorrerão com muito debate.
Visto como “golpista” por boa parte do PT e apoiando a candidatura de Simone Tebet ao Planalto (como o PSDB), um projeto que dificilmente escapará do fracasso, Temer se aproximou de Bolsonaro, mas ainda não se manifestou sobre possíveis apoios em um segundo turno entre Lula e o presidente. Nesse caso, vale a máxima que justifica o envio de Alckmin para afagar Temer: em política, se não é possível obter apoio formal, é melhor ainda não fazer inimigos. Em outros termos, obter a neutralidade do emedebista já seria considerada uma vitória.
Ao mesmo tempo que mira as costuras e acordos federais, o ex-governador ocupa-se com o projeto de se vingar do antigo partido, tirando o PSDB do Bandeirantes. Embora seja aliado do PT, ele iniciou a campanha dando apoio ao também ex-governador Márcio França (PSB), em gratidão ao esforço desse político para colocá-lo na chapa presidencial de Lula. Mas a recente aparição de Alckmin no palanque de Haddad é o sinal claro de que França sairá do páreo, optando por concorrer a uma vaga no Senado por São Paulo (movimento dado como certo, mas ainda não confirmado até a tarde de quinta 30). Atual líder das pesquisas, Haddad é o favorito para chegar ao segundo turno. Sem França no páreo, a outra vaga será disputada pelo candidato de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo governador Rodrigo Garcia (PSDB), que herdou o comando do estado após a renúncia de João Doria, em março.
Político hábil, Garcia tratou de construir um arco de apoios que inclui até partidos que estão longe dos tucanos em nível nacional, como União Brasil, PL e parte do Republicanos de Tarcísio. Garcia também tenta barrar a influência de Alckmin junto a antigos prefeitos do interior e promove duas ações semanais, com seu secretariado a tiracolo, em cidades diferentes. O próprio Doria, em entrevista a VEJA na semana passada, creditou a sobrevivência do PSDB ao triunfo paulista. “O futuro do partido depende de São Paulo e da vitória do Rodrigo Garcia ao governo”, afirmou.
Não é só em São Paulo e na candidatura ao Palácio do Planalto que Geraldo Alckmin, Lula, PT e PSB precisam se entender. Para costurar acordos e proporcionar palanques nos estados, as legendas necessitam desatar nós em lugares como o Rio Grande do Norte, onde o PSB pleiteia um posto na chapa da governadora Fátima Bezerra (PT). No Rio de Janeiro, o entrave se dá por causa da indicação de Alessandro Molon (PSB) ao Senado, na chapa de Marcelo Freixo (PSB) — o PT quer André Ceciliano. No Rio Grande do Sul, PSB, com Beto Albuquerque, e PT, com Edegar Pretto, têm candidatos ao governo.
A despeito do relativo sucesso em sua estreia no palanque petista, a dúvida que fica é até que ponto Alckmin tem capacidade para trazer mais eleitores a Lula. Na eleição de 2018, obteve 4,76% da votação total e ficou em quarto lugar. No estado de São Paulo, dobrou a votação (9,52%), mas também não passou da quarta colocação. “A polarização que sempre foi entre PT e PSDB mudou de curso em 2018, mas não podemos esquecer que o Alckmin governou São Paulo por catorze anos e tem grande prestígio no interior. Mas ele vai precisar furar a bolha para conquistar votos da classe média”, diz o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV-SP.
A concretização da aliança Lula-Alckmin teve o inegável efeito de trazer de volta o ex-tucano ao protagonismo político nacional. Embora fosse o favorito nas pesquisas para o governo de São Paulo, ele trocou a quase certa pecha de liderança regional por um papel central na até agora favorita candidatura ao Planalto. Enquanto Lula, até aqui, atrai para a sua coalizão os partidos de esquerda, a quem acena com discursos e propostas que flertam com a irresponsabilidade fiscal, Alckmin vai articulando em silêncio com gente que não se verá no palanque de Lula, mas que será decisiva para uma vitória petista. O caminho do ex-tucano não é fácil nesse casamento de conveniências com o PT, como mostram as vaias que tomou em Natal há duas semanas da plateia de esquerda. Afinal de contas, não é todo mundo que gosta de chuchu.
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796