Há um ditado japonês, sem origem definida, que diz “se quiser esquentar uma rocha, sente-se nela por 100 anos”. Isso significa que é preciso ter paciência antes de travar certas batalhas, mas é necessário que essa espera seja feita com algum tipo de ação capaz de mudar o cenário inicial. E esse parece ter sido o guia para Fernando Haddad, ministro da Fazenda, na queda de braço sobre a desoneração dos combustíveis. Lá em janeiro a primeira batalha foi perdida e pareceu até um pouco vergonhosa para aquele que seria o homem forte de Lula. O presidente defendeu publicamente os subsídios promovidos pelo seu antecessor, contrariando a visão do chefe da economia. Por dois meses Haddad preparou o terreno. Discutiu formas de compensar a arrecadação, alinhou um projeto com a Petrobras, fomentou um discurso ambiental e de quebra ainda armou a cama para pressionar o Banco Central pela redução da Selic. Um gol importante do ex-prefeito de São Paulo e que rendeu a ele pontos no governo e a redução (ainda que temporária) do tom de críticas do mercado à sua gestão. “Todas as nossas medidas visam um ambiente propício para redução dos juros e estímulo da atividade econômica”, afirmou ele à revista IstoÉ Dinheiro.
Mas a história de Haddad e os combustíveis começa bem antes do anúncio da terça-feira (28). Com a autonomia do BC e as projeções de um PIB fraco, na transição Haddad já dizia aos interlocutores que a meta era enfrentar o déficit fiscal e que a desoneração foi uma ação eleitoreira de Bolsonaro em tempos de corrida eleitoral e difícil de mudar sem afetar a opinião pública. Sua equipe, então, começou a discutir os caminhos não apenas para substituir a receita perdida com combustíveis, mas elevá-la a ponto de sustentar os gastos desejados por Lula (tudo isso perseguindo a redução do déficit). Imposto por transação digital? Taxar exportações? Desonerar parte do agronegócio? Rever os benefícios setoriais em zonas específicas? Tributar apostas on-line? Tudo isso foi avaliado no pente-fino dos benefícios financeiros x custo político. Feito isso, a decisão de Haddad não foi nem radical, como defende a base no governo no Congresso (em especial a presidente do PT, Gleisi Hoffmann), nem tão liberal quanto queria a ministra Simone Tebet.
Sobre os combustíveis foi mantida a desoneração do diesel, GLP e gás natural até o final do ano. Para os automóveis, o imposto da gasolina fica agora em R$ 0,47 e o do álcool, R$ 0,02 por litro. Segundo estimativas do Ministério da Fazenda, serão R$ 28 bilhões a mais arrecadados ao ano. Também foi criado um imposto para exportação de petróleo cru (+ R$ 4,8 bilhões arrecadados nos quatro meses de vigência, segundo cálculos da XP).
O papel da petroleira
Orquestrado enquanto passava seu período sentado na rocha, Haddad desenhou um plano redondo. Esperou que Jean Paul Prates assumisse o comando da Petrobras. Quando ele o fez, os dois olharam a curva do barril de petróleo. Depois de maio de 2022 (quando ultrapassou a barreira dos US$ 115 o barril Brent) o combustível só caiu. A última vez que bateu US$ 90 foi em 17 de novembro, e daí em diante seguiu na casa dos US$ 85. A última redução de preço promovida pela política de paridade internacional (que altera o valor do líquido na bomba de acordo com a oscilação do mercado internacional) foi em 7 de dezembro. E não foi sem razão. No mesmo dia do anúncio da retomada do imposto, a Petrobras anunciou redução de R$ 0,13 por litro da gasolina. Assim o impacto caiu no bolso (e na opinião pública).
E isso aconteceu um dia antes de a petroleira anunciar o maior lucro da história de uma empresa brasileira (R$ 188,2 bilhões no ano passado). O resultado fortalece a empresa e abre caminho para o segundo ponto envolvendo a estatal: o pagamento de dividendos. Durante o governo Bolsonaro os esforços em redução de custos da empresa eram revertidos em enormes dividendos aos acionistas (R$ 110 bilhões em 2022, o segundo maior valor do mundo, segundo a Janus Henderson). O então ministro da Economia, Paulo Guedes, queria reforçar o caixa do Tesouro — a União é o maior beneficiário dos dividendos. Agora, o plano é rever os pagamentos. Uma das alternativas seria a criação de uma reserva estatutária para reter até R$ 0,49 em dividendo por ação. Na quarta-feira (1), a empresa anunciou o pagamento em 2023 de dividendos de R$ 2,74. Reter R$ 0,49 disso faria o montante chegar a R$ 6,5 bilhões, segundo a empresa.
Fernando Nogueira Lopes, consultor e ex-secretário de Políticas Energéticas do Estado do Rio de Janeiro, disse que já era hora de fazer essa discussão. “O interesse do governo é deixar essa distribuição mais próxima do que é pago no mundo”, disse. Hoje as empresas de capital aberto são obrigadas por lei a pagar 25% de seus lucros em dividendos. A Petrobras chegou a pagar 60% no governo passado. “Esse valor impede a empresa de investir em pesquisa, desenvolvimento e fazer o dinheiro circular”, disse.
A reação do mercado
Com toda a medida orquestrada, a reação do mercado com a jogada do Haddad foi positiva. Guilherme Loures, economista e gerente de Renda Variável na WIT Invest, afirmou que a decisão mostra o comprometimento do governo em fomentar o combustível vegetal, taxando o fóssil, em linha com práticas internacionais. Mesmo assim, é preciso que haja mais iniciativas.. “É uma tentativa de aumentar a arrecadação frente ao rombo já projetado. Ajuda, mas não resolve”, afirmou. O coro do mercado é que o caminho eficiente são as reformas tributária e administrativa, além de uma âncora fiscal que persiga o superávit com métricas plausíveis e que não impeça o País de crescer.
O mercado também ficou atento ao aumento do imposto para exportação de petróleo cru. Para Loures, mesmo temporária, a medida é impopular. Apesar disso, ele entende que essa foi uma ferramenta do governo para estimular a redução da taxa de juros. “Haddad deixou um recado para o BC. Aumentar a arrecadação é reduzir a incerteza fiscal, a expectativa de inflação no longo prazo, e, assim, a taxa de juros”, disse.
Gleisi x Haddad
Determinada a retomada de parte os impostos dos combustíveis, Haddad conseguiu adiar por algum tempo um conflito que potencialmente deve se estender ao longo do governo. A relação do ministro nunca foi das melhores com a deputada federal, e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que foi publicamente contrária à medida. Sobre isso, Haddad se limitou a dizer que a palavra final cabe ao presidente Lula, que atua como um juiz de arbitragem nesse tipo de situação. E se à primeira vista essa articulação parece um problema crescendo no PT, internamente é uma estratégia para agradar gregos e troianos. Lula precisava deixar que Haddad se mostrasse ao mercado e evidenciasse sua relevância nas decisões econômicas e sinergia com algumas das pautas do mercado financeiro.
Ao longo de seus 60 dias de governo, Lula não mediu palavras para fritar o Banco Central, reclamou da mão invisível do mercado, questionou banqueiros. E Haddad parecia interferir pouco, cabendo a ele apenas tentar colocar panos quentes em eventos públicos. “Na verdade, Haddad deu um passo para trás para pegar impulso”, disse um assessor próximo ao ministro. E esse impulso virá em algumas frentes. Guilherme Mello, secretário de Política Monetária da Fazenda é quem está coordenado esse booster previsto para os próximos meses. “Estamos trançando projetos que conversem com as tendências mundiais. Queremos um Estado moderno e condizente com a nova economia”, disse Mello.
Segundo o secretário, além de colocar o projeto da nova âncora fiscal e reforma tributária e pensar em novas fontes de arrecadação, há um esforço transversal com outros ministérios para mitigar inconsistências. No Bolsa Família, por exemplo, Haddad estima ser possível economizar R$ 20 bilhões com gastos indevidos. Há ainda medidas de revisão de desonerações e revisão de contratos sem licitação ou citados pelo TCU. O resultado de um esforço de quem exerceu a paciência oriental de sentar na rocha até que ela esquentasse.