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sexta-feira 28 de agosto de 2020 às 18:08h

Com esquerda dividida, funk e rap se firmam como oposição ao governo Bolsonaro

POLÍTICA


“O que é extraordinário nesse mundo, nesse fim do século, sobretudo o que faz a importância da vida urbana, é essa produção a partir de baixo de algo que é revolucionário”, disse o geógrafo Milton Santos, em entrevista ao programa Roda Viva, em 1997.

Segundo o Yahoo Notícias Um dos principais intelectuais brasileiros do século 20, Santos revolucionou os estudos das ciências sociais. “Os pobres acabam por ver mais o que o mundo está sendo. Nós [a classe média] não temos muitas formas de ver o mundo, porque estamos contentes com os nossos diversos confortos (…). Tudo isso é um entrave à produção de conhecimento, e tudo isso é um entrave à produção de futuro. O futuro está lá embaixo.”

Quando morreu, em 2001, Milton Santos não poderia imaginar que as desigualdades que sempre marcaram o Brasil se acentuariam com a chegada de uma pandemia mundial. Pobres e negros são os que mais morrem de Covid-19 no Brasil.

Um levantamento feito pela Folha de S.Paulo mostra que a taxa de cura da doença é 50% maior em hospitais privados. Logo, não surpreende o resultado do estudo feito por pesquisadores do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, que, ao analisar 30 mil casos até 18 de maio, revelou que pretos e pardos morrem mais pela enfermidade do que brancos — uma constatação que evidencia mais diferenças sociais do que biológicas.

“A elite não tem criatividade. Eu gostaria que me apresentassem alguma coisa que tenha sido criada pela elite”, desafia Bruno Ramos, articulador nacional do Movimento Funk.

“Nem a bossa nova vem da elite. O próprio rock’n roll, que hoje é majoritariamente branco, foi criminalizado no passado, assim como o jazz e o blues. Criminalizam para tentar colocar outra roupagem, insinuando que favelado não sabe fazer arte. O funk, por exemplo, é um termômetro do que acontece no cenário político. Quanto mais nos batem e perseguem nossos jovens, mais crescemos. O que pesa sobre nós é a criminalização do Estado”, reforça Ramos, lembrando da declaração do então prefeito João Doria que, logo após ser eleito, em 2016, afirmou que o “pancadão [do baile funk] é um cancro que destrói a sociedade”.

Com isso, em vez de ser vista como expressão artística, a cultura musical das quebradas, a exemplo do funk e do rap, é cuidada pela pasta de segurança pública. “Quantos MCs não foram presos por fazerem apologia ao crime, sendo que estavam apenas falando das nossas realidades”, questiona o produtor cultural. “Com a ausência do poder público nas periferias, precisamos buscar alternativas de sobrevivência. Mas o Estado acha que tem o controle sobre os corpos. Isso é necropolítica pura.”

É som de preto

“O movimento hip hop serve de escola para muitas pessoas. Para mim, os discos de rap foram livros que trouxeram ensinamentos”, declara a rapper, historiadora e arte-educadora Preta Rara, que rompeu o ciclo de trabalhos domésticos realizados pelas mulheres de sua família através da arte.

“Com as músicas dos Racionais, entendi que era bonito ser uma mulher preta, de cabelo black, com turbante. O rap sempre teve um papel fundamental na cultura das quebradas. Foi por causa do rap que eu quis ser professora de história, para falar sobre um outro Brasil que eu não tinha ouvido falar na escola.”

Os versos e as batidas dos ritmos marginalizados também são o espelho de grupos invisíveis para a elite. Como afirma Preta Rara, “o cara ou a mina que tá cantando se torna protagonista da sua própria história.”

Para Bruno Ramos, trata-se de uma questão de semiótica. “É só olhar para o padrão estético dos artistas do funk, por exemplo. Em nenhum outro movimento musical temos uma mulher como a MC Carol, que é negra, gorda e periférica, ou artistas trans como a MC Xuxú. Que outro movimento abre portas para mulheres como a Tati Quebra Barraco, que é uma feminista revolucionária, empoderada, que traz um discurso que dialoga com as mulheres da periferia”, questiona.

Ao subverter padrões estéticos ocidentais, a cultura que brota das periferias acolhe quem busca se inspirar através dela. “Funk e rap são resistência”, afirma a artista visual, ativista trans e rapper Rosa Luz. “Ainda existe muito preconceito, porque é som de preto. E tudo que é de preto é criminalizado antes de ser incorporado à branquitude. Mas esses gêneros têm sido fundamentais para que corpos marginalizados consigam se expressar de forma legítima.”

Para a artista, quem ganha são articulações como as do movimentos negro, indígena e LGBT+, que pautam suas questões políticas e assumem o controle sobre suas narrativas. “Historicamente, essas comunidades foram silenciadas por um padrão imposto, e tudo que foge disso é sempre perseguido, atacado e morto. Acho importante se colocar, tentar vencer a barreira do medo e dialogar.”

Para os ouvidos distantes das periferias, temas que versam sobre violência e sexualidade, recorrentes no funk, podem soar ofensivos. Mas, como lembra Ramos, isso só incomoda quem não conhece a realidade desses lugares.

“Proibidão para mim é o programa do Faustão. Tudo o que é feito pelo nosso movimento é consciente. Classificar como ‘proibidão’ é uma tentativa de embranquecimento. A mídia começa criminalizando e isso reverbera dentro do processo político. Assim, reacionários que não têm sensibilidade com a questão periférica se eximem da responsabilidade e deixam de pensar em alternativas de políticas públicas para as periferias.” Segundo o articulador, para a elite, é mais fácil culpar a cultura que nasce do abandono do que o abandono em si.

A alma encantadora das ruas

É como se um cordão umbilical invisível ligasse as manifestações culturais da quebrada às questões de ordem social. “Movimentos como o hip hop entram onde o Estado não entra. Muitas pessoas não entendem, ou fingem não entender, que, na falta de políticas públicas, a cultura de rua tem uma papel fundamental na formação de cidadãos”, acredita Preta Rara.

Se para alguns esse raciocínio é incompreensível, para o núcleo bolsonarista no poder, a questão parece ter sido bem absorvida. Ao extinguir o Ministério da Cultura, sugerir a taxação de livros e dar palco a uma cruzada cultural nas escolas, o governo demonstra compreender a fundo o valor da cultura. “A direita já entendeu muito bem que a cultura é o seu calcanhar de Aquiles, porque ela tem capacidade de disputar o imaginário das populações mais vulneráveis”, diz Bruno Ramos.

O articulador do Movimento Funk critica a falta de coordenação da esquerda, espectro com o qual se identifica. “Tenho a sensação de que a esquerda institucional não entendeu a capacidade que a cultura tem de transversão, de dialogar com qualquer eixo e com a questão da interseccionalidade, que passa por raça, classe e gênero. Neste momento de pandemia, em que passamos de três meses sem um ministro titular na pasta da Saúde, quem está conseguindo rebater o bolsonarismo não é a esquerda institucional, porque ela está totalmente desfragmentada. Quem faz o enfrentamento real ao bolsonarismo é a cultura”, diz.

Ao acessar a mente e a vida das pessoas por outras portas, a cultura ganha um poder de comunicação que parece faltar a políticos preocupados com a ascensão de projetos antidemocráticos ao poder. Como disse Mano Brown, durante um comício de Fernando Haddad, em 2018, no qual criticou o PT, a comunicação é a alma.

“Se não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo. (…) Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil, tem que falar para uma multidão que precisa ser conquistada, se não vamos cair no abismo. (…) Deixou de entender o povão já era”, declarou o rapper. Se, assim como afirmou Milton Santos, “o futuro vem de baixo”, a cultura das quebradas parece ser então uma possível corda de salvação para nos livrar do abismo da crise institucional no qual já caímos.

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