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quinta-feira 22 de setembro de 2022 às 20:00h

Colonialismo estrutural no Brasil?

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Poderíamos forjar o termo “colonialismo estrutural” para pensarmos a situação do Hemisfério Sul, e a do Brasil em particular, por conta de certa desestruturação que o sistema internacional (e o multilateralismo) que organiza os países vem passando há alguns anos? Por conseguinte, poderíamos usar o citado termo para temas de relações internacionais? O conhecido conceito de neocolonialismo, caso seja conceito, já seria suficiente para ilustrar o debate?

Explicamos nosso intuito. A moderna Sociologia estadunidense produz estudos sobre relações raciais que ganham grande espaço nas universidades brasileiras, começando nos cursos de Ciências Sociais e migrando para outras graduações. Cursos como os de Jornalismo, Direito e alguns departamentos da Medicina indicam ligação com conceitos trabalhados pelos mais importantes núcleos acadêmicos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental.

Por exemplo, a adoção quase integral de conceitos fomentados pela realidade político-cultural da sociedade estadunidense pode promover a questão. A razão para tanto é a adoção de ideias produzidas nas universidades dos Estados Unidos no cotidiano social do Brasil.

Eis a questão: pelo motivo de as duas repúblicas terem tido um passado escravista, isso, praticamente, leva a entender que as relações raciais entre elas devem ser semelhantes, com mesmas características históricas, legadas pelo colonialismo europeu, e que, por isso, devem contar com soluções iguais, temas ligados a questões identitárias ganham força na inteligência brasileira. Palavras como institucional e estrutural, ligadas a nossos problemas nacionais, são frutos da influência de estudos sociológicos e antropológicos dos grandes centros ao Brasil.

Por outro lado, a intelectualidade nacional perde espaço quando o debate é sobre relacionamento social e seus prementes problemas que, sem dúvida, há em grande monta. Pensadores(as) como Darci Ribeiro, Guerreiro Ramos, Manuela da Cunha correm risco de serem diminuídos(as) nos cursos de Ciências Sociais do Brasil pelo fato de suas reflexões não atraírem tanto a clientela, da mesma forma que a apresentada pelos autores(as) do Hemisfério Norte. No Brasil alguns(mas) autores(as) têm sido “coringas”, caso de Michel Foucault, para analisar desde a qualidade da democracia em Israel até o papel da burocracia das Forças Armadas brasileiras.

Há décadas, parte da intelectualidade brasileira estuda nas ricas universidades, por meio de financiamento de bolsas de estudo de entidades internacionais, para pensar questões nacionais a partir de receitas feitas estadunidenses ou europeias. Isso vale também para pós-graduações em Economia e Relações Internacionais. Pensar mudanças sociais e econômicas a partir de países mais ricos parece ser mais atraente. Eis um assunto que mereceria debate em outra ocasião.

É evidente que não se trata de se apegar ao provincianismo, ou nacionalismo estéril, para marcar fronteira intelectual entre nós e eles. Longe disso, pois nada mais tacanho e contraproducente em ciência, seja ela qual for. Nosso registro é tão somente para indicar que, às vezes, o mimetismo contribui para diminuir nosso ímpeto criativo, de pensar o Brasil sem levar em conta a realidade concreta nacional, como se costuma falar há algumas décadas. Como reclamava uma personagem de Os Maias, de Eça de Queiroz, a importação de costumes estranhos a nós teria a imagem de ser um paletó que fica muito curto nas mangas.

É bom sublinhar que o Brasil tem patrimônio e excelência em Ciências Sociais proveniente, entre outros ambientes, da Escola do Recife (a partir de 1870) e do Iseb no Rio de Janeiro (1950 e 1960), só para citar duas fomentadoras de inteligência separadas pelo tempo e pela geografia. O Brasil teria também destaque em Física Nuclear, de valor internacional, por causa de César Lattes, Rex Nazaré, Álvaro Alberto (criador do CNPQ, em 1952), entre outros(as) cientistas. Citemos isso apenas como registro histórico, já que é outro assunto.

Contudo, ainda que possa parecer contraditório de nossa parte, vamos também usar o termo estrutural nestas curtas reflexões para sabermos se o Brasil, entre outros países do Hemisfério Sul, não correria o risco de sofrer “colonialismo estrutural” em um sistema econômico internacional que tende a ser cada vez mais difícil e apertado para tais nações. Comentamos acima, criticamente, que a universidade brasileira utiliza raciocínios estrangeiros para pensar o país em questões bastante particulares. Tomemos, então, o mesmo uso para refletirmos algo, cujo termo estrutural possa ser útil nas relações internacionais.

Vamos tratar o termo “colonialismo estrutural” como princípio, em processo de iniciativas políticas com avanços, oposições e possível retrocesso. Isto porque o processo de neocolonialismo estrutural pode começar, por mais curioso que possa parecer, sugerindo progressos socioeconômicos, culturais e ambientais a favor de países pobres. Vale dizer que são sugestões virtuosas, cujo objetivo seria tornar o mundo um lugar melhor para futuras gerações.

A União Europeia tem sido grande promotora dos princípios de “colonialismo estrutural”. Pelo fato de ela ter sido sede do grande movimento colonialista, a partir do século XVI e até o XX, o Velho Mundo passa a impressão de ser saudoso do tempo em que era o núcleo principal da política internacional e civilizacional. Todavia, sem poder expressar poder nos mesmos moldes que antes fazia, as potências europeias procuram manter alguma preeminência sobre temas que suscitam sensibilidade e que pedem resoluções instantâneas.

A Europa Ocidental, para fazer valer seu ideário de progresso e virtude, apresenta mão dupla: ao mesmo tempo que admite fluxos imigratórios e permite o multiculturalismo, respeitando sua visão de mundo, algumas forças intervêm, diretamente ou não, nas políticas do “além-mar”. Assim tem acontecido militarmente com a França na África e efetuado linha de fogo discursivo contra o Brasil, na questão amazônica. Por que tal atitude, por desejo de proteção ambiental ou para angariar vantagem a partir da Guiana, sua colônia?

A Alemanha, também com anuência de Bruxelas, é líder na sugestão de economia verde, em substituição a combustíveis fósseis e energia nuclear. O país tem reconhecida competência na pesquisa de biodiesel feito de culturas tropicais. No entanto, sabendo que a produção europeia de biocombustíveis não é suficiente para dar cabo da demanda, mesmo assim, Berlim e demais atores, dificultam a importação de etanol brasileiro. Antes, a justificativa para protecionismos era questão trabalhista, problemas dos(as) boias-frias; agora a querela se encontra na premissa de que o avanço dos canaviais é sobre reservas ambientais.

Ainda paira na inteligência europeia e parte da estadunidense a máxima, já desqualificada nos anos 1980, de que Amazônia é o “pulmão do mundo”, portanto, sua preservação é de interesse internacional. A razão que leva essa falácia conceitual a existir pode ser falta de conhecimento ou malícia, a depender da audiência. Se houver, efetivamente, um diretório mundial para conservação da Amazônia, mas não dos biomas russos, estadunidenses e chineses, onde ele teria sede? Bruxelas, Londres, Paris? Rio de Janeiro ou Jacarta teriam lugar?

Como se existisse um colonialismo atávico, as potências europeias escolhem temas sobre as quais elas podem se sair melhor na promoção de certa governança global. Intervenções à antiga não têm mais lugar neste século, então que se usem meios de sensibilização político-econômica que, no fim, venham a promover preeminência europeia. Parece que questões ambientais, minerais e agrícolas são a moeda da vez para que o Velho Mundo ainda demonstre algum vigor para ser considerado potência no Hemisfério Sul.

Podemos dizer, sem incorrer em grande erro, que o fenômeno apontado pela União Europeia, antes de tudo, é reedição atualizada dos antigos esforços do Clube de Roma, de 1975. Aquele comitê veio na esteira da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, conhecida como Conferência de Estocolmo, de 1972, na qual já se frisava que o desenvolvimento industrial teria de ser moderado, principalmente nos novos países recém-industrializados, a saber, Brasil, Índia e mais alguns do antigo Terceiro Mundo.

O Clube de Roma militava para que houvesse esforços para diminuir o emprego de combustíveis fósseis, que tocava de perto a industrialização dos países do sul e, ao mesmo tempo, citava a bomba demográfica, segundo a qual o planeta seria superpovoado e com risco de passar fome, uma vez que a produção alimentar não seria suficiente para dar de comer a tanta gente. O princípio da “revolução verde” na agricultura ainda não estava na pauta.

Isso seria, para alguns(mas) analistas, a retomada, atualizada, do economista Thomas Malthus, que procurava demonstrar falhas no cruzamento entre alta demografia e poucos recursos naturais. O resultado desse impasse beiraria o Apocalipse, para o economista inglês. Daí é que nasce o termo “neomalthusianismo”, às vezes mencionado pelos(as) críticos(as) da situação para apontar sugestões que, no final, seriam, de algum modo, a favor dos países desenvolvidos.

Será que a admissão desmedida de políticas indicada pelas grandes potências não minaria nossos esforços de repensar a questão ambiental sob o imperativo de nossa necessária reindustrialização em moldes mais tecnológicos e avançados, que tivesse vantagem adquirida pelo patrimônio ambiental? O economista Carlos Lessa, da UFRJ, sublinhava justamente que nossa vantagem adquirida estava, entre outras, na possibilidade de gerar energia renovável por meio das usinas hidrelétricas, custosas economicamente, mas que seriam amortizadas na medida que nos daria longos períodos de serventia com energia limpa. É claro que tal sugestão não passou ao largo das críticas europeias e estadunidenses, simbolizadas por toda sorte de organizações não governamentais e multilaterais.

Pode ser que nosso uso de “colonialismo estrutural” não seja bem empregado para a compreensão da atual política internacional; que sua utilização não corresponda aos nossos propósitos, da mesma forma que há nas investigações sociológicas ou antropológicas. Ainda assim, convidamos os(as) interessados(as) em relações internacionais a melhorá-lo ou refutá-lo. Caso isso ocorra, já nos daremos por satisfeitos ao saber que nosso equívoco foi aproveitado.

(*) José Alexandre Altahyde Hage é professor do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal São Paulo (Unifesp) – Campus Osasco

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