Pela primeira vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aplicou de acordo com a Folha, punição a um juiz com base no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
O fato ocorreu poucos dias depois da “Semana de Combate ao Assédio e à Discriminação”, quando os tribunais, estimulados pelo CNJ, debateram a violência moral e sexual no Judiciário.
Resolução CNJ torna obrigatória a aplicação das diretrizes do protocolo e promove a adoção dessa perspectiva em julgamentos do Poder Judiciário.
Em decisão unânime, o CNJ aposentou compulsoriamente, com vencimentos proporcionais, o juiz Marcos Scarlecio, do TRT-2 [São Paulo], por assédio e importunação sexual.
“O que mais dói neste processo é que as condutas eram adotadas e se invocava a condição de magistrado. Eu posso porque sou juiz”, disse a presidente Rosa Weber.
“Esse processo é paradigmático enquanto reflete uma sociedade estruturalmente machista que invisibiliza as mulheres. E, mais do que isso, as silencia”, disse.
A relatora, conselheira Salise Sanchotene, descreveu relatos que incluem abordagens inapropriadas com toque físico e conversas sobre temas explicitamente sexuais. Disse que o juiz fez uso do cargo como justificativa para convencer as possíveis vítimas a interagirem com ele de forma íntima.
O magistrado, que é professor de curso preparatório para a Ordem do Advogados do Brasil (OAB), segundo registros processuais, abordava as vítimas em seus locais de estudo.
“Como é constrangedor ler o depoimento de uma das vítimas que tinha medo de retaliação tanto acadêmica quanto profissional”, lamentou o conselheiro Marcos Vinícius Jardim.
SUSPEITA DE OMISSÃO
Em outro caso, por maioria, o CNJ abriu processo disciplinar contra o juiz Rudson Marcos, do TJ de Santa Catarina. Vai apurar se houve omissão do magistrado no depoimento da vítima Mariana Borges Ferrer em ação penal sobre suposto crime de estupro de vulnerável.
A decisão seguiu o voto do relator, Sidney Madruga, que verificou diversos episódios de “exaltação e conflituosidade”, particularmente na conduta do advogado, que não foram controlados pelo juiz.
Em voto divergente, o conselheiro Richard Pae Kim negou que o magistrado tenha sido omisso. Disse que o juiz realizou intervenções pontuais nos momentos em que eram necessárias. Kim foi acompanhado por seis conselheiros.
Em voto-vista, o corregedor nacional, Luis Felipe Salomão, julgou necessário “aprofundar as investigações”. Salomão citou que, entre janeiro e junho de 2022, “ocorreu um estupro de menina ou de mulher a cada nove minutos no Brasil”. Esses dados “alarmantes revelam uma realidade inaceitável”, disse.
Rosa Weber lembrou que o juiz tem poder de polícia numa audiência. “Pode permitir que uma das partes seja achincalhada? Entendo que não. Se não pode, ao não ter uma intervenção mais efetiva, se omitiu. Isso é suficiente para condená-lo? Talvez não, mas para apurar seu comportamento, sim.”
Ela disse que todos os conselheiros, a favor ou contra a abertura do processo, concordaram que a vítima foi humilhada. Weber lembrou que “na origem, o processo foi arquivado e não foi aplicada qualquer penalidade”.
Os conselheiros identificaram uma falha sistêmica, que envolveu o juiz, o Ministério Público e o advogado do acusado.
SEMANA DE COMBATE AO ASSÉDIO
Os dois episódios estão afinados com o espírito da “Semana de Combate ao Assédio e à Discriminação”, no início de maio, quando os tribunais realizaram treinamentos para sensibilizar as equipes sobre a importância do combate ao assédio moral e sexual, e à discriminação no ambiente de trabalho.
Pesquisa do CNJ revelou, no final de 2021, que 40% dos profissionais desconheciam ações de prevenção no tribunal e 18,7% afirmaram que não se adotava qualquer medida preventiva.
A seguir, alguns dados sobre os debates durante a semana.
– No TJ de São Paulo, a juíza do Trabalho Patrícia Almeida Ramos, do TRT-2, afirmou: “Precisamos saber o básico para que os conceitos entrem em nossa cabeça e nunca mais saiam e para não reproduzirmos essa mazela no nosso cotidiano. A violência sempre existiu, mas quando entra nas esferas do trabalho, é o momento de se preocupar”, disse.
– “Precisamos trabalhar na cultura para que esses fatos não aconteçam. Tão importante quanto punição, é a prevenção”, disse o desembargador Irineu Jorge Fava:
– A juíza Teresa Cristina Cabral Santana, da 2ª Vara Criminal de Santo André, disse que “é preciso entender de onde [essas violências] surgem, acolher as vítimas e trabalhar para que novas agressões não aconteçam”. Ela apresentou pesquisas que apontam menores índices dessas violências em países que possuem melhores indicadores de igualdade de gênero.
– A juíza Ana Flávia Jordão Ramos Fornazari, de Pereira Barreto, fez um histórico da perseguição e intolerância religiosa e apresentou dados que comprovam a presença da discriminação no país.
– No TJ do Amapá, houve bate-papo ao vivo na televisão com membros da comissão de prevenção e enfrentamento do assédio.
– No TRF-4, foi lançada a campanha “Assédio Não”. A advogada Mayra Cotta fez palestra sob o tema “Mulher, Roupa e Trabalho”, com participação dos juízes federais Fábio Vitório Mattiello e Ana Maria Wickert Theisen. A psicóloga Kátia Lima falou sobre o tema “Assédio Moral no Trabalho: quem vai ficar com o bode?”
– O juiz Gustavo Baratella respondeu a questionamentos sobre assédio e discriminação, em evento no TJ-GO.
– Salise Sanchotene apresentou a experiência do CNJ em evento no Tribunal de Contas da União e participou de evento no TRT-6, com palestra da psicóloga Michelle Rangel e exposições das juízas Sarah Yolanda Alves de Souza e Luciana Conforti.