Durante anos, se acreditou que Getúlio Vargas (1882-1954) tinha escolhido a arena de São Januário para assinar o que viria a ser a lei trabalhista mais importante do país, registra André Shalders, da BBC News.
Mas não foi assim: Vargas não esteve no estádio em 1º de maio de 1943. A CLT foi assinada em um comício no centro do Rio, há exatos 80 anos.
A CLT continua a ser até hoje a principal lei trabalhista brasileira, abrangendo 42,9 milhões de empregados em março deste ano, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho.
Nos últimos anos, porém, perdeu espaço para outras modalidades.
Avançaram a atuação informal, o trabalho por meio de aplicativos e a contratação via empresa individual, a chamada de “pejotização”.
Em fevereiro deste ano, o número de brasileiros trabalhando sem carteira assinada atingiu o pico desde que o tema passou a ser parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE – o percentual de informais vem batendo recordes ano a ano desde 2012, quando a pesquisa começou.
Os celetistas (trabalhadores com carteira assinada) representam atualmente cerca de um terço da população ocupada no país, segundo a pesquisa.
Parte da legislação sobre o tema foi alterada pela reforma trabalhista de 2017, impulsionada pelo governo do então presidente Michel Temer (MDB).
Agora, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende revogar algumas das mudanças introduzidas pela reforma trabalhista e criar uma nova regulamentação para os trabalhadores de aplicativos.
Reforma trabalhista
A reforma trabalhista de 2017 foi a principal mudança na CLT nos últimos anos, impulsionada pelo governo Temer.
A reforma deu maior peso às negociações coletivas entre patrões e empregados, que passaram a prevalecer sobre a legislação; permitiu a divisão de férias; criou a figura do trabalho intermitente (modelo no qual o empregado é chamado para trabalhar em momentos pontuais e recebe apenas pelas horas trabalhadas) e acabou com a contribuição sindical obrigatória, entre outros pontos.
Uma das mudanças mais significativas diz respeito aos processos na Justiça do Trabalho: desde a reforma, o empregado pode ser obrigado a pagar honorários ao advogado da empresa, em caso de derrota. O valor varia entre 5% e 15% do valor total da causa.
De acordo com um estudo de 2022 de economistas da Universidade de São Paulo (USP) e do Insper, esta mudança pode ter representado um acréscimo de 1,7 milhão de empregos formais desde 2017. O número foi estimado por meio de um modelo matemático.
Segundo o economista Rafael Ferreira, um dos autores do estudo, a possibilidade de ter que arcar com os custos do processo desincentivou funcionários a entrar na Justiça, especialmente nos casos em que não há certeza de vitória. O que, segundo ele, diminuiu os custos das empresas para abrir novas vagas.
“Quando a empresa contrata, ela tem de levar em conta o custo esperado se demitir o trabalhador. Se eu reduzo esse custo esperado de contratar, que pode vir de um processo, tenho mais chance de contratar. Toda empresa faz provisões para os custos de processos trabalhistas”, diz Ferreira, que é professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
“A CLT foi criada em 1943 e o mundo mudou de lá para cá. Então era preciso uma atualização importante. Agora, o que eu acho que é bastante importante para as próximas reformas, é o aumento da previsibilidade. Reduzir as incertezas associadas à contratação no país. Há incerteza sobre a interpretação que os juízes podem ter sobre um ponto ou outro de um contrato de trabalho. O que a legislação puder fazer para tornar tudo o mais claro o possível, e reduzir incerteza, deve ser feito”, diz Ferreira.
Avaliar todos os impactos da reforma não é tarefa simples – ainda restam mais dúvidas do que certezas sobre como a reforma mudou a economia brasileira e como ela poderia ser alterada para beneficiar trabalhadores e empresas.
Especialistas apontam que não basta olhar para dados como a taxa de desemprego e a renda, antes e depois da reforma, para chegar a alguma conclusão, pois diversos fatores (como pandemia e crises institucionais) influenciam essas variáveis e não é possível saber como a economia teria se comportado caso a reforma não estivesse em vigor.
Mudanças à vista
Durante a campanha eleitoral de 2022, os direitos dos trabalhadores foram um dos pontos a que Lula recorreu como um contraponto ao seu antecessor e adversário, Jair Bolsonaro (PL).
O petista enfatizou duas medidas principais para o governo iniciado em janeiro: rever pontos da reforma de 2017 e regulamentar as profissões exercidas por meio de aplicativos (especialmente os de entregas e de transporte de passageiros) para dar maior segurança e mais garantias aos trabalhadores.
Bolsonaro disse, por sua vez, durante uma viagem à China, que os trabalhadores preferem perder alguns direitos para ter mais empregos.
Naquele ano, o governo lançou a chamada Carteira Verde e Amarela, uma iniciativa que reduzia encargos trabalhistas para empresas que contratassem jovens até 29 anos ou pessoas acima dos 55 anos. A ideia não vingou e foi abandonada.
Até junho de 2022, a proposta oficial do PT era de “revogação” da reforma trabalhista – o partido, no entanto, acabou adotando uma posição intermediária, que previa “uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social” – e a revogação de pontos específicos da reforma de 2017.
Já eleito, em março deste ano, Lula disse em evento com sindicalistas que queria “estruturar um novo pacto na legislação do mundo do trabalho”.
A mesma retórica é usada pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT). Em meados de abril, ele compareceu à Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados e disse que a reforma tinha sido “uma tragédia” para o trabalho formal no país.
O Ministério do Trabalho criou uma comissão, formada por representantes de sindicatos e de associações patronais, além do governo, para rever pontos da reforma trabalhista. Mas, até o momento, porém, nada foi enviado ao Congresso.
O governo também pretende criar outra comissão com trabalhadores e empresas para debater a regulamentação do trabalho por meio de aplicativos.
Nesse caso, porém, os nomes dos integrantes ainda não foram anunciados. Em um evento com centrais sindicais em janeiro, Lula disse que era preciso “acabar com essa história de que trabalhador por aplicativo é microempreendedor”.
Luiz Marinho disse, por sua vez, que as jornadas dos aplicativos “beiram o trabalho escravo”. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, mencionou a possibilidade de o governo usar os Correios para desenvolver um serviço para substituir a Uber caso a empresa não concorde com a regulamentação do trabalho por aplicativos e deixe o Brasil.
O ministro foi procurado pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
Ao longo de 2021 e 2022, os entregadores de comida promoveram mobilizações – inclusive paralisando as atividades – no movimento que ficou conhecido como “Apagão dos Apps”.
Melhorar o valor pago pelas entregas, criar pontos de descanso entre as corridas e dar fim aos bloqueios das contas são algumas das reivindicações dos entregadores.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), chegou a discutir a possibilidade de criar uma regra previdenciária mais favorável aos trabalhadores de aplicativos com o presidente da Uber, Dara Khosrowshahi.
A conversa aconteceu durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, mas nada de concreto foi apresentado até o momento.
Para o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas, doutor em Direito pela USP, algum tipo de regulamentação do trabalho por aplicativo é necessário – mesmo que não nos moldes da CLT.
Segundo ele, o surgimento nos últimos anos do termo “uberização” para se referir a relações de trabalho precarizadas sugere que algo não vai bem.
“Não é à toa. Quando temos um setor que degrada uma forma de trabalho, dizemos que este setor está ‘uberizado’. Essa expressão se disseminou. Já é um sintoma de que há algo errado”, diz Caldas, que é sócio do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia.
Além de garantir direitos básicos, diz Caldas, uma regulamentação do trabalho por aplicativos deveria contemplar algum mecanismo de representação dos trabalhadores e de negociação com as empresas – algo que não existe hoje.
Rafael Ferreira diz que qualquer regulamentação que se faça dos aplicativos precisa considerar a viabilidade do serviço.
“Essas atividades, tipicamente, são exercidas por pessoas que ou não têm um emprego formal ou se usam delas para complementar a renda do emprego. Se você insere uma regulamentação que aumente o custo a ponto de inviabilizar a atividade, o resultado pode ser uma queda na renda dessas pessoas”, diz o economista.
Ele acrescenta que “se a regulamentação for feita de forma a aumentar os ganhos dos trabalhadores, mas sem inviabilizar as empresas ou sem provocar uma queda dos investimentos, não há como ser contra, é uma questão distributiva”.
Origem fascista?
Assim como o “nascimento” da CLT em São Januário, outro mito em torno desta lei é que ela seria uma cópia literal da Carta del Lavoro (“Carta do Trabalho”), um documento do partido fascista italiano comandado pelo ditador Benito Mussolini (1883-1945).
Na verdade, a lei brasileira foi criada em um período em que as relações trabalhistas estavam sendo regulamentadas em vários países, inclusive democracias.
Além disso, buscava organizar o mercado de trabalho em um momento de rápida industrialização e urbanização do país, segundo o historiador do trabalho Paulo Fontes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Eu não diria que é uma cópia do modelo fascista, como ganhou ares de verdade. Eu colocaria a CLT dentro desse conjunto de experiências que tentavam de alguma forma regulamentar as relações de trabalho e sindicais”, diz Fontes.
“Há, como a gente sabe, elementos autoritários na CLT. Alguns, provavelmente com inspiração do corporativismo fascista italiano. Mas é um grande exagero dizer que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro. Até porque são instrumentos legais diferentes.”
Ele explica ainda que a CLT surge como uma compilação de leis trabalhistas anteriores criadas ao longo da década de 1930 pelo Estado Novo, o regime autoritário comandado por Getúlio Vargas.
Por isso, reúne tanto direitos sociais (férias, 13º salário) quanto regras consideradas autoritárias sobre a atuação dos sindicatos. São da mesma época a própria carteira de trabalho (1932) e a Justiça do Trabalho (1939).
“Ela é elástica o suficiente para ter criado esse horizonte de direitos, ao mesmo tempo em que tinha elementos repressivos. Se em períodos democráticos serviu para garantir direitos, nos períodos ditatoriais os aspectos repressivos foram mais utilizados (pelo Estado)”, diz Fontes, que comanda o Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.
A ligação da CLT com o fascismo italiano foi frisada por diferentes grupos em diferentes momentos, explica Fontes.
Durante a ditadura militar, a associação era feita com frequência por sindicalistas – o próprio Lula chegou a dizer, quando era sindicalista, que “a CLT é o AI-5 dos trabalhadores”, referindo-se ao Ato Institucional nº 5, que endureceu a repressão durante o regime militar, conforme descreve Kazumi Munakata em A Legislação Trabalhista no Brasil
“Depois, nos anos 1990, foram os neoliberais que começaram a dizer que a CLT tinha inspiração na Carta del Lavoro. Mas aí muito mais em uma crítica geral aos direitos sociais embutidos na CLT”, diz Fontes.
Os novos desafios da economia digital
Passados 80 anos da criação da CLT, as plataformas digitais trazem novos desafios para a legislação trabalhista.
Se antes o trabalho por meio de sites e aplicativos estava restrito a entregadores e motoristas, hoje é possível contratar todo tipo de serviço – inclusive psicólogos, designers, advogados.
A tendência, segundo especialistas, é que a “uberização” avance sobre ainda mais setores da economia. Em um ambiente como este, ainda haverá lugar para uma lei como a CLT?
“Eu acredito que a CLT ainda tem um lugar nas próximas décadas, no sentido de que ela dá conta de alguns tipos de relação de trabalho que continuarão existindo por muito tempo”, diz o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas.
“Vai continuar existindo fábrica, vai continuar existindo comércio. Existem algumas realidades em que a CLT manterá sua força. Só que nós estamos vendo o surgimento de novos modelos de negócios em que a CLT não se encaixa perfeitamente. E aí será preciso pensar em alguma outra norma.”
Rafael Ferreira diz que a existência ou não da CLT – ou de uma lei similar – em profissões “uberizadas” no futuro será uma decisão política e jurídica.
Além da remuneração dos profissionais, esse tipo de decisão afetará também a disponibilidade dos serviços para os consumidores, avalia o economista.
“Tudo depende de como será o entendimento jurídico da relação entre as plataformas da chamada ‘gig economy’ [economia do bico, em tradução livre] e quem está prestando o serviço”, diz Ferreira.
“Essas plataformas permitem a entrada de mais trabalhadores. Se eu estou trabalhando como psicólogo, por exemplo, em uma plataforma dessas, isso terá um efeito inevitável sobre o preço, pois são mais psicólogos ofertando os serviços. Mesma coisa com designers, até advogados.”
Segurança
Caldas diz ainda que uma das mudanças mais importantes introduzidas pela CLT é reconhecer a condição de inferioridade do trabalhador na hora de negociar com o patrão – no Direito, essa assimetria de poder é chamada de “hipossuficiência”.
“A realidade, em muitos casos, é a de que o empregado não tem essa liberdade para negociar com o patrão. A relação de trabalho é assimétrica”, diz o advogado.
“Claro que há exceções. Mas não é a realidade da maior parte dos trabalhadores. Por isso, a CLT é um instrumento de proteção importante para o trabalhador.”
Mesmo com as mudanças recentes, diz Caldas, a carteira assinada continua fornecendo mais segurança ao empregado do que outras formas de contratação, como o trabalho autônomo (a chamada “pejotização”).
Inclusive porque a CLT tem mecanismos como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e a contribuição previdenciária, que acabam criando uma reserva para o futuro.
“É uma certa ingenuidade pensar que as pessoas farão esse tipo de reserva por conta própria em todos os casos. Quando o Estado estabelece essas formas de poupança compulsória, isso garante uma retribuição para quando a pessoa não tiver a mesma energia ou disposição”, diz o advogado.
“A ‘pejotização’ pode cobrar um alto preço, da pessoa e da sociedade, no futuro.”
Um dos pontos em discussão no Brasil é, por exemplo, como garantir proteção previdenciárias a trabalhadores sem carteira assinada. Leia nesta reportagem o que dizem associações de trabalhadores e empresas.