Uma característica comum a diversas doenças neurodegenerativas é a formação de placas de proteínas no cérebro que acontece devido a uma disfunção da autofagia, processo de descarte dessas substâncias pelas células do próprio corpo. Mas agora, cientistas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, identificaram um mecanismo envolvido nesse impacto negativo do funcionamento da autofagia – e uma potencial forma de interrompê-lo.
A descoberta levou os pesquisadores a testarem, em animais com modelos de demência semelhantes à doença de Alzheimer, medicamentos inicialmente desenvolvidos para o tratamento da infecção pelo HIV, mas que têm uma atuação justamente no mecanismo observado: um receptor chamado CCR5.
No estudo, publicado hoje na revista científica Neuron, os cientistas concluíram que os indivíduos que receberam o fármaco, em estágios iniciais da doença, apresentaram uma diminuição nas placas de proteína e melhor desempenho em testes de memória em comparação com aqueles que não foram tratados.
“Estamos muito entusiasmados com essas descobertas porque não apenas encontramos um novo mecanismo de como nossas micróglias (células imunológicas do cérebro) aceleram a neurodegeneração, mas também mostramos que isso pode ser interrompido, potencialmente mesmo com um tratamento seguro existente”, afirma o professor David Rubinsztein, do Instituto para Pesquisa em Demência da Universidade de Cambridge, e autor sênior do estudo, em comunicado.
A descoberta do mecanismo
O trabalho dos cientistas teve início com a análise de animais geneticamente modificados para desenvolverem a doença de Huntington, caracterizada pelo acúmulo da proteína huntingtina, e um tipo de demência causada por placas da proteína tau, que é um dos biomarcadores associados ao Alzheimer.
Eles constataram que as micróglias, células do sistema imunológico que ficam no cérebro e têm a função de proteger o órgão contra materiais tóxicos, são ativadas e agem de forma diferente nas doenças neurodegenerativas, o que acaba, por fim, desencadeando um mecanismo negativo para a autofagia.
Isso porque elas entram em um estado pró-inflamatório e liberam moléculas que, por sua vez, ativam um receptor nos neurônios chamado de CCR5. Consequentemente, esses receptores a mais ativam uma via conhecida como mTORC1, que é a responsável por interferir negativamente no processo de autofagia.
Com isso, as proteínas pararam de ser descartadas pelas células e passaram a se acumular no cérebro, formando as placas que são características das doenças e que provocam os sintomas de declínio cognitivo irreversível.
O novo estudo mostrou ainda que as próprias proteínas também criam um ciclo em que aumentam a ativação do CCR5, prejudicando ainda mais a autofagia e propiciando a formação de mais placas.
“A micróglia começa a liberar esses produtos químicos muito antes de quaisquer sinais físicos da doença serem aparentes. Isso sugere – tanto quanto esperávamos – que, se vamos encontrar tratamentos eficazes para doenças como a doença de Huntington e a demência, esses tratamentos precisarão começar antes que um indivíduo comece a apresentar sintomas”, afirma Rubinsztein.
Um possível tratamento
Os pesquisadores decidiram criar camundongos modificados para interromper a ação do CCR5, e observaram que os indivíduos ficaram protegidos contra a formação das placas de proteínas. Eles passaram, então, a cogitar se medicamentos destinados a interferir nesse mecanismo poderiam ser úteis para prevenir ou retardar a progressão de doenças neurodegenerativas.
Esses fármacos já existem, porém pensados para um diagnóstico completamente diferente: a infecção pelo HIV. Isso porque o vírus utiliza justamente o CCR5, que atua como uma espécie de interruptor, para entrar na célula e infectá-la. Os poucos casos de cura do HIV, por exemplo, foram de pacientes que receberam um transplante de medula óssea de doadores com mutações genéticas que levam o corpo a não produzir a CCR5.
Em 2007, um remédio chamado maraviroc, desenvolvido pela Pfizer, foi aprovado para o tratamento do HIV em países como Estados Unidos e Brasil por atuar justamente nesse receptor CCR5. No ano passado, um estudo publicado na revista científica Nature já havia mostrado que o fármaco restaurou a perda da memória em camundongos mais velhos. Imaginava-se que o efeito é relacionado ao aumento de expressão do CCR5 que acontece durante o envelhecimento.
Agora, o novo trabalho mostra que ele pode ser benéfico também para atuar no aumento consecutivo do CCR5 decorrente da atuação das micróglias em doenças neurodegenerativas. No experimento, os camundongos com demência e doença de Huntington receberam o maraviroc durante quatro semanas, quando os animais tinham dois meses de idade. Após o período, eles tiveram uma redução significativa do número de placas de proteína em comparação com aqueles não tratados.
Além disso, aqueles com demência tiveram um melhor desempenho em testes de reconhecimento de objeto, “sugerindo que a droga retardou a perda de memória”, segundo comunicado da universidade. Em relação ao Huntington, como a doença demora mais tempo para se manifestar, não foi possível confirmar os efeitos do medicamento na parte clínica.
“O maraviroc pode não ser a bala mágica, mas mostra um possível caminho a seguir. Durante o desenvolvimento deste medicamento como tratamento para o HIV, vários outros candidatos falharam ao longo do caminho porque não eram eficazes contra HIV. Podemos descobrir que um deles funciona efetivamente em humanos para prevenir doenças neurodegenerativas”, afirma o professor de Cambridge.