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segunda-feira 26 de agosto de 2024 às 15:07h

Cidades resilientes: mesmo sob recordes de calor, candidatos a prefeito ignoram tema em planos de governo

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Em meio ao período mais quente registrado na história da humanidade, o calor ainda é um assunto coadjuvante nas eleições municipais. Enquanto tragédias provocadas pelas chuvas são lembradas, ainda que com propostas pouco detalhadas, o tema calor mal aparece nos programas de candidatos a prefeito. É o que mostra a segunda reportagem da série Cidades Resilientes, sobre como os municípios estão se preparando para os impactos das mudanças climáticas. Se o calor ainda não ganhou protagonismo eleitoral, a pauta vai se impor nos próximos anos, afirmam especialistas, pois impacta a saúde, o bem-estar, a produtividade, a educação e a economia.

Não apenas a tendência é que a temperatura continue a aumentar — 2023 foi o ano mais quente e 2024 caminha para superá-lo — quanto o risco para a saúde é maior nas cidades, que geram seu próprio calor e podem ser até mais de 10 graus Celsius mais quentes do que as áreas rurais, mostra um estudo na revista Nature. É o chamado efeito de ilha de calor urbana.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) já destacou reiteradas vezes que morre mais gente em decorrência de complicações do calor do que de todos os demais extremos climáticos somados.

Segundo a OMS, entre 2000 e 2019, o calor matou 489 mil pessoas por ano no mundo. Mas esse número é subnotificado. O número real é, no mínimo, 30 vezes maior, o que significa pelo menos 14 milhões mortes anuais. Quase sempre as vítimas morrem ou adoecem em decorrências de patologias preexistentes E a conta vai apenas até 2019, período menos quente do que os anos seguintes.

— O calor é um assassino. É um tema que precisa entrar na pauta dos políticos e na cabeça da sociedade. A maior parte das grandes cidades brasileiras não tem adaptação ao calor, e as eleições deveriam ser um nicho de oportunidade para propor medidas inovadoras — ressalta Paulo Saldiva, professor de medicina da USP e pioneiro no estudo do impacto do meio ambiente sobre a saúde no Brasil.

Propostas rasas e escassas nos planos de governo

Poucos municípios têm planos de contingência para o calor. São Paulo e Rio de Janeiro criaram planos com protocolo específico para ondas de calor. No Rio, elas passarão a receber nomes, a exemplo do que ocorre com os furacões nos Estados Unidos. Belo Horizonte, Salvador e Fortaleza são outras capitais com planos de contingência para emergências de calor.

Já os planos de adaptação são mais vagos, e a maioria foca em criação de áreas verdes. Medidas mais profundas como mudanças nos planos diretores, no zoneamento urbano e na malha de transportes raramente fazem parte da realidade de propostas de candidatos a prefeito. Quando o enfrentamento ao calor é mencionado, normalmente está acompanhado de programa de arborização urbana.

No Rio, o prefeito Eduardo Paes (PSD) promete o ZN Verde, para arborizar a Zona Norte, a região com menos árvores na cidade. Guilherme Boulos (PSOL), em São Paulo, Bruno Reis (União Brasil), em Salvador, Maria do Rosário (PT), em Porto Alegre, e Fuad Noman (PSD), em Belo Horizonte, também citam a arborização urbana ou os corredores verdes como medidas de mitigação do calor.

O calor aparece ainda nos planos municipais sobre ações climáticas prometidos por candidatos, como Sebastião Melo (MDB), que busca a reeleição em Porto Alegre, Fabio Novo (PT), em Teresina, e Amom Mandel (Cidadania), em Manaus.

Em São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que também tenta a reeleição, afirma que vai mitigar as ondas de calor com a expansão do seu Programa Local de Adaptação e Resiliência Climática (PLARC), que contempla a criação de áreas verdes estratégicas e a descarbonização.

Diretor executivo do Instituto Polis, Henrique Frota explica que, como as ondas de calor não geram eventos únicos tão marcantes quanto tempestades, a comoção é menor, o que reflete em menos promessas eleitorais. Mas ele lembra que o calor já motivou operação recente da prefeitura de São Paulo para atendimento à população em situação de rua.

— Antigamente o normal era ter só operação de frio.

Dias quentes têm o dobro de mortes em São Paulo

Paulo Saldiva destaca que durante ondas de calor fica em cerca de 100 o número de mortos recebidos por dia pelo Serviço de Verificação de Óbitos de São Paulo, da USP, o maior do gênero no mundo. É o dobro dos demais períodos.

— A maioria é de idosos e pessoas socialmente vulneráveis. O atestado de óbito aponta causas como AVC, infarto. Mas por trás disso está o calor — enfatiza Saldiva, que já demonstrou, em pesquisas, que quando passa de 29°C na cidade de São Paulo, o número de mortes por causas naturais aumenta 50%.

Uma pesquisa recente na revista Journal of Applied Physiology mostrou que quando a temperatura passa de 34°C e a umidade está elevada até mesmo o coração dos mais jovens e saudáveis entra em estresse.

Mobilidade é ponto focal para a resiliência

Tudo nas cidades médias e grandes conspira para que esquentem. São feitas de asfalto, concreto, aço, materiais que absorvem e amplificam o calor de dia e o irradiam à noite por horas. Há emissões de veículos e indústrias. E justamente o setor de transporte é onde problema e solução se encontram.

Os transportes são um dos pontos focais na construção da resiliência ao calor, afirma Andrea Santos, diretora para a América Latina da Rede de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Urbanas (UCCRN), professora da Coppe e secretária do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Ela frisa que as cidades precisarão não apenas de obras, planos e políticas públicas, mas de novos paradigmas, que coloquem a sustentabilidade e o clima como fatores obrigatórios de projetos.

Santos é uma das autoras do estudo “We need to prepare our transport systems for heatwaves – here’s how” (“Precisamos preparar nossos sistemas de transporte para ondas de calor – veja como”), publicado na Nature este mês. O calor extremo entorta trilhos, derrete fios e superfícies de estradas e estoura pneus.

— Há muitas coisas que se pode fazer. É uma vergonha, por exemplo, que toda a frota de ônibus não esteja refrigerada. Isso é questão de saúde pública. Mas é só o início do que precisa mudar. Adaptação é uma urgência — frisa Santos, que destaca a necessidade de pontos de resfriamento e de hidratação pela cidade. — O calor agora dura o ano inteiro.

A climatização da frota já foi promessa de candidatos em diferentes cidades do Brasil, mas nunca foi cumprida em sua totalidade.

O estudo elenca, entre as medidas necessárias, a instalação de sensores para monitorar as condições de tempo e o desenvolvimento de “ferramentas de resiliência”, para o setor de transporte operar em condições extremas.

Educação no sufoco com salas de aula sem climatização

O calor também impacta a educação. Pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) constataram que a atenção dos alunos diminui significativamente durante períodos de temperaturas extremas em escolas de Minas Gerais.

O Censo Escolar de 2022 revelou que cerca de 70% das salas de aula em escolas municipais e estaduais no Brasil não têm climatização. Apenas Rio de Janeiro, Recife e Manaus têm mais da metade de suas salas com ar-condicionado.

A adaptação das cidades preservam vidas

Um estudo publicado semana passada na Nature Medicine revela que as medidas de adaptação já reduzem as mortes por calor.

A pesquisa, realizada por Elisa Gallo e sua equipe do Instituto de Saúde Global de Barcelona estimaram em 47.690 o número de mortes por calor na Europa em 2023, ano mais quente da História. Mas, sem as adaptações feitas nos últimos anos, o número seria 80% maior. Entre idosos acima de 80 anos o aumento seria de 100,7%.

“Estratégias de adaptação salvam vidas e, à medida que a Terra esquenta, precisamos de ideias ainda melhores”, disse Gallo à Nature.

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