Turbinados este ano, os repasses já liberados pelo governo Lula em emendas parlamentares com transferência direta aos municípios — mecanismo com pouca transparência conhecido como “emendas Pix” — priorizam cofres de prefeituras que comandam cidades pequenas e, para especialistas, têm potencial para distorcer a disputa eleitoral do ano que vem, em meio à ausência de critérios para sua destinação e às dificuldades na fiscalização da aplicação desses recursos. O dinheiro é enviado diretamente dos cofres da União, sem um projeto específico. A modalidade também foi usada por parlamentares para irrigar redutos comandados por parentes.
Cruzamento feito pelo O Globo entre dados de execução do Orçamento e os resultados populacionais do Censo 2022, divulgado pelo IBGE, aponta que as cidades com menos de 100 mil moradores concentram 85% dos R$ 5,9 bilhões já empenhados (com autorização para uso) em emendas Pix aos municípios em 2023. Por outro lado, elas somam apenas 42% da população das cidades contempladas com transferências diretas.
Os dados revelam o tamanho da discrepância no acesso às verbas. O grupo de municípios com menor população tem o maior valor de emendas Pix por habitante: foram liberados R$ 75,39 para cada morador. Já os municípios com população acima de 1 milhão terão à disposição transferências diretas que somam R$ 2,94 para cada habitante. Além disso, enquanto as 33 cidades com mais recursos por população, todas com menos de 16 mil moradores, somam, em média, o equivalente a R$ 1,6 mil em repasses para cada habitante — a média é de R$ 36,87 quando consideradas todas as 4.147 cidades beneficiadas no período.
Uma das cidades no grupo com mais dinheiro a ser repassado por emendas Pix exemplifica a dinâmica eleitoral, que ganha contornos familiares. Bituruna, no interior do Paraná, que soma pouco mais de 15 mil habitantes, será beneficiada com R$ 19,4 milhões neste ano, o que equivale a um repasse de R$ 1.252,03 por morador, quase 33 vezes a média nacional nessa modalidade de emendas. Desse valor, 83% foram destinados pelo ex-deputado federal Valdir Rossoni (PSDB), pai do atual prefeito da cidade, Rodrigo Rossoni (PSDB), em uma única destinação — 91% de tudo que indicou para execução do Orçamento deste ano. O valor é significativo para o caixa da cidade, que tem receita estimada em R$ 69 milhões para 2023.
Nas redes sociais, o prefeito comemorou a aquisição de um ônibus para projetos da Saúde por meio de recursos repassados pelo pai, via emendas, em publicação feita em março. O O Globo não conseguiu contato com o ex-deputado Valdir Rossoni. A Prefeitura de Bituruna também não respondeu a um pedido para detalhar em que obras e projetos serão aplicados os repasses federais.
Já São Luiz, em Roraima, terá à disposição o maior montante destinado por meio de emendas Pix frente à sua população. A cidade soma apenas 7.315 habitantes, o menor número do estado. Ao todo, a prefeitura contará com R$ 37,7 milhões em caixa, o que equivale a R$ 5.163,37 por morador, destinados pelo ex-senador Telmário Mota e pela ex-deputada federal Shéridan de Oliveira (PSDB). Procurada, a prefeitura de São Luiz não respondeu ao pedido do O Globo para detalhar como seriam aplicados os recursos de emenda Pix já empenhados para 2023.
O atual prefeito, James Batista (Solidariedade), que governa a cidade pela terceira vez, coleciona condenações no Tribunal de Contas de Roraima por mau uso de dinheiro público. Em outubro do ano passado, o político foi condenado pelo TCE a restituir aos cofres públicos pouco mais de R$ 1,1 milhão pela ausência de prestação de contas de valores repassados em um convênio com o governo do estado para recuperar estradas. Em dezembro, foi multado em R$ 8.902,80 por não cumprir a Lei de Acesso à Informação (LAI) em relação ao enfrentamento da pandemia de Covid-19. No ano passado, o prefeito de São Luiz ficou nacionalmente conhecido por contratar um show do cantor sertanejo Gusttavo Lima ao custo de R$ 800 mil aos cofres do município. O evento foi cancelado por determinação da Justiça.
Também em Roraima, Mucajaí, cidade de 18 mil habitantes, terá R$ 18,051 milhões em emendas para investimentos, o que representa quase R$ 1 mil por morador em recursos. Quase 90% do valor foi direcionado ao município pelo ex-deputado federal Edio Lopes (Solidariedade), que é marido da atual prefeita, Eronildes Aparecida Gonçalves, eleita pelo PL. O montante também representa toda a verba do Orçamento federal destinada em emendas pelo então parlamentar no Orçamento deste ano. Em relação aos recursos da cidade, a quantia liberada equivale a quase um quarto das receitas previstas para 2023 no orçamento municipal, estimadas em R$ 66,5 milhões.
Procurada, a Prefeitura de Mucajaí não detalhou como pretende utilizar os recursos. Edio Lopes afirmou ao jornal O Globo, que Roraima tem 15 municípios e uma bancada de 11 parlamentares, o que equivale a “quase um parlamentar por município”, o que explica o alto volume de recursos. Todas as cidades do estado tiveram repasses de emendas Pix liberadas este ano.
— Minhas emendas serão aplicadas prioritariamente em projetos de desenvolvimento da agricultura familiar, recuperação e manutenção de estradas vicinais, saúde e educação. Quanto à destinação para Mucajaí, o município não recebeu emendas de outros parlamentares. Por esta razão, e ainda por ser o município onde vivo há mais de 40 anos, julguei ser justo e necessário — justificou.
Também na Região Norte, o ex-deputado Jesus Sérgio (PDT-AC) escolheu destinar mais da metade das emendas individuais em transferências especiais a Tarauacá, que é comandada por sua mulher, Maria Lucinéia (PDT). A liberação de R$ 13 milhões ao município, que soma pouco mais de 43 mil habitantes, equivale a 16% das receitas totais da cidade para 2023, estimadas em R$ 80,9 milhões.
O ex-parlamentar reforça a relação com a prefeita e com a cidade nas redes sociais, em que dá destaque a projetos movimentados com recursos oriundos de indicações do seu gabinete na Câmara. Em dezembro passado, quando ainda estava no exercício do mandato, Jesus Sérgio comemorou a finalização de obra em uma rua de Tarauacá, destacando que o empreendimento contou com recursos destinados por ele. Procurado pelo GLOBO, Jesus Sérgio não retornou ao contato.
A relação entre parlamentares federais e prefeitos faz parte da lógica das eleições municipais, na avaliação do professor de Ciência Política Emerson Cervi, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para deputados e senadores, destinar emendas a cidades pequenas é uma forma mais eficaz de capitalizar politicamente. Por outro lado, com a reeleição dos prefeitos, ainda conseguem construir uma rede de cabos eleitorais para as eleições gerais de 2026.
— É muito mais fácil mostrar obras e garantir apoio da população em municípios pequenos, porque o político não precisa dividir a visibilidade com outros parlamentares — explica. — Por outro lado, prefeitos e vereadores que sejam candidatos à reeleição neste ano são futuros cabos eleitorais de deputados daqui a três anos. Por isso, o bom desempenho de aliados e familiares em redutos é importante para o deputado e o senador.
O advogado Guilherme France, coordenador de Pesquisa da Transparência Internacional, alerta que, embora os parlamentares conheçam bem realidades locais e sejam representantes legítimos para pleitear recursos para as comunidades, não há transparência sobre os critérios adotados nas negociações envolvendo essas emendas, inclusive nos lobbies feitos pelas prefeituras. Outro aspecto é que pequenos e médios municípios, mais favorecidos, em geral, não contam com estruturas consistentes de fiscalização, como Controladoria Geral do Município e portais de transparência adequados.
Nessa modalidade de emendas parlamentares, criada em 2019 para acelerar o repasse a estados e municípios, ao menos 70% dos recursos devem ser aplicados em investimentos, excluindo despesa com pessoal e pagamento de dívida. Como mostrou o jornal, a distribuição via emendas Pix é oito vezes maior em 2023 na comparação com 2020, quando começou a valer.
Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que cabe aos tribunais de contas locais fiscalizar a aplicação de transferências especiais e eventuais casos de irregularidades. O entendimento é que a emenda à Constituição que estabeleceu esses pagamentos, feita em 2019, determina que os recursos relativos às transferências especiais “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira”.
Nos estados, a análise sobre as transferências ainda está em estágio inicial. O Tribunal de Contas do Paraná, por exemplo, abriu no dia 14 de julho um processo para definir a forma como vai atuar nesses casos. Em Santa Catarina, um mapeamento de emendas foi iniciado e, por enquanto, não é analisada a aplicação dos recursos. O TCE de Roraima não informou se já faz um monitoramento desses repasses.