Massacre que deixou 4 mortos levantou discussão sobre como documento é obtido. Atirador tinha armas legais apesar de histórico de esquizofrenia. Especialistas defendem testes mais robustos e menor prazo para renovação
Autor da chacina de Novo Hamburgo, que resultou na última terça-feira (22) na morte de quatro pessoas – incluindo dois policiais –, Edson Fernando Crippa, de 45 anos, tinha histórico de esquizofrenia e já havia sido internado quatro vezes. Apesar disso, possuía legalmente armas de fogo. Crippa tinha cadastro de colecionador, atirador desportivo e caçador, o chamado CAC, uma modalidade que explodiu durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022).
Após o massacre, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento para investigar as circunstâncias envolvendo o porte e o registro das armas pelo atirador.
Para um civil comprar uma arma sob status de CAC, ele precisa apresentar ao menos 13 documentos que comprovam, por exemplo, ausência de antecedentes criminais, ocupação lícita, capacidade técnica para manusear arma de fogo e um laudo de aptidão psicológica, obrigatoriamente fornecido por um psicólogo credenciado pela Polícia Federal.
Essa última exigência existe desde o Estatuto do Desarmamento, de 2003. Mesmo após o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro flexibilizar a obtenção do registro, o laudo psicológico se manteve como requisito mínimo para adquirir o armamento.
Em nota sobre a avaliação psicológica para manuseio de arma de fogo publicada em 2019, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) afirmou que o psicólogo considera aspectos como “atenção, memória auditiva e visual, controle emocional, empatia, equilíbrio, maturidade e prudência” para emitir um laudo a um interessado e adquirir arma de fogo.
Pessoas com indicadores psicológicos como “explosividade, frustração, hostilidade, imprevisibilidade, instabilidade emocional e irritabilidade” são consideradas inaptas para obter o registro.
Especialistas ouvidos pela DW avaliam, porém, que há problemas no regramento e em sua implementação que facilitam a obtenção de um registro de CAC mesmo quando o interessado em comprar uma arma não tenha condição plena de saúde mental.
Eles elencam, por exemplo, o tempo de validade do documento, a forma de escolha do psicólogo e o modo como o teste é aplicado como os principais desafios. A capacidade de gestão do órgão responsável por acatar os pedidos também é fundamental no processo.
Armas do atirador estavam regulares
Na casa do suspeito havia duas pistolas e duas espingardas, além de “farta munição”. Ao menos duas delas estavam legalmente registradas no nome dele, uma inclusa no sistema gerido pelo Exército, e a outra no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), que compõe o armamento gerido pela polícia.
Em nota publicada pelo G1, o Exército informou que o “laudo de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo” foi devidamente apresentado pelo suspeito, o que permitiu o registro de uma das armas, uma pistola calibre .380. A Força afirmou que o documento, de 2020, foi assinado por profissionais credenciados junto à Polícia Federal. A PF também disse que o suspeito apresentou laudo psicológico apto para registrar a arma no Sinarm.
À rede Globo, o secretário da Segurança Pública, Sandro Caro disse, porém, que o suspeito, morto pela polícia após um cerco de 9 horas, foi internado quatro vezes por esquizofrenia. “Então é óbvio que qualquer um de nós sabe que no momento em que se der acesso a arma de fogo e a farta munição a uma pessoa com esquizofrenia, uma tragédia vai ocorrer”, afirmou.
Agora, o Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação para apurar como o homem conseguiu registrar o armamento, mesmo não possuindo condições cognitivas adequadas.
Como funciona o teste de aptidão psicológica
Para um civil obter uma arma de fogo, seja como CAC, seja a título de defesa pessoal, é necessário passar pelo teste de aptidão psicológica. Ele é orientado por duas normativas, uma da Polícia Federal, de 2014, e outra do Conselho Federal de Psicologia, de janeiro de 2022.
A regra desenhada pela PF obriga que uma bateria mínima de exames seja aplicada. Ela inclui testes projetivos, expressivos, de memória, de atenção e uma entrevista semiestruturada.
Em um manual publicado em junho de 2022, o Conselho Federal de Psicologia afirma que, em uma eventual fiscalização da PF, o psicólogo deve ter realizado esta bateria mínima para emitir um laudo. É o que será avaliado na investigação sobre o tiroteio em Novo Hamburgo.
Já a resolução do CFP diz que o psicólogo deve considerar aspectos cognitivos, traços de personalidade, juízo crítico e o comportamento do postulante a adquirir uma arma de fogo.
O profissional precisa indicar, por exemplo, se o candidato é capaz de realizar funções executivas, e consegue manter um determinado grau de atenção. Níveis de agressividade e ansiedade — se exacerbadas ou diminuídas — também são avaliados. O paciente ainda não pode possuir “quaisquer transtornos que impliquem prejuízos de autocontrole”.
Mesmo pessoas com depressão, ansiedade e déficit de atenção podem ser barradas de comprar o armamento por um psicólogo. Já a esquizofrenia é justamente um transtorno considerado grave, que pode afetar a cognição do indivíduo, suas emoções, percepção da realidade e convicções. Apesar disso, o diagnóstico não é considerado simples pois os sintomas não são uniformes para todos os pacientes.
As duas normativas dialogam entre si, mas, diferente da regra da PF, o CFP sugere também a realização de um teste intelectual.
A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, vê a necessidade de implementação de um teste mais robusto. “Talvez seja um momento de pensar em um teste que seja um pouco mais aprofundado, mais robusto, considerando as mudanças que a gente viu nos últimos anos. Hoje, infelizmente, se você buscar na internet, não é difícil achar fóruns de pessoas ‘ensinando’ como responder ao teste para que você seja aprovado”, disse.
Em uma breve pesquisa em sites de busca, a DW encontrou diversos vídeos e sites com “dicas” de como ser aprovado no teste psicológico para obtenção do registro de CAC. Em alguns casos, influenciadores ensinam “como passar de primeira” no exame.
Legislação impõe desafios: a validade do laudo
Segundo o próprio CFP a avaliação psicológica é um processo científico, mas não é perene. “As condições psicológicas de uma pessoa, e entre elas aquelas que interferem na aptidão para manuseio e/ou porte de arma de fogo, não são estáticas”, escreveu em nota de 2019.
Na ocasião, o ex-presidente Jair Bolsonaro havia publicado um decreto que ampliou de cinco para dez anos o período de renovação do Certificado de Registro do armamento. Isto significa que um CAC poderia levar uma década para refazer a bateria de exames e documentos necessários para manter seu arsenal.
O prazo vai na contramão da orientação do próprio CFP, que propõe uma validade bem menor, de dois anos, para que o psicólogo responda pelo documento de avaliação psicológica.
“Ao se considerar que a pessoa apresenta particularidades em cada ciclo da vida adulta e, portanto, sua organização psíquica sofre mudanças ao longo desse processo […] parece equívoca a ideia de que as interferências sociais e culturais ao longo do tempo não afetarão o funcionamento psíquico de uma pessoa”, diz o manual do órgão. O profissional não tem acesso a todo o histórico do paciente, o que reforça a necessidade de uma validade mais enxuta.
Em julho de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reduziu a validade de registro das armas de dez para três anos no caso de CACs. Quem já possuía o armamento, porém, entrou em um regime de transição. O laudo psicológico do atirador de Novo Hamburgo, por exemplo, foi emitido há quatro anos.
“O teste psicológico não é absoluto. É uma foto da pessoa naquele momento. Não é uma coisa absoluta que vai resolver o problema”, afirma o professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani. “A questão é que tem que ver quem é de fato o CAC. Tem que ter uma forma de você comprovar que você utiliza essa arma mesmo, não uma coisa de fachada, como acontece hoje.”
Atribuição aleatória do psicólogo
Outro problema observado na legislação é a escolha do profissional que vai atestar a capacidade do candidato.
O pacote de alterações na lei assinado por Bolsonaro dispensou a obrigatoriedade de o psicólogo estar credenciado pela Polícia Federal para assinar o documento no caso de CACs.
Em 2021, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, suspendeu a medida antes mesmo de entrar em vigor, mas a implementação da regra atual ainda esbarra em desafios.
O decreto de Lula, de julho de 2023, mudou a forma de definir o profissional responsável pela emissão do laudo. Antes, a regra permitia ao próprio postulante escolher o psicólogo, desde que registrado na PF.
A nova regra cria uma atribuição aleatória, assim como acontece no exame psicotécnico para obter a carteira de motorista. Mas o novo modelo ainda não foi completamente implementado.
“Isso evitaria situações como o favorecimento de psicólogos amigos, familiares e conflito de interesse. A gente já ouviu relatos de clube de tiro que indica o psicólogo, claramente tem um conflito de interesse. O clube quer que a pessoa seja aprovada, o psicólogo quer continuar sendo indicado”, afirma Natália Pollachi.
“Esses casos existem, e essa atribuição aleatória poderia mitigar isso, mas isso não está implementado.”
Gestão dos pedidos
Outra lacuna que gera problemas é a gestão dos registros, que foi transferida da Polícia Federal para as Forças Armadas no governo Bolsonaro, e voltou a ser atribuição da PF no governo Lula. A transferência de atribuição, porém, proposta em julho de 2023 para durar 180 dias, ainda não aconteceu.
Segundo o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, a pasta está trabalhando para assumir a responsabilidade a partir de 31 de dezembro deste ano e vai priorizar a revisão dos registros emitidos.
Pollachi vê a transferência como positiva, já que a Polícia tem mais acesso ao histórico dos candidatos. Em março de 2024, um relatório do Tribunal de Contas da União mostrou que 5,2 mil pessoas condenadas, inclusive por homicídio, conseguiram registro para CACs em desacordo com a lei.
“Mas é preciso criar uma estrutura para receber essa atribuição. São centenas de milhares de solicitações todo ano de compra, de registro, de transferência, e de cancelamento. A gente está um pouco preocupado com a execução desse cronograma”, disse Pollachi.
“Ficamos felizes que o ministro falou dessa priorização, mas a priorização precisa vir acompanhada de recursos”, reforçou.