São cada vez mais carros chineses que cruzam os mares desde a Ásia para chegar ao Brasil. De janeiro a agosto deste ano a China alcançou a inédita posição de segundo maior fornecedor de veículos, com 13,6% da fatia importada pelo Brasil. A Argentina continua líder, segundo Marta Watanabe e Álvaro Fagundes, do jornal Valor, com 43,5% das compras externas brasileiras de carros, mas os chineses já deixaram para trás fornecedores mais tradicionais como o México e Alemanha, que ficaram com 10% e 8,8%, respectivamente.
O carro chinês abre trilha num momento em que a importação brasileira de veículos se acelera e recupera o nível anterior à pandemia de covid-19. As compras externas de automóveis somaram US$ 3,24 bilhões no acumulado até julho, 48% a mais que igual período do ano passado, num valor que supera os US$ 3 bilhões de iguais meses de 2018.
Os carros que chegam da China somaram US$ 440,2 milhões no acumulado até agosto, mais de quatro vezes os US$ 90,4 milhões de igual período do ano passado. O valor deste ano até agosto supera também os US$ 186,7 milhões comprados pelo Brasil em automóveis chineses em todo o ano de 2022. No ano passado os veículos do país asiático ficaram com pouco mais de 5% dos desembarques de carros no Brasil.
O caminho aberto pelos carros chineses não veio por acaso, diz Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). O avanço no mercado brasileiro vem com a consolidação do país asiático como líder global na venda de veículos, reforçando a nova faceta da China, cujos produtos deixaram de ser apenas “made in China” para serem “designed in China”. “Ela definitivamente deixou de ser o país que exportava bugigangas. A China é hoje um país industrial muito complexo que exporta de tudo. E o ponto de destaque é que a China tem se transformado cada vez mais num país que não é só produtor, mas criador de produtos.”
Paralelamente ao comércio há os investimentos no Brasil, aponta Cariello. Dados levantados pelo CEBC mostram que o setor de veículos automotores foi alvo de 28% dos investimentos chineses no Brasil em 2022, ficando atrás apenas do setor elétrico, com fatia de 45%. “A pesquisa mostra também que o investimento da China no mundo inteiro na cadeia de veículos elétricos cresceu mais de 40 vezes entre 2016 e 2022”, diz ele, lembrando que a importação de automóveis e os investimentos podem alavancar também a compra de partes e peças.
Tatiana Prazeres, secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), diz que os dados mostram como a China está cada vez mais competitiva. “É prática que para desenvolver mercado as empresas chinesas façam o movimento de exportar para o Brasil com a expectativa de investimentos para produção no país. Com isso as companhias chinesas desenvolvem o mercado, fazem sua marca conhecida. E a partir daí se estabelecem para produção. O dado de comércio está associado aos anúncios recentes de investimentos.”
“Há uma estratégia da China de espalhar carros no mundo e o Brasil é um receptor”, diz Livio Ribeiro, sócio da BRCG e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre FGV). Ele ressalta que alguns mercados sul-americanos têm também atraído os chineses. Mesmo que menores, explica, como não há indústria local automotiva, outros países da região oferecem maior facilidade para entrada dos veículos da China.
Os números de Pequim mostram que de janeiro a julho o país exportou total de US$ 41,1 bilhões em veículos para passageiros, mais que o dobro dos US$ 19,4 bilhões e quase dez vezes os US$ 4,7 bilhões em 2020, sempre considerando os mesmos sete meses. O ritmo é veloz considerando o próprio ranking chinês. Os veículos predominantemente para passageiros saíram do 56º produto mais embarcado pela China de janeiro a julho de 2022 e entraram nos “cinco mais” em iguais meses deste ano, em quarto lugar.
A Rússia é o principal mercado dos carros chineses, com US$ 5,7 bilhões em vendas de janeiro a julho, valor superior a sete vezes os US$ 749 milhões em vendas de igual período do ano passado. Os carros chineses dominam quase metade do mercado local – ante 7% em 2021 -, aproveitando as sanções europeias e americana contra a Rússia.
É prática que para desenvolver mercado empresas chinesas exportem para o Brasil com a expectativa de investimentos para produção no país”
— Tatiana Prazeres
Mas não é só em um ambiente de sanções que o carro chinês ganha espaço. Na Espanha, o país só perde para a Alemanha e o veículo mais vendido no país em agosto era chinês. Pequim calcula que suas as vendas de carros para a Espanha cresceram 2.347% de janeiro a julho, e o país europeu se tornou o quarto maior destino do produto. No México, quinto maior mercado para o gigante asiático, o Brasil tinha 12,5% do mercado em 2021, ante 12,4% dos chineses. Neste ano, a fatia brasileira encolheu para 9%, e a chinesa foi a 28%.
No mapa de destinos da China, o Brasil está em 18º lugar. Nas importações brasileiras de produtos chineses, o carro encosta nos dez itens mais comprados do país asiático, em 11º lugar. Mas a ascensão é notável. No ano passado foi o 87º e em 2021, o 71º.
Dados do Indicador de Comércio Exterior (Icomex/FGV Ibre) mostram que o volume importado de bens de consumo duráveis aumentou 38,1% de janeiro a julho de 2023 contra iguais meses do ano passado, enquanto os preços médios subiram 1,3%. O fornecimento chinês ao Brasil, na mesma categoria, subiu 77,1% enquanto os preços caíram 3,8% em igual período. Pela Secex, os automóveis representaram 66,1% das importações brasileiras de bens de consumo duráveis de janeiro a agosto.
Para Lia Valls, pesquisadora do FGV Ibre e coordenadora da pesquisa do Icomex, a chegada atual dos carros chineses é bem diversa do movimento feito no passado, há mais de dez anos, quando os veículos da China tentaram cair no gosto brasileiro com carros pequenos e baratos. Agora os automóveis são mais sofisticados, mas de forma competitiva.
Ribeiro avalia que a entrada atual de carros chineses está dentro de um movimento que veio para ficar, de forma semelhante à expansão global de carros sul-coreanos há cerca de 25 anos. “Não se conhecia àquela época marcas como Hyundai ou Kia. Agora a nova onda dos carros chineses traz marcas como Great Wall e BYD, compara.
Hoje, diz Cariello, o carro chinês tem mais chance de conquistar o consumidor. “A projeção internacional do pais asiático é maior, com produtos chineses sendo reconhecidos pela qualidade.” O carro chinês chega com outro perfil, avalia, e como há marcas muito relacionadas aos eletrificados, desembarca alinhado ao debate da transição energética.
O que pode acontecer, diz Valls, é que as importações de carros chineses incomodem e que outras montadoras busquem mecanismos de proteção, como já aconteceu no passado.