Quando a inflação termina o ano fora do intervalo determinado, o presidente do BC (Banco Central) precisa justificar os motivos em carta aberta e detalhar como o problema deve ser resolvido.
A meta é definida pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) e cabe ao BC cumpri-la, especialmente por meio da calibragem da Selic, a taxa básica de juros.
O atual titular da autoridade monetária, Roberto Campos Neto, escreverá de acordo com a Folha, a sexta carta desde a criação do sistema de metas para a inflação, em 1999. O texto, endereçado ao ministro Paulo Guedes (Economia), precisa ser divulgado após a divulgação do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) de dezembro, que traz o dado fechado do ano.
No último relatório de inflação, o BC apontou probabilidade de 100% para o estouro do teto da meta de 2021.
A expectativa é que o indicador termine 2021 acima de 10%, quase o dobro do teto da meta. A meta hoje é de 3,75% com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo, podendo chegar até o máximo de 5,25%.
A carta mais recente foi escrita pelo antecessor de Campos Neto, Ilan Goldfajn, em janeiro de 2018. O texto era relativo à inflação de 2017, mas, na ocasião, o então presidente do BC se justificava por ter deixado a inflação ficar ligeiramente inferior ao limite mínimo estabelecido.
Naquele ano, o índice ficou em 2,95%, frente a uma meta de 4,5% com tolerância de 1,5 ponto percentual para baixo ou para cima. Os preços poderiam ter ficado entre 3% e 6%. A Selic terminou o período em 7%.
De acordo com o documento, a principal razão da forte desaceleração da inflação era a queda de 4,85% dos preços (deflação) de alimentação no domicílio, justamente o item que iniciou a série de choques de custos que levaram o indicador de 2021 aos dois dígitos.
As outras cartas foram escritas em 2015, 2003, 2002 e 2001, todas em razão de ter excedido o limite superior da meta de inflação. Os motivos foram diversos e passaram por desvalorização do real, crise de confiança de investidores, crise global e realinhamento de preços que estavam reprimidos.
Desde a implementação do regime, todos os presidentes do BC já tiveram que justificar o descumprimento da meta de inflação.
Mandatário mais longevo até agora, Henrique Meirelles foi o único a ter que escrever duas cartas ao longo de seu mandato, de janeiro 2003 a dezembro de 2010, oito anos ao todo. Mas os cenários anteriores foram diferentes do atual, destacam os economistas.
“A carta de 2015 ressalta que no meio do ano as expectativas do mercado já mostravam convergência para 2016, o que é totalmente distinto do que vemos agora. Apesar do esforço do BC em aumentar [a Selic] 1,5 ponto percentual a cada reunião, há desancoragem das expectativas [para os anos seguintes]. Isso é bem impactante porque mostra que talvez tenha que ir além [nos juros]”, compara o economista-chefe da consultoria Análise Econômica, André Galhardo.
Na última decisão, em 8 de dezembro, o Copom (Comitê de Política Monetária) do BC elevou a taxa básica novamente em 1,5 ponto percentual, a 9,25% ao ano. No comunicado, o BC indicou nova alta de mesma magnitude para próxima reunião, em fevereiro, para 10,75% ao ano.
Galhardo pondera ainda que esta é a primeira carta escrita após a autonomia do BC, que definiu objetivos secundários à autarquia. Além da inflação, que continua sendo a principal atribuição, a autoridade precisa olhar para a atividade econômica e para o mercado de trabalho.
“Mesmo que tenha deixado claro que o controle de preços é o alvo principal, o BC terá que dar alguma satisfação em relação ao nível de atividade econômica e colocar isso na carta sem causar estranheza ao mercado”, pontua o analista.
Para economistas consultados pela Folha, a carta é só uma formalização das justificativas que já vêm sendo divulgadas em comunicações oficiais, como a decisão do Copom, a ata da reunião, o relatório de inflação e falas públicas do presidente e de diretores da autarquia.
Com base nesses documentos e discursos, Campos Neto deve citar os sucessivos choques de custos, que começaram com a mudança na demanda por alimentos na pandemia de Covid-19. As pessoas ficaram em casa e a alimentação no domicílio ficou mais cara.
Depois vieram problemas em safras por eventos climáticos, elevação nos preços das commodities acompanhada de desvalorização do real, alta nos combustíveis e a crise hídrica, que encareceu a conta de luz do brasileiro.
“A justificativa deve conter os choques e todo o descompasso na cadeia de suprimentos causado pela pandemia”, destaca o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez.
Embora o BC tenha atribuído parte do descontrole das expectativas de inflação ao risco fiscal nas comunicações oficiais, Sanchez diz não acreditar que a carta dê muita ênfase às contas públicas. “A percepção do mercado de perda de credibilidade na âncora fiscal mexeu com as expectativas para a inflação futura, mas os dados correntes foram melhores que o esperado”, pontua.
“As cartas tendem a ser bem sucintas, até para não dar muito guide [sinalização de passos futuros]. É importante não gerar desentendimento”, diz Sanchez.
Já o economista-chefe da JF Trust Investimentos, Eduardo Velho, aposta que o BC deverá trazer a deterioração fiscal como justificativa.
“Com certeza, terão que admitir a deterioração da política fiscal, com adiamento de privatizações, ameaça do descumprimento da regra do teto dos gastos, que só foi eliminada recentemente, e perspectiva de menor crescimento futuro. A alta dos juros e menos receita em 2022 devem sancionar maior deficit primário e uma reação maior do ajuste dos juros. Isso refletiu na alta do dólar e da demanda de hedge [proteção cambial]”, coloca o economista.
O economista-chefe João Beck, economista e sócio da BRA, escritório credenciado da XP Investimentos, ressalta que a carta deve conter as justificativas já divulgadas pela autoridade monetária.
“O BC já se justifica a todo momento, no comunicado que sai junto com a decisão, na ata da reunião, no relatório de inflação, ao TCU [Tribunal de Contas da União] e ao Senado. O que vem na carta geralmente é uma extensão de coisas que já foram faladas”, diz.
Além dos choques, Beck pondera que o BC levou a taxa básica de juros ao menor nível da história, a 2% ao ano em agosto do ano passado e manteve o patamar até março deste ano. O patamar excessivamente estimulativo, segundo ele, veio acompanhado da comunicação do BC de que a inflação era temporária, o que levou as expectativas a subirem ao longo de 2021.
“O mundo todo acreditou que a pressão inflacionária seria temporária, não só o Brasil. Isso porque acreditava-se que seria uma depressão econômica, mas não foi. Por isso se reduziu muito os juros”, lembra Beck.
A avaliação do mercado é que a autoridade monetária demorou a perceber a persistência de inflação, que foi qualificada como temporária por meses a fio, e quando começou a subir juros deu sinalizações equivocadas de que o aperto monetário não seria tão longo ou tão intenso. A condução da política monetária deve ser uma das justificativas de Campos Neto.
A alta dos preços foi mais persistente que o esperado e também contaminou as expectativas.
Em seus discursos, contudo, o presidente do BC defende que a Selic foi levada a 2% ao ano diante da projeção de um cenário que não se concretizou, com queda drástica no PIB e risco de deflação.
“As cartas normalmente são meras repetições do que a gente viu nos comunicados e nas atas. O grande lance deste ano é a questão de a Selic ter chegado a 2% ao ano, terá que justificar se tardou a começar o ciclo de alta e já existe um risco de a inflação furar o teto da meta também no próximo ano”, pontua Galhardo.