O segundo dia de pausa no calendário de jogos da Copa do Mundo permite um olhar para além dos campos de futebol no Catar. O país-sede do torneio ainda conserva muito bem as tradições do Oriente Médio e a relação com os animais chama a atenção dos torcedores. Em poucas horas no tradicional mercado da região do Souq Waqif, é possível ver guardas reais montados em camelos, um centro especializado em falcões e gatos, muitos gatos, nas ruas da região central de Doha. A reportagem de André Avelar, do R7, em Doha, no Catar.
Assim que o sol começa a deixar o calçadão de Corniche, com arranha-céus modernos ao fundo, é hora de a guarda do palácio administrativo da família real recolher os camelos, não cavalos, para um dormitório anexo. Lá os bichos são alimentados, escovados e ganham até um cobertorzinho com espaço para a corcova — no mundo árabe, não existe polêmica em relação a dromedários (uma corcova), e todos os animais da espécie são chamados de camelos (uma ou duas corcovas).
Os animais do deserto, com capacidade de realizar enormes travessias sem necessidade de ingestão de água, fazem parte da história da região. Do fim da década de 1980 para cá, foi instituída a corrida de camelos em pistas de até 10 km, com os animais correndo a quase 60 km/h, em uma temporada interrompida pela Copa.
Com as corridas, os bichos foram ganhando também importância financeira e daí nasceu um mercado de competição. A família Al-Thani, que governa o país em uma monarquia absolutista, teria animais com pedigree avaliados em US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,2 milhões). Atualmente, já sem os jóqueis, robôs estimulam via corrente elétrica o ritmo do animal e premiações de todos os valores são pagas a apostadores vencedores.
Ainda pelas ruas estreitas do mercado, que vende todo tipo de suvenir e virou ponto de comemoração dos torcedores classificados às quartas de final, há o Falcon Souq. Em um quarteirão inteiro, há um hospital para a ave-símbolo do Catar e diversas lojas que comercializam os animais e produtos da falcoaria. Há mais de 5.000 anos, o povo beduíno se utilizava da preciosa ajuda dos animais para caçar no deserto. O negócio hoje ficou milionário.
Pelas lojas, sem muito pechinchar, é possível encontrar falcões a partir de 4.000 dólares (R$ 20.800). Entre os mais caros por ali, os de origem irlandesa e paquistanesa, os preços estão por volta dos 60 mil dólares (R$ 312 mil). A dúvida que fica é se os vendedores estão cansados de responder às perguntas de sempre dos curiosos turistas ou se há mesmo mercado para tantos animais, em tantos estabelecimentos.
“Tem gente que gosta de ostentar um carro, tem gente que gosta de ostentar relógios Rolex, tem gente que gosta de ostentar falcões. É um estilo de vida daqui”, disse um homem que não quis se identificar.
Os animais, que vivem não mais que dez anos, ficam expostos amarrados em poleiros, com os olhos vendados para não brigar uns com os outros, e assim passam a vida até serem adquiridos por uma endinheirada família que queira um pouco de luxo ou use a ave para a caça no campo.
No caminhar pela capital também é possível ver uma infinidade de gatos. Entre bichanos mais assustados e outros que esperam por carinhos de turistas, os animais parecem ser bem cuidados, ainda que não se saiba exatamente por quem. A preferência por gatos em relação a cachorros estaria ligada a temas do islamismo.
Mas a ausência de cães nas ruas ou casas há tempos levanta suspeitas e está longe de ser uma história agradável. Seis meses antes do início do Mundial, a imprensa internacional registrou uma matança desses animais. O governo classificou o episódio como “inaceitável”, quatro homens foram considerados suspeitos, mas a história parou por aí e não se tem muito mais informação.
Assim como os porcos, por exemplo, os cachorros não são considerados limpos e puros e sofrem resistência do povo catari também com fundamentos religiosos, às vezes distorcidos. Para piorar, parques, shoppings e restaurantes não permitem a entrada de animais de estimação.