Em dos três exames de covid-19 apresentados pelo presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal não possui CPF, RG, data de nascimento nem qualquer outra informação que vincule o laudo ao chefe do Executivo ou a qualquer outra pessoa. No papel da Fiocruz, atribuído pela Advocacia-Geral da União (AGU) a Bolsonaro, aparece apenas uma identificação de nome: “paciente 5”. O mesmo não ocorre nos outros dois laudos, feitos pelo laboratório Sabin.
Nos dois exames do Sabin, constam codinomes (Airton Guedes e Rafael Augusto Alves da Costa Ferraz), mas esses documentos informam dados pessoais do presidente da República – a data de nascimento, RG e CPF são do próprio Bolsonaro.
Segundo a Sociedade Brasileira de Análises Clínicas, a legislação “impõe a correta identificação do paciente no momento da coleta de amostra biológica e da entrega do laudo, inclusive com a apresentação de documento de identidade civil”.
A resolução 302/2005 da Anvisa exige que o laboratório clínico e o posto de coleta laboratorial solicitem ao paciente documento que comprove a sua identificação. O cadastro do paciente deve incluir número de registro de identificação do paciente gerado pelo laboratório, o nome dele; idade, sexo e procedência, entre outras informações.
A resolução também exige que o laudo mostre “nome e registro de identificação do cliente no laboratório” e identificação do responsável técnico, profissional que liberou a análise, entre outros registros. Procurada para comentar o modelo de divulgação dos laudos, a Fiocruz não se manifestou.
Direito à informação
Uma decisão absolutamente correta. Foi assim que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau classificou a decisão de seu antigo colega, o ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a entrega ao jornal O Estado de S. Paulo dos exames de covid-19 feitos pelo presidente Jair Bolsonaro. “Não há conflito entre o direito à privacidade e o de liberdade de imprensa quando esta é exercida em relação a uma pessoa pública”, afirmou.
Grau se refere ao disposto no artigo 5.º da Constituição Federal, onde o inciso X diz ser inviolável a privacidade das pessoas enquanto os incisos XIV e XXXIII asseguram a todos o acesso à informação ao mesmo tempo em que o artigo 220 garante a liberdade de informação, impedindo qualquer restrição a esta. “É de todo evidente a necessidade de divulgação, pois não se trata de uma pessoa, mas do membro maior do Poder Executivo. De modo que a decisão do ministro Lewandowski é mais do que correta.”
Também considerou correta a decisão o diretor da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o professor Floriano de Azevedo Marques. Para ele, ainda que Bolsonaro tenha direito à sua privacidade, o comportamento que ele adotou diante de sua eventual doença tornou o tema público e não mais resguardado pelo direito à privacidade. “Ao frequentar ambientes públicos e dizer que não estava doente, o presidente trouxe o caso para a arena pública, onde prevalece o direito à informação”, afirmou.
Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, era injustificável a recusa de Bolsonaro em divulgar os exames. O Estado havia ido à Justiça Federal para garantir o direito de poder informar os seus leitores. Por duas vezes a Justiça Federal havia decidido que o jornal tinha razão e deveria receber os exames feitos pelo presidente. Este tentou primeiro entregar um laudo dizendo que Bolsonaro não tinha covid-19. Depois, diante da recusa de a Justiça aceitar a manobra da defesa, a Advocacia Geral da União (AGU) recorrera para o Superior Tribunal de Justiça, que cassara as decisões anteriores. Foi contra esta decisão que o jornal procurou o Supremo.
A ação do jornal foi assinada pelo advogado Afranio Affonso Ferreira Neto. “Mais do que a liberdade de expressão e o direito de informar, essa decisão garante o direito a receber informação. Um direito que não é titulado pela imprensa, mas pela coletividade”, afirmou Ferreira Neto. “O presidente já disse que testou negativo. Então por que a recusa? Por que a defesa da recusa de não mostrar os comprovantes disso?”
Bolsonaro alegava ter “o direito de não mostrar”. “Pra que isso? Daqui a pouco quer saber se eu sou virgem ou não, vou ter de apresentar exame de virgindade para você. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham aí?”, disse o presidente. Para o ex-presidente do STF, Carlos Ayres Brito, são distintas as privacidades do homem comum e do homem público. “O homem público deve ser um livro aberto e, diante da celeuma que surgiu, cabia ao Presidente da República, já que negou que estava contagiado, cabia mostrar um exame efetuado, o que ele não fez.”
O ex-ministro afirmou ainda que “no momento em que vivemos planetariamente, a matéria não se inscreve no âmbito da intimidade, e nem mesmo da vida privada do presidente”. “Esse tema da saúde do presidente, em um momento de pandemia e de doença amplamente contagiosa, é de interesse geral. Note-se que o próprio presidente antecipou o interesse coletivo no resultado do exame a que se submeteu ao tornar pública a realização desse mesmo exame.”
Na decisão em que determinara a entrega dos exames, a juíza Ana Lúcia Petri Betto afirmou: “Repise-se que ‘todo poder emana do povo’ (art. 1º, parágrafo único, da CF/88), de modo que os mandantes do poder têm o direito de serem informados quanto ao real estado de saúde do representante eleito”. E prosseguiu: “Portanto, sob qualquer ângulo que se analise a questão, a recusa no fornecimento dos laudos dos exames é ilegítima, devendo prevalecer a transparência e o direito de acesso à informação pública”, concluiu Ana Lúcia.