Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) têm assumido conforme a Folha de S. Paulo, papel involuntário de cabo eleitoral um do outro por causa de falas suas que são exploradas por apoiadores do respectivo rival.
A estratégia de usar declarações do oponente já foi usada por bolsonaristas em benefício do atual mandatário e se repetiu nos últimos dias com simpatizantes do ex-presidente, que pegaram carona na afirmação de que Lula, se eleito, substituirá clubes de tiro por bibliotecas.
A frase foi reproduzida em uma rede social pelo deputado federal Paulo Guedes (PT-MG) —que no perfil se intitula “Paulo Guedes do Bem”, para demarcar diferença com o homônimo ministro da Economia. “Nem começou a campanha e o maior cabo eleitoral do Lula já tá trabalhando a todo vapor!”, ironizou.
Com 28% de intenções de voto, segundo o Datafolha, atrás do líder Lula (47%), Bolsonaro tem feito as referências ao adversário em tom de alerta, geralmente se dirigindo a seu eleitorado mais fiel.
Quando repercutem frases suas como a de que “tem Lula [como opção] em 2022” para quem não está contente com ele ou a de que o inimigo irá desfazer as realizações do atual governo se voltar ao poder, o campo antagônico tira sarro e enxerga propaganda em favor do ex-presidente.
Mas o inverso também ocorre, na carona de escorregões do petista. O discurso em defesa do direito ao aborto (depois reparado) e outros gestos deram munição à ofensiva bolsonarista —desenvolvida menos em viés de deboche, e mais como ferramenta da batalha ideológica.
Uma das gafes de Lula aconteceu ao relembrar sua atuação em prol da extradição dos sequestradores do empresário Abilio Diniz, ocorrida há mais de 23 anos. O próprio Bolsonaro e seus aliados aproveitaram para associar o concorrente à defesa de bandidos e à “romantização do crime”.
O ex-presidente também virou alvo neste sábado (9) após agradecer, durante ato em Diadema, ao ex-vereador Manoel Marinho, conhecido como Maninho do PT, que é réu junto com o filho sob a acusação de tentativa de homicídio qualificado contra o empresário Carlos Alberto Bettoni, empurrado na rua em 2018.
“Esse companheiro Maninho, por me defender, ele ficou preso sete meses […], porque resolveu não permitir que um cara ficasse me xingando na porta do instituto [Lula]”, disse. Bolsonaristas criticaram a defesa feita por ele e lembraram nas redes que a agressão provocou traumatismo craniano na vítima.
Entusiastas do atual presidente lançam apelos para que o rival fale mais, na esperança de que as mensagens polêmicas prejudiquem seu desempenho.
O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), reuniu em um vídeo uma série de deslizes do petista e postou: “A nós só resta agradecê-lo por tornar mais fácil a nossa missão de lembrar o povo brasileiro do verdadeiro PT”, comentou.
“Apoio ao aborto, MST protagonista [a referência, na verdade, foi ao MTST], zombar de Deus, ataques à classe média. Cada vez mais Lula abre distância no posto de cabo eleitoral número 1 do presidente Bolsonaro”, escreveu o ministro.
Com o debate hoje polarizado entre os dois, as provocações dessa natureza tendem a ficar cada vez mais frequentes, mas o efeito prático é limitado, na opinião do especialista em marketing político Marcelo Vitorino.
“Não acho que isso isoladamente vá converter voto para um ou outro”, diz. “São estímulos que tocam mais as bases de convertidos a ambos do que um eleitorado com maior amplitude.”
Para o professor, esse tipo de discurso acaba se restringindo às militâncias, sem muita força para atrair eleitores medianos. Segundo o Datafolha, 70% dos eleitores afirmam já estarem totalmente decididos sobre o voto neste ano. O percentual é ainda maior entre apoiadores de Lula e Bolsonaro (80%).
Vitorino diz que falas desastradas do petista podem prejudicá-lo nos pilares de sua campanha, com aspectos como convivência entre divergentes e agregação.
“O maior inimigo de Lula hoje é ele mesmo, com muitos exemplos que, do ponto de vista de comunicação, não fazem sentido”, segue o especialista.
Declarações problemáticas nos últimos meses obrigaram o ex-presidente a recuar. Sobre o aborto ele foi a público dizer que era contra, depois de ter defendido a prática como direito universal.
O mesmo ocorreu após afirmar que Bolsonaro “não gosta de gente, ele gosta de policial” —alegou ter confundido as palavras polícia e milícia. Já era tarde: o conteúdo tinha se espalhado pelas redes e melindrado um pilar da base bolsonarista, os agentes de segurança pública.
A campanha digital de Lula não tem embarcado nas brincadeiras sobre os supostos presentes que o adversário lhe dá. O entorno do ex-presidente também evita comentar as frases ruidosas, argumentando que na era das redes sociais tudo viraliza rápido e muitas vezes sem contexto.
Um auxiliar próximo avalia, sob reserva, que Lula e outros políticos ainda estão se acostumando à repercussão ampliada de falas coloquiais e espontâneas, mas o aprendizado é lento.
O comitê do petista diz que evitará perder tempo com cascas de banana lançadas pela militância bolsonarista. A ordem é manter o foco na pauta econômica e nas condições de vida de grande parte da população, em vez de capitular a discussões sobre bandeiras extremistas.
No caso de Bolsonaro, olheiros da campanha ficam de prontidão para reverberar qualquer momento que “evidencie para o eleitor o que Lula realmente é”, nas palavras de um estrategista da comunicação presidencial.
O objetivo, segundo o assessor, é jogar luz sobre casos de corrupção, mentiras e promessas não cumpridas, ressaltando falhas da era petista sobretudo na economia.
As falas de Bolsonaro que acabam servindo de propaganda com sinal trocado são atribuídas pelos correligionários à espontaneidade do chefe do Executivo.
De qualquer forma, a apropriação das falas reforça narrativas de ambos os postulantes.
O petista se coloca como um contraponto à administração da hora no Planalto, com propostas como a de investir em educação em vez de executar medidas pró-armamento. Ele também usa o mote da reconstrução nacional para atacar o que classifica como “governo de destruição”.
Lula afirma que a atual gestão federal desmontou políticas públicas e programas sociais aperfeiçoados ao longo de governos do PSDB e do PT, além de estimular agressões ambientais, falhar no combate à Covid-19 e corroer gravemente instituições da democracia brasileira.
Já Bolsonaro se vale dos descuidos verbais do oponente para retratá-lo como um radical de esquerda, que colocaria em risco o direito de propriedade, a liberdade individual e valores morais e cristãos como a defesa da família e da vida.
Ainda que o presidente recorra também a distorções e inverdades para atingir o líder das pesquisas, é fato que Lula mexeu em vespeiros ao tratar, por exemplo, do aborto, tema controverso para a média da população.
Pesquisa Datafolha em maio mostrou que 39% dos brasileiros acham que a lei sobre o assunto deve continuar como está, com permissão somente em casos de estupro, risco para a mãe e anencefalia do feto, e que 32% defendem a proibição em qualquer circunstância —parcela que era de 41% em 2018.
Após cobranças inclusive de aliados, o petista se retratou: “Sou contra o aborto. Tenho 5 filhos, 8 netos e uma bisneta. O que disse é que é preciso transformar essa questão do aborto em questão de saúde pública. […] Por mais que a lei proíba e a religião não goste, ele existe”.
FRASES DE BOLSONARO E LULA USADAS POR MILITANTES RIVAIS
BOLSONARO
“Não se esqueçam que o outro cara, o de nove dedos, falou que vai acabar com a questão de armamento no Brasil, tá? Vai recolher as armas, clube de tiro vai virar… vai virar biblioteca. Como se ele fosse algum exemplo para isso”
durante sua live semanal, em 30.jun.22
“[Eu] não tinha nada para estar aqui [na Presidência]. Nem levo jeito. Nasci pra ser militar”
em evento com empresários em São Paulo, em 14.jun.22
“As bandeiras do Lula é desfazer [sic] o que nós fizemos até hoje”
em entrevista à rádio Jovem Pan, em 21.mar.22
“Olha, quem não está contente comigo, tem Lula em 22 aí”
em conversa com apoiadores, em 25.mai.21
LULA
“Fui ao Fernando Henrique Cardoso: ‘Fernando, você tem a chance de passar para a história como um democrata ou como um presidente que permitiu que dez jovens que cometeram um erro morram na cadeia'”
em ato político em 17.jun.22, quando se referiu aos sequestradores de Abilio Diniz como ‘meninos’
“Ele [Bolsonaro] não tem sentimento. Ele não gosta de gente, ele gosta de policial”
durante evento do PT, em 30.abr.22; depois se corrigiu e disse que quis falar milícia em vez de polícia
“[Aborto] na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo mundo ter direito e não ter vergonha”
durante atividade do PT, em 6.abr.22, com recuo posterior
“E vocês [do MTST] não serão apenas coadjuvantes [em um eventual governo], vocês serão sujeitos da história”
em vídeo ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em 9.mar.22