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terça-feira 6 de setembro de 2022 às 17:18h

Bicentenário da Independência: O Brasil é o único país latino-americano que, um dia, foi Europa

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Na imensa lista de acontecimentos inusitados que povoam nossa História, existe um que se destaca. O Brasil é o único país latino-americano que, um dia, foi Europa.

Segundo João Gabriel de Lima, do Estadão, isso ocorreu a partir de 1815, quando o rei d. João VI criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – e durou até 1822, data de nossa independência. D. João VI estava no Brasil desde 1808, quando se mudou para o Rio de Janeiro com a Corte para se proteger das guerras napoleônicas – 1815, o ano em que o Brasil virou Europa, foi precisamente aquele em que Napoleão foi derrotado em Waterloo.

E como era essa Europa na qual o Brasil havia acabado de entrar? “Era um continente assolado pelas revoluções e destruído pela guerra”, diz o escritor Laurentino Gomes, autor de dois livros que retratam minuciosamente o período: 1808 e 1822.

“O mapa do continente havia sido retalhado de forma drástica durante as guerras napoleônicas, reis e rainhas tinham sido destronados e humilhados pelo imperador francês”, afirma o escritor. Os países vencedores, no entanto, emergiram em situações diferentes. Uns poderosos, outros falidos.

Divisão

A Inglaterra era a líder do primeiro grupo. A vitória em Waterloo a fez potência dominante.

Já o outro Reino Unido – o de Portugal, Brasil e Algarves – era do time dos falidos. “Depois da ida da Corte para o Brasil, Portugal havia se tornado uma espécie de protetorado britânico”, diz Laurentino.

Para contrabalançar a influência inglesa, d. João VI resolveu fazer uma aliança com outro integrante do time dos falidos nessa divisão histórica: a Áustria.

“O mapa do continente havia sido retalhado de forma drástica durante as guerras napoleônicas, reis e rainhas tinham sido destronados e humilhados pelo imperador francês”, afirma o escritor Laurentino Gomes. Foto: EFE/Arquivo Laurentino Gomes

“O mapa do continente havia sido retalhado de forma drástica durante as guerras napoleônicas, reis e rainhas tinham sido destronados e humilhados pelo imperador francês”, afirma o escritor Laurentino Gomes. Foto: EFE/Arquivo Laurentino Gomes

Aliança, na era absolutista, era sinônimo de casamento. E a monarquia austríaca era uma afamada fábrica de princesas, cuidadosamente preparadas para exercer essa delicada função diplomática.

Foi assim que se acertou o casamento entre d. Pedro e Leopoldina, princesa de tino político e alto nível intelectual que teria papel fundamental na independência do Brasil.

Na Europa havia ainda outra disputa em curso. Ela se dava entre os reinos absolutistas e os países que, inspirados em Napoleão, vinham se tornando monarquias constitucionais.

A aliança entre a Áustria e o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves seria, assim, a junção entre dois absolutismos decadentes. Em vários outros países da Europa, igualmente arrasados pelo furacão Bonaparte, a ebulição liberal se fazia sentir. Era questão de tempo que chegasse a Portugal.

Revolução do Porto

Pois chegou, em agosto de 1820, quando eclodiu a Revolução Liberal do Porto. Os portugueses tinham várias razões para estar desgostosos com a monarquia, mas uma se destacava: mesmo com a derrota de Napoleão, o rei D. João VI preferira ficar no Rio de Janeiro – que assim se tornou, na prática, a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

A Corte estava aqui. A Biblioteca Nacional estava aqui – era a única com essas dimensões ao sul do Equador.

E, talvez o mais importante, as cortes jurídicas estavam aqui. Isso significava, na lógica absolutista, que alguém que abrisse um processo em Portugal teria que enviar toda a papelada burocrática para o Rio de Janeiro.

Decadência

Enquanto isso, Portugal definhava, já que a maior parte de sua riqueza estava, já há muito tempo, no Brasil. “Entre 1807 e 1814, Portugal perdeu meio milhão de habitantes. Um sexto da população pereceu nos campos de batalha ou simplesmente fugiu do país”, diz Laurentino. “O desemprego tomou conta de Lisboa. Famintos, os moradores migraram em bando para o interior do país, em busca do que comer. A capital ficou deserta.”

A independência do Brasil se dá nesse contexto. A Revolução Liberal ganhou adeptos em Portugal, abrindo caminho para a instalação de uma monarquia constitucional naquele país.

Em 1821, d. João VI foi obrigado a abandonar seu amado Rio de Janeiro e voltar a Lisboa, voltar à Europa. Sua ideia mais criativa – o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que nos colocou dentro da Europa – estava seriamente ameaçada.

Sessão das Cortes de Lisboa, em pintura do artista Oscar Pereira da Silva, uma obra que faz parte do acervo do Museu do Ipiranga: época de tensões na Europa. Foto: Acervo Museu Paulista da USP
Sessão das Cortes de Lisboa, em pintura do artista Oscar Pereira da Silva, uma obra que faz parte do acervo do Museu do Ipiranga: época de tensões na Europa. Foto: Acervo Museu Paulista da USP

Opções na mesa

Três alternativas estavam em cima da mesa. Portugal voltaria a ser metrópole, e o Brasil, colônia. O Brasil se separaria. Ou – a solução intermediária – o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves seguiria existindo, mas comandado desde Lisboa.

Nas primeiras conversas, o rumo da prosa parecia se encaminhar para a terceira alternativa. A situação talvez fosse a mais confortável para o Brasil – que, apesar de tudo que d. João VI havia trazido para cá, não estava completamente aparelhado para caminhar sozinho.

Como Laurentino lembra no livro 1822, no entanto, houve inabilidade diplomática das cortes portuguesas. A ideia era que representantes de todas as partes do Reino Unido ajudassem a escrever a nova Constituição, inspirada nos ideais da Revolução do Porto.

Com essa intenção, o Brasil escolheu seus representantes e os enviou a Portugal. Quando eles lá chegaram, no entanto, as principais decisões já haviam sido tomadas.

Ficou claro que o sentimento dos portugueses se inclinava pela alternativa 1, a restauração do tempo em que eram metrópole e exploravam as riquezas da colônia.

Entraram em ação, neste momento, os três personagens centrais da independência do Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva, a princesa Leopoldina e, claro, D. Pedro, que havia ficado no Brasil como príncipe regente. Os portugueses queriam a volta do filho de d. João VI, que hesitou até o último momento. Em janeiro de 1822, foi obrigado a tomar uma decisão.

D. Pedro se pronunciou de forma bastante evasiva: “Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até as cortes e meu augusto pai se decidirem a esse respeito”.

No dia seguinte, no entanto, os jornais “melhoraram” a declaração de D. Pedro: “Como é para o bem de todos, e felicidade geral da nação, estou pronto. Diga ao povo que fico”. A frase “editada” foi a que entrou para a história, sacramentando a data de 9 de janeiro de 1822 como o “Dia do Fico”.

Projeto de país

De representantes de absolutismos decadentes da Europa, os príncipes Pedro e Leopoldina se viram engolfados pelos novos tempos liberais. José Bonifácio de Andrada e Silva – um intelectual nascido em Santos que foi ministro de D. Pedro e que, em seus textos, se tornou o primeiro a desenhar um projeto de país para o Brasil – os aproximou, aos poucos, do novo ideário. Andrada tinha ideias modernas como abolição da escravatura, ensino público e garantia de cidadania para os povos originários. Se suas ideias, apoiadas pela princesa Leopoldina, tivessem prevalecido, talvez o Brasil tivesse nascido como um país moderno.

“O Brasil que surgiu em 1822 era moderno só nas aparências. Nas leis, no funcionamento das instituições, na arquitetura, nas artes, nas festas e nos saraus da corte do Rio de Janeiro, aparentava ser uma terra civilizada, rica, elegante e educada. Como se fosse mesmo uma extensão da Europa nos trópicos”, diz Laurentino. “A realidade nas ruas, lavouras e fazendas das regiões ermas do país era, no entanto, de escravidão, pobreza e analfabetismo, além do tráfico ilegal e clandestino de africanos.”

Passaram-se duzentos anos do tempo em que o Brasil foi Europa. Evoluímos em várias áreas, e realizamos a grande obra de construir uma democracia numa nação extremamente e complexa. Temos, no entanto, um imenso caminho a percorrer para cumprir nosso destino: ser uma nação moderna, diversa, inclusiva – e não apenas parecer ser.

Cronologia:

Fuga: Em 29 de novembro de 1807, a Corte fugiu para o Brasil, após ser acuada pelo bloqueio continental de Napoleão Bonaparte. Estudos históricos indicam que a Corte chegou a enganar a França, escondendo a fuga até o último instante.

Abertura dos portos: Os portos brasileiros foram abertos em 28 de janeiro de 1808, como uma forma de favorecer o comércio internacional, sobretudo com a Inglaterra. Entre 1807 e 1814, Portugal perde meio milhão de habitantes. “Um sexto da população pereceu nos campos de batalha ou simplesmente fugiu do país”, diz Laurentino Gomes.

Reino Unido: Entre 1621 e 1815, o Estado do Brasil na prática funcionava como uma colônia portuguesa. Em 16 de dezembro de 1815 ocorreu a elevação a Reino Unido de Portugal e Algarve.

Retorno: Em 26 de abril de 1821, o rei volta à Europa, após a desocupação do território pelas tropas francesas.

Pressão: Após a Revolução do Porto, três alternativas estavam em cima da mesa. Portugal voltaria a ser metrópole, e o Brasil, colônia. O Brasil se separaria. Ou – a solução intermediária – o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves seguiria existindo, mas comandado desde Lisboa.

Fico: Os portugueses queriam a volta do filho de d. João VI, que hesitou até o último momento. Em 9 de janeiro de 1822, d. Pedro anunciou que ficaria no Brasil. Começa um movimento de distanciamento, que teria seu auge em 14 de julho, com a proibição do desembarque de tropas portuguesas no País.

Independência: Em 7 de setembro de 1822, houve oficialmente a proclamação da Independência.

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