Em apenas quatro horas, o Peru passou de uma frustrada tentativa de golpe à primeira mulher presidente da história do país, cujo maior desafio será conseguir terminar o mandato de Pedro Castillo, que foi destituído e preso. A trégua política é frágil e complica a chegada da chefe de Estado, que não tem apoio ou experiência política. As informações são de Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
Foi exatamente ao meio-dia em Lima que o então presidente Pedro Castillo surpreendeu com um anúncio extremo: o Parlamento seria dissolvido, seria instaurado um toque de recolher e o país seria governado por decreto, até a organização de novas eleições legislativas e a redação de uma nova Constituição.
O motivo da manobra parecia ter como objetivo evitar a sessão parlamentar, prevista para três horas depois, na qual os deputados tentariam, pela terceira vez em apenas um ano e meio de mandato, impor a destituição de Pedro Castillo.
“Mas não é esse o verdadeiro motivo. Não havia votos suficientes para destituí-lo. Pedro Castillo procurava evitar as investigações da Justiça contra si. Foi claramente uma fracassada tentativa de autogolpe, mas não foi um autogolpe porque o presidente é comunista e queria uma Assembleia Constituinte. O autogolpe é por corrupção. Cometeu um erro de principiante”, explica à RFI o cientista político peruano, Carlos Meléndez, da Universidade chilena Diego Portales.
A Promotoria investiga Pedro Castillo em seis casos, a maioria por suposta corrupção em troca de obras públicas. Segundo uma sondagem da consultora Ipsos, 65% dos peruanos acreditam que Castillo esteja envolvido em casos de corrupção. “A única forma de evitar as investigações por corrupção era um autogolpe. Castillo acreditava que os 30% de apoio popular que possui sairia às ruas, mas nada disso aconteceu. Não existe o ‘castillismo’ no Peru”, afirma Meléndez.
O anúncio “de dissolução do Congresso e instalação de “um governo de emergência excepcional” incluía uma “reorganização do sistema de Justiça: o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Junta Nacional de Justiça e o Tribunal Constitucional”, anunciou Pedro Castillo em rede nacional de rádio e TV.
Instituições reagiram
Mas a artimanha durou pouco. Às 12h30, apenas 30 minutos depois, vários ministros começaram a renunciar aos seus cargos por entenderem que “havia uma violação da Constituição”, segundo o ministro das Relações Exteriores, César Landa, “uma vulneração do Estado de Direito”, segundo o ministro da Economia, Kurt Burneo, ou “uma ruptura da ordem constitucional”, segundo embaixador peruano perante a Organização dos Estados Americanos (OEA), Harold Forsyth.
O presidente do Tribunal Constitucional, Francisco Morales Saraiva, foi mais explícito, catalogando a manobra como “golpe de Estado”. “Ninguém deve obediência a um governo usurpador”, apontou.
E o primeiro a não obedecer a dissolução do Parlamento foi o presidente do Legislativo, José Williams, convocando uma sessão de emergência. O julgamento político previsto para às 15 horas foi antecipado para uma sessão de emergência, às 13 horas. E se antes não havia os 87 votos necessários para uma destituição, a tentativa de autogolpe fez com que ela aparecesse.
Às 13h30, as Forças Armadas e a Polícia entraram em cena para rejeitar a manobra de Pedro Castillo e para anunciar apoio ao Congresso. Castillo já estava isolado. Até mesmo a sua vice-presidente, Dina Boluarte, acusou-o de “quebrar a ordem constitucional”, classificando como “golpe de Estado” o anúncio do seu chefe político. A unanimidade estava pela democracia.
Destituição express
Às 13h40, poucos minutos depois de iniciada, a sessão parlamentar destituiu o presidente Pedro Castillo por “incapacidade moral” com 101 votos dos 130 legisladores (o Parlamento no Peru é unicameral).
A rapidez na votação visava também evitar que Pedro Castillo abandonasse o país. Quando o agora ex-presidente rumava para pedir asilo na Embaixada do México em Lima, numa jogada que lembrava o boliviano Evo Morales em novembro de 2019, quando procurou resguardo no aliado mexicano Andrés Manuel López Obrador, Pedro Castillo foi preso, podendo pegar uma pena de até 20 anos.
Às 15h55, menos de quatro horas depois do anúncio de dissolução do Parlamento, a vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu o cargo, tornando-se a primeira mulher presidente na história peruana.”Abre-se uma trégua entre as forças políticas. Os limenhos (habitantes de Lima) estão felizes; os andinos (áreas rurais) estão insatisfeitos. Os andinos querem que todos os políticos saiam do poder. Os limenhos queriam que Castillo saísse”, compara Carlos Meléndez.
No Peru, existem dois vice-presidentes. A advogada de 60 anos era a segunda, mas assumiu o cargo porque o primeiro vice-presidente, Vladimir Cerrón, está proibido de exercer cargos públicos por corrupção ao usar o partido para lavar dinheiro ilícito.
“Houve uma tentativa de golpe de Estado que não teve eco nas instituições da democracia nem nas ruas. Assumo o cargo de presidente, consciente da enorme responsabilidade e a minha primeira decisão é convocar a mais ampla unidade de todos os peruanos”, pediu Dina Boluarte, consciente de que o seu governo é frágil e que o seu maior desafio será terminar o mandato de Pedro Castillo em julho de 2016.
Frágil governabilidade
“O problema de fundo é a falta de representação política no Peru. Os peruanos votam contra alguém, e não a favor de alguém. O vínculo de representação acaba logo depois do ato de votar. No dia seguinte, o eleitor abandona o eleito. O mais provável é que a nova presidente tenha apoio apenas por um tempo”, prevê Meléndez.
“Ninguém acredita que ela termine o mandato. Suspeito que ela também não. Dina Boluarte terá de fazer malabarismos para poder ter um acordo político. O Congresso não mudou. E isso é um problema porque é um Congresso corrupto também”, observa.
O anúncio de dissolução do Parlamento acontece 30 anos depois do autogolpe do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000) em 5 de abril de 1992. Pedro Castillo foi eleito como opositor ao ‘fujimorismo’, mas terminou tentando o mesmo caminho.
“O populista, não interessa se é de direita ou de esquerda, é sempre populista. Parte de uma falsa premissa: a de que a divisão da sociedade é maniqueísta, que as elites são corruptas e que eles, líderes, representam o povo e que podem fazer o que lhes der na telha em nome do povo”, traduz Carlos Meléndez.
Durante o seu curto mandato de um ano e meio, Pedro Castillo governou entre crises políticas, cinco modificações do seu gabinete com mais de 60 mudanças de ministros e três pedidos de destituição.