País prometeu não cumprir mandado de prisão do TPI contra o primeiro-ministro israelense se ele comparecer à cerimônia dos 80 anos da libertação do campo de concentração nazista.Há lugares em solo polonês que têm um profundo significado não só para os poloneses, mas também para os judeus e israelenses. Esses lugares são os campos de concentração e extermínio onde os nazistas alemães assassinaram milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Isso explica, em algum nível, o recente debate acalorado sobre se o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que é procurado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), deveria ter passagem segura no país para participar, , nesta segunda-feira (27), do 80º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz.
O TPI é a corte internacional encarregada de processar indivíduos por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Com sede em Haia, na Holanda, o tribunal não tem polícia própria para impor a prisão e, por isso, depende de que a Justiça dos 124 países signatários valide a decisão.
Em outubro passado, o tribunal emitiu um mandado de prisão contra Netanyahu e seu ex-ministro da defesa Yoav Gallant, acusando-os de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Faixa de Gaza. A Corte acusa os israelenses de usarem a fome como método de guerra.
Israel não compõe o TPI e não reconhece sua jurisdição, mas a Polônia é um membro fundador e, como signatária, estaria legalmente obrigada a executar o mandado caso Netanyahu vá ao país.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, mais de 47 mil pessoas foram mortasem 15 meses de incursão militar de Israel no território palestino, uma resposta aos ataques do Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023, que mataram 1.200 pessoas.
Polônia concordou com salvo-conduto
Citando “circunstâncias absolutamente extraordinárias”, o presidente polonês Andrzej Duda, em 9 de janeiro, pediu ao primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, que garantisse salvo-conduto para Netanyahu, caso ele decidisse participar do evento.
Em uma rara demonstração de unanimidade entre o governo e o presidente, Tusk aprovou uma resolução apoiando a solicitação de Duda no mesmo dia.
No entanto, a resolução não mencionava Netanyahu pelo nome, o que era esperado, já que o primeiro-ministro israelense não planeja comparecer pessoalmente, como informou o jornal israelense The Times of Israel em 9 de janeiro.
Então, se Netanyahu não planejava comparecer, por que o governo polonês aprovou a resolução?
‘Homenagem ao povo judeu’
A resolução afirmava que a garantia de segurança para os representantes israelenses era “parte do tributo ao povo judeu, cujos filhos e filhas foram vítimas do Holocausto perpetrado pelo Terceiro Reich”.
O próprio Tusk disse que o caso era “muito delicado”. “Por um lado, temos o veredicto de um tribunal internacional, mas, por outro, está absolutamente claro para mim que qualquer representante das autoridades israelenses deve ter todo o direito e a sensação de segurança ao visitar o campo de Auschwitz, especialmente no aniversário [de sua libertação]”, disse o primeiro-ministro.
Reações críticas na Polônia
A decisão gerou protestos na Polônia. Um dos primeiros críticos da postura do governo foi o polonês ex-presidente do TPI, Piotr Hofmanski.
Hofmanski destacou a obrigação incondicional da Polônia, segundo a lei internacional, de executar o mandado. Mas ele enfatizou que as autoridades polonesas não infringiram a lei até o momento e só o fariam se Netanyahu entrasse em solo polonês sem ser preso.
A resolução que se compromete a não prendê-lo também foi recebida com ampla oposição em todo o espectro político polonês. Jornalistas, especialistas, comentaristas políticos, autoridades judiciais e a oposição — da extrema esquerda à ultradireita — condenaram a decisão, embora por motivos diferentes.
Reflexo nas pesquisas
Uma pesquisa de opinião encomendada pelo meio de comunicação polonês Wirtualna Polska e conduzida pela United Surveys mostrou que quase 60% dos entrevistados acham que a Polônia deveria prender o primeiro-ministro israelense se ele comparecesse à cerimônia em Auschwitz. Apenas 24,2% são a favor de garantir a Netanyahu um salvo-conduto, e 16,6% se dizem indecisos.
Ativistas pró-palestina organizaram um protesto em Varsóvia, durante o qual centenas de pessoas gritaram “Prendam Netanyahu!” e “O governo polonês tem sangue em suas mãos”.
Um grupo de ONGs, incluindo a Iniciativa Leste (uma organização que luta pela justiça social e contra as mudanças climáticas), a Action for Democracy e a All-Poland Women’s Strike, também escreveu uma carta aberta pedindo a Tusk que retire a resolução.
O Conselho Supremo da Ordem dos Advogados da Polônia apelou ao presidente e ao governo para que aderissem incondicionalmente ao Estado de direito e o implementassem em palavras e ações.
Em uma carta aberta, o conselho enfatizou que as decisões de tribunais e cortes internacionais não devem ser vistas como uma questão de escolha e que a não execução do mandado do TPI minaria “a confiança dos cidadãos no Estado de direito na Polônia”. Eles concluíram dizendo que a decisão é perigosa, mesmo em casos de segurança nacional.
O papel dos EUA
A referência à segurança nacional do país pode ter sido uma resposta aos relatos da mídia sobre outra suposta motivação por trás da resolução.
A prisão do chefe do governo israelense no local mais notório e simbólico do Holocausto, sem dúvida, provocaria um clamor internacional e desencadearia uma resposta do recém-empossado governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, um forte aliado da Polônia e de Israel.
A mídia polonesa citou fontes anônimas próximas ao governo que afirmaram que a resolução tinha como objetivo principal evitar o risco de uma crise nas relações entre os EUA e a Polônia logo no início da segunda gestão Trump.
Além disso, em 9 de janeiro, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou um projeto de lei que ameaça impor sanções contra qualquer pessoa que ajude o TPI a processar cidadãos americanos ou aliados dos EUA, o que inclui Israel.
O presidente preparou uma armadilha para Donald Tusk?
Quer tenha sido sua intenção ou não, o presidente Duda, que deve deixar o cargo no final de seu segundo mandato, em agosto, criou uma situação difícil para o governo de Tusk quatro meses antes da eleição presidencial do país.
Essa eleição pode determinar se o primeiro-ministro polonês terá um aliado no palácio presidencial e, portanto, um caminho potencialmente mais fácil para implementar suas promessas de campanha ou se enfrentará a perspectiva de trabalhar com um segundo presidente ligado ao partido de oposição Lei e Justiça (PiS), como é o caso de Duda.
A resolução aprovada por Tusk e seu governo pode não apenas custar votos ao seu aliado e candidato presidencial preferido, Rafal Trzaskowski, mas também pode ter prejudicado a credibilidade da Polônia no cenário global, com exceção de suas relações com a Casa Branca de Trump.