Explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) se a decisão que proibiu o chamado Orçamento Secreto está sendo cumprida será uma das primeiras tarefas do Congresso Nacional ao retornar do recesso. Existe uma desconfiança segundo Flávia Maia, do jornal Valor, do Judiciário e de organizações não-governamentais de que a prática continua camuflada por outras formas de repasses.
O ministro Flávio Dino, atual relator da ação que discutiu o orçamento secreto, afirma que não houve a “comprovação cabal” do cumprimento da decisão da Corte, que proibiu o sistema em 2022.
Duas frentes estão abertas no Supremo para tentar inibir as práticas de orçamento secreto. A primeira é uma conciliação agendada para quinta-feira (1º) pelo ministro Flávio Dino no caso das emendas do relator (ADPF 854). A segunda é uma nova ação em curso (ADI 7688) proposta pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) que questiona as chamadas emendas Pix – modalidade de emenda parlamentar ao Orçamento para destinar verbas públicas diretamente às prefeituras ou ao governo local, sem a necessidade de apresentar projeto ou apontar em qual área a verba será aplicada.
O tema gera desconforto entre os Poderes. Há preocupação nos bastidores políticos de que possíveis barreiras às emendas impostas pela Corte possam prejudicar a já sensível governabilidade do governo Lula.
Para minimizar o atrito, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), tem adotado o discurso de que a distribuição de emendas pode ser remodelada.
Na ação judicial mais recente, sobre as emendas Pix, o relator da matéria é o ministro Gilmar Mendes. O ministro votou a favor da manutenção das emendas do relator em 2022, mas ponderou pela definição de critérios mais claros de distribuição e maior transparência na divisão dos recursos e na execução.
Dados apresentados ao Supremo mostram que a União já transferiu mais de R$ 15 bilhões em emendas individuais por transferências especiais desde 2020, e empenhou mais de R$ 20 bilhões ao todo, sendo observado o crescimento progressivo do gasto com as emendas Pix.
Para entender se há descumprimento da decisão do Supremo por outros Poderes, Dino quer ouvir, no processo de conciliação sobre as emendas de relator, a opinião do Procurador-Geral da República; do presidente do Tribunal de Contas da União (TCU); do Advogado-Geral da União; do chefe da Advocacia do Senado; do chefe da [Advocacia da Câmara dos Deputados e do advogado do partido autor da ação (Psol). Ainda não está claro se a conciliação deve se estender para mais de um encontro. Isso vai depender do que for discutido na primeira reunião, que ocorrerá a portas fechadas.
O alerta de que a decisão do Supremo não está sendo cumprida veio de organizações não-governamentais como Transparência Internacional, Transparência Brasil e Contas Abertas – no entanto, elas não participarão da audiência de conciliação.
As entidades apontaram três eixos de descumprimento da decisão do STF. No primeiro, questionam os valores remanescentes das emendas de relator, identificadas com o código RP 9 e base do orçamento secreto.
O Congresso e o Executivo têm encontrado caminhos para seguir as mesmas práticas”
— Guilherme France
Neste caso, os parlamentares acabaram destinando a maior parte deste remanescente para as emendas de comissão. Assim, as verbas ficaram em nome da comissão como um todo, não de parlamentares específicos, tornando o controle mais difícil.
Além disso, os parlamentares ampliaram em 2023 outra rubrica, que identifica os recursos próprios dos ministérios, sem qualquer forma de transparência sobre quem indicou a despesa.
“Os recursos passaram a ser pagos via ministérios, só que a determinação de como e onde esses recursos seriam destinados acabou sendo feito pelos parlamentares”, explica Guilherme France, gerente de pesquisa e advocacy da Transparência Internacional no Brasil.
“O Congresso Nacional e o Poder Executivo têm encontrado caminhos para seguir as mesmas práticas que impedem a identificação do efetivo requerente do recurso por práticas inovadoras como a transferência por ministérios e agora com os recursos via comissão. São mecanismos inventados pelo Congresso para descumprir a decisão original do Supremo”, complementa France.
Outro eixo apresentado pelas associações foi o descumprimento da determinação de publicar informações relativas à autoria das emendas RP 9 e a sua aplicação. E o terceiro eixo foram as emendas Pix, criadas com o argumento de facilitar a função administrativa, mas pouco transparentes e de difícil controle, pois realizados os repasses a competência de fiscalização não é mais federal, mas sim dos tribunais de contas estaduais e municipais, que não são obrigados a monitorar as transferências.
No entanto, neste caso, Dino entendeu que as emendas Pix foram instituídas pela emenda constitucional 105/2019, portanto, um instrumento diferente do dispositivo mencionado na ação na qual é relator. O ministro entendeu necessária outra ação no STF para discutir o tema e se absteve. A decisão de Dino contribuiu para a Abraji ajuizar nova ação na Corte.
“Não é porque mudou o governo que a gente vai parar de olhar para isso, não faz sentido. Foi uma surpresa quando o ministro Flávio Dino pediu os pronunciamentos. Espero que se faça impor realmente a decisão do STF de dar transparência à destinação desses recursos, porque não é possível que tenha uma decisão do Supremo e o governo e o Congresso simplesmente deem um jeito de burlar pela não-transparência”, analisa Juliana Sakai, diretora-executiva da Transparência Brasil.