Os atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023 completam um ano nesta segunda-feira (8) após terem mexido com a estrutura dos Três Poderes e deixado um rastro de destruição nos principais prédios públicos de Brasília. Com executores presos e outros aguardando julgamento, as investigações ainda não levaram à punição dos mandantes nem de nenhuma cúpula que tenha planejado a ação.
O 8 de janeiro marcou o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Alguns apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não aceitaram segundo Daniel Weterman e Julia Affonso, do Estadão, o resultado da eleição presidencial e pediram a derrubada do governo com intervenção militar. Lula estava em Araraquara, a 270 quilômetros da capital paulista, no momento das invasões e decretou intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal. O presidente chegou a Brasília à noite para visitar o Palácio do Planalto após a destruição.
Em um ano, 2.170 pessoas foram presas, a maioria por ter invadido e atacado diretamente os prédios públicos, de acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Alexandre de Moraes é o relator do inquérito responsável por julgar os extremistas envolvidos nos ataques. Do total, 66 extremistas permanecem presos. A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou 1.413 pessoas pelos atos antidemocráticos, das quais 30 foram condenadas por crimes como golpe de Estado e outras 29 serão julgadas até fevereiro.
A lista de presos e condenados pelo 8 de janeiro, no entanto, não inclui mentores nem políticos. O ex-presidente Jair Bolsonaro foi o primeiro na lista de indiciados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso. Na Justiça, ele é um dos investigados, mas não enfrentou uma denúncia. Conforme o Estadão revelou, golpistas reproduziram frases literais de Bolsonaro ao invadirem a sede dos Três Poderes, seguindo um roteiro de ideias disseminadas por ele e que cresceram entre os apoiadores após a eleição de outubro de 2022, quando bolsonaristas começaram a montar acampamentos em frente a quartéis do Exército.
Em 2024, a PGR, agora sob a gestão do novo procurador-geral da República, Paulo Gonet, será responsável por conduzir o futuro das investigações envolvendo Bolsonaro e outras autoridades. Gonet foi alçado ao cargo por Lula, em substituição ao ex-procurador-geral Augusto Aras, indicado pelo ex-presidente. “O Ministério Público Federal reitera o compromisso de devotar todo o empenho para apurar responsabilidades pelo que se deu em 8 de janeiro de 2023, promover as medidas punitivas cabíveis e prevenir a repetição de condutas análogas”, afirmou Gonet em nota ao Estadão.
O ataque golpista provocou um prejuízo de R$ 12 milhões aos Três Poderes no dia 8 de janeiro, de acordo com o Supremo Tribunal Federal.
Identificar e punir autores intelectuais é tarefa ‘complexa’
Punir os autores intelectuais do 8 de janeiro é a etapa mais complexa da investigação na avaliação do constitucionalista Oscar Vilhena, professor e diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Vilhena pontua que é preciso separar o que é uma “orquestração” real daquilo que é “uma conversa de botequim” sem consequências. O professor destaca que, embora tenha havido um “grau de espontaneidade” em 8 de janeiro, pois diversos apoiadores relataram ter ido à Esplanada por vontade própria, “é evidente que houve uma orquestração”.
“O mais difícil nesse delito é apurar quem foram os atores intelectuais, aqueles que planejaram”, diz. “A construção do nexo de causalidade entre um ato de autoria intelectual e o resultado, que é a invasão, é o mais difícil de ser apurado num processo como esse.”
Bolsonaro foi incluído no inquérito do 8 de janeiro no Supremo porque, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF), praticou“incitação ao crime” quando publicou um vídeo no dia 10 de janeiro colocando em dúvida a regularidade da eleição da qual saiu derrotado. O vídeo foi apagado em seguida. Ele disse ao Supremo que publicou “acidentalmente”, enquanto estava sob efeito de medicamentos. Os golpistas julgados pelo Supremo admitiram alinhamento ideológico ao ex-presidente, mas negaram que Bolsonaro tenha incitado a invasão.
O procurador Carlos Frederico Santos, que esteve à frente das investigações do 8 de janeiro na PGR até o ano passado, decidiu não incluir o ex-presidente na lista de denunciados. Em novembro do ano passado, Santos disse ao Estadão que as informações apresentadas na delação do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que implicavam o ex-presidente, eram “narrativas”.
Mauro Cid foi preso em maio em uma operação que investigou a inserção de dados falsos no cartão de vacina do ex-presidente. Em setembro, o coronel foi solto, com tornozeleira eletrônica. Ele fez uma delação premiada e disse à Polícia Federal que Bolsonaro se reuniu com a cúpula das Forças Armadas para discutir a possibilidade de uma intervenção militar.
Bolsonaro defendeu extremistas condenados pelo 8 de janeiro
Durante um evento político em Santa Catarina, em outubro, Jair Bolsonaro saiu em defesa dos extremistas condenados, logo após as primeiras condenações. “Esperamos que isso seja desfeito brevemente e que essas pessoas fiquem livres. E que as que foram condenadas a 17 anos de cadeia, que fiquem livres dessa pena também”, afirmou. Na CPMI do 8 de Janeiro no Congresso, o ex-presidente foi apontado como mentor dos ataques.
Militares mais próximos de Bolsonaro também saíram ilesos de punições no primeiro ano. Não se tem notícia, por exemplo, de uma investigação aberta contra o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice de Bolsonaro na eleição de 2022, também citado na delação de Mauro Cid. No dia 18 de novembro de 2022, Braga Netto apareceu com bolsonaristas que estavam acampados no QG do Exército e que foram até o Palácio da Alvorada. “Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”, disse.
Em 2024, o Judiciário e o Ministério Público prometem avançar nas investigações envolvendo financiadores e mentores da tentativa de golpe, incluindo autoridades públicas. Em entrevista ao Estadão, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que “todos os responsáveis” serão processados e punidos, incluindo civis e militares. “A democracia é intocável e o STF não permitirá qualquer tipo de impunidade”, disse.
Outros políticos de Brasília chegaram a ser processados, mas tiveram prisões e afastamentos revertidos. Um deles é o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). Ibaneis foi afastado do cargo após o 8 de janeiro pelo ministro Alexandre de Moraes por ter, de acordo com a decisão, se omitido na proteção à Praça dos Três Poderes. O governo do Distrito Federal comanda a Polícia Militar e é responsável pela segurança do local.
No dia das invasões, o Estadão mostrou que policiais tomavam água de coco em frente à Catedral Metropolitana de Brasília no momento em que golpistas invadiam o Congresso Nacional. Cinco integrantes da cúpula da Polícia Militar foram presos em agosto. Ibaneis voltou à função em março, também por decisão de Moraes, e não houve novas punições. Ibaneis se recusou a estar no ato de um ano do 8 de janeiro convocado pelo presidente Lula.
O então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal na época dos ataques, Anderson Torres, ficou quatro meses preso e foi liberado em maio, usando tornozeleira eletrônica. Ele viajou para os Estados Unidos às vésperas da invasão mesmo sabendo das convocações para o ato, de acordo com o Ministério Público Federal. A Polícia Federal encontrou uma minuta na casa de Anderson Torres. O documento, que ficou conhecido como “minuta do golpe”, serviria para Bolsonaro decretar estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reverter o resultado da eleição.
O ex-ministro disse que a minuta era fantasiosa e que não jogou o papel no lixo por “mero descuido”. Outra minuta, prevendo intervenção militar, foi encontrada no celular de Mauro Cid.
Operação da PF chegou a primo dos filhos de Bolsonaro em 2023
Doze dias após a invasão aos prédios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, em Brasília, a Polícia Federal foi às ruas para prender golpistas na primeira de 22 operações Lesa Pátria deflagradas entre janeiro e novembro do ano passado — uma média de 2 etapas por mês. A PF buscou cumprir 112 mandados de prisão e 316 de busca e apreensão em 19 Estados e no DF.
Um dos alvos de busca foi Leonardo Rodrigues de Jesus, o Léo Índio, primo dos filhos de Bolsonaro. Ele foi um dos auxiliares do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) na estratégia de redes sociais da campanha eleitoral de Jair em 2018.
Léo Índio participou dos atos golpistas de 8 de janeiro e publicou imagens em uma rede social em cima do Congresso Nacional e próximo ao Supremo. Em uma das postagens, o primo dos filhos de Bolsonaro aparece com os olhos vermelhos, segundo ele, devido ao gás lacrimogêneo usado pela Polícia Militar.
Após a deflagração da primeira operação, em 20 de janeiro, a PF informou que a Lesa Pátria seria “permanente” e anunciou que havia aberto um canal de denúncias para que a população ajudasse na “identificação de pessoas que participaram, financiaram ou fomentaram” os atos golpistas.
Os agentes levaram para a cadeia, por exemplo, um homem que quebrou o relógio de Dom João VI no Palácio do Planalto, a aposentada Maria de Fátima Mendonça Jacinto Souza, conhecida como “Fátima de Tubarão”, e um golpista que se sentou na cadeira de ministro do STF. “Dona Fátima” foi uma das 88 golpistas reconhecidas pelo Estadão após a invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de Janeiro do ano passado.
A Lesa Pátria também prendeu quatro oficiais da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal sob suspeita de omissão diante da ação dos radicais e um major da corporação, que teria ensinado táticas de guerrilha para os bolsonaristas acampados em frente ao QG do Exército, em Brasília.
As ações da Polícia fizeram buscas ainda contra o deputado estadual de Goiás Amauri Ribeiro (União Brasil). Em sessão da Casa Legislativa em junho, o parlamentar afirmou ter “ajudado a bancar” o acampamento golpista montado em frente ao quartel do Exército em Brasília. Ribeiro responde a denúncias de racismo, homofobia e ameaça, já admitiu ter espancado a filha e prometeu uma “guerra civil” caso Bolsonaro perdesse as eleições.