Os depoimentos à Polícia Federal são as primeiras diligências do inquérito que opõe o ex-ministro Sergio Moro (Justiça) ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Em declarações públicas e em depoimento, o ex-juiz da Lava Jato acusou o mandatário de tentar trocar dirigentes das PF para alocar gente de sua confiança nos cargos e, com isso, ter acesso a informações e relatórios de investigações.
Também listou como um dos motivos a suposta preocupação de Bolsonaro com inquéritos em curso no Supremo e cujo potencial é o de atingir seus filhos e alguns aliados.
Um inquérito foi aberto com base nas afirmações de Moro para apurar se o presidente cometeu crime ou, em outra hipótese, se o ex-ministro fez uma denúncia caluniosa. Desde a segunda (11), diversos citados nas declarações do ex-juiz estão sendo ouvidos em Brasília e Curitiba.
Moro sustenta que as pressões de Bolsonaro para interferir na PF vêm do ano passado, quando abriu uma crise para emplacar um nome de sua confiança na Superintendência do Rio de Janeiro. Na ocasião, quase caiu o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo.
As pressões teriam continuado este ano, até 24 de abril, quando Valeixo foi demitido e Moro, em seguida, rompeu com o presidente. O ex-ministro sustenta que Bolsonaro “lhe relatou verbalmente no Palácio do Planalto que precisava de pessoas de sua confiança para que pudesse interagir, telefonar e obter relatórios de inteligência”.
Bolsonaro nega tentativa de ingerência. Diz que, como presidente, é sua a prerrogativa de nomear o diretor-geral da PF e até o ministro da Justiça.
Após apuração da PF, a Procuradoria-Geral da República avalia se haverá acusação contra Bolsonaro. Caso isso ocorra, esse pedido vai para a Câmara, que precisa autorizar sua continuidade, com voto de dois terços.
Em caso de autorização, a denúncia vai ao STF -que, se aceitar a abertura de ação penal, leva ao afastamento automático do presidente por 180 dias, até uma solução sobre a condenação ou não do investigado.
A seguir, as diferentes versões em depoimentos e um perguntas e respostas para entender o caso.
Maurício Valeixo, ex-diretor geral da Polícia Federal
Motivos de sua exoneração – O ex-ministro Sergio Moro atribui a exoneração de Valeixo a uma suposta tentativa do presidente de ter linha direta com o chefe da PF e interferir politicamente na corporação.
Em depoimento, Valeixo disse à PF que, em duas conversas com Bolsonaro, o presidente lhe disse que gostaria de ter no cargo alguém com quem tivesse mais “afinidade”.
Ingerência – Moro declarou que Bolsonaro queria a troca no comando da PF para ter acesso a relatórios de inteligência. Sugeriu que ele quisesse obter dados e controlar investigações, pois estaria preocupado com inquéritos no Supremo que têm como alvos potenciais seus filhos e aliados políticos.
Valeixo declarou que, quando há uma indicação com interesse sobre uma investigação específica, está caracterizada uma interferência política na PF, mas que isso não ocorreu em nenhum momento de sua gestão.
Acrescentou que Bolsonaro nunca tratou diretamente com ele sobre a troca de superintendentes da PF nem nunca lhe pediu relatórios de inteligência ou informações sobre investigações ou inquéritos policiais.
Troca de superintendentes – Um dos pontos cruciais da investigação é se Bolsonaro pressionava pela troca de comando na Superintendência da PF no Rio com o intuito de controlar investigações de interesse de sua família.
Valeixo disse que foi consultado por Moro em junho de 2019 sobre a troca do então superintendente no Rio, Ricardo Saadi, e que o nome do substituto, Alexandre Saraiva, então chefe da PF não Amazonas, havia sido ventilado por Bolsonaro. Valeixo declarou não saber por quais razões o presidente teria feito aquela indicação.
Exoneração a pedido – Há suspeitas de fraude no decreto de exoneração de Valeixo, pois ele foi publicado em 24 de abril com a assinatura de Moro e registrou a dispensa como “a pedido” do diretor-geral. Os dois, contudo, não teriam dado aval para isso.
No depoimento, Valeixo disse ter falado na véspera com Bolsonaro, por telefone, sendo avisado que seria exonerado. O presidente, segundo ele, perguntou se poderia registrá-la como “a pedido”, tendo o então diretor-geral dito que sim. Valeixo, porém, disse que o pedido de demissão nunca foi formalizado por ele.
Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)
Relações com o clã Bolsonaro – Moro afirmou que Bolsonaro queria substituir o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, por Ramagem, amigo da família do presidente, e que isso poderia configurar desvio de finalidade na nomeação. Justificou que a troca era sem causa e viabilizaria ao presidente interagir diretamente com os delegados nomeados para colher relatórios de inteligência.
Ramagem negou ter amizade com os filhos de Bolsonaro, mas disse que goza de “consideração, respeito e apreço da família” do presidente e da confiança dele. Alegou que, mesmo que tivesse intimidade pessoal com o clã, isso não seria motivo para desprezar seu currículo de policial.
Escalado pela PF, Ramagem comandou a segurança de Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018.
Nomeação para a Diretoria-Geral da PF – Ramagem foi nomeado por Bolsonaro para assumir a PF, mas o Supremo barrou o ato por suspeita de desvio de finalidade. O presidente, então, decidiu alçar ao posto um delegado ligado a Ramagem, também egresso da Abin, Alexandre Rolando de Souza.
No depoimento, Ramagem admitiu ter sido consultado sobre as qualificações de Rolando tanto por Bolsonaro quanto pelo ministro da Justiça, André Mendonça.
Ingerência na PF – Moro diz que a possível troca de comando na PF poderia dar margem a interferência nas investigações. Segundo Ramagem, o presidente “nunca chegou a conversar, sob a forma de intromissão”, sobre investigações específicas da Polícia Federal que pudessem, de alguma forma, atingir pessoas a ele ligadas.
Ricardo Saadi, ex-superintendente da PF no Rio de Janeiro
Motivos de sua exoneração – A exoneração de Saadi da Superintendência da PF no Rio foi apontada por Moro como um dos principais movimentos de Bolsonaro para interferir na corporação.
Em depoimento, Saadi afirmou que a sua saída, em agosto 2019, não foi justificada à época pelo então diretor-geral, Maurício Valeixo. Saadi disse que Valeixo lhe telefonou dizendo que iria adiantar os “planos de troca” no comando da PF no Rio, “não revelando eventuais razões para tanto”.
Interferência política – Bolsonaro é suspeito de tentar obter dados de apurações em curso no Rio para, supostamente, proteger familiares e aliados.
Saadi contou que “nem o presidente da República Jair Bolsonaro, nem o ex-ministro da Justiça Sergio Moro” lhe solicitaram direta ou indiretamente relatórios de inteligência”. Ele também negou ter recebido solicitações de informações ou de arquivamento de inquéritos.
Produtividade – Bolsonaro atribuiu sua intenção de trocar Saadi, no ano passado, a questões de produtividade no comando da superintendência.
Ao depor nesta segunda (11), o delegado negou problemas de desempenho. Disse que, ao assumir, a PF no Rio era uma das piores performances, passando, em sua gestão, a figurar entre uma das melhores. Ele disse que sua saída já vinha sendo negociada com a Diretoria-Geral e estava relacionada a questões familiares.
Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo
Reunião ministerial – Moro afirmou que, na reunião ministerial de 22 de abril, o presidente cobrou “a substituição do SR/RJ [superintendente no Rio], do diretor-geral e relatórios de inteligência e informação da Polícia Federal”.
Teria dito também, na versão do ex-ministro, que iria interferir em todos os ministérios e, quanto à Justiça, se não pudesse trocar o superintendente do Rio, “trocaria o diretor-geral e o próprio ministro”. Bolsonaro, no entanto, declarou nesta terça que não existiram no encontro, gravado em vídeo, as palavras Polícia Federal e nem superintendência.
A versão de Ramos contrasta com a de Bolsonaro. Em depoimento, ele disse que o presidente “se manifestou de forma contundente sobre a qualidade dos relatórios de inteligência produzidos pela Abin [Agência Brasileira de Inteligência], Forças Armadas, Polícia Federal, entre outros”.
Segundo ele, também acrescentou que, para melhorar a qualidade dos relatórios, na condição de presidente da República, iria interferir em todos os ministérios para obter melhores resultados de cada ministro.
Vídeo da reunião – Segundo pessoas que tiveram acesso ao vídeo da reunião, Bolsonaro vinculou na ocasião a mudança na Superintendência da PF do Rio de Janeiro a uma proteção de sua família.
Ramos disse que entendeu que o presidente falava de sua segurança pessoal ao citar a troca de ministro. Ele disse que a referência, neste caso, estaria sendo feita a Heleno, que chefia o órgão responsável pela segurança do presidente, e não à PF, vinculada à pasta de Moro.
Solução intermediária – Moro disse que, um dia após a reunião ministerial, se reuniu com Ramos e os ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Braga Netto (Casa Civil), relatando as pressões do presidente, a possibilidade de sair do governo e, nessa hipótese, “falar a verdade” publicamente. Ramos teria se comprometido a conversar com Bolsonaro para propor uma solução intermediária de troca na PF, com a nomeação de um delegado da confiança do então ministro da Justiça.
Em depoimento, o titular da Secretaria de Governo confirmou que o ex-ministro da Justiça o procurou após estar com Bolsonaro. Ele afirmou que chegou a tentar achar uma solução para o impasse sobre a mudança na Diretoria-Geral da PF e que nunca levou a contraproposta feita por Moro ao presidente.
General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI)
Reunião ministerial – Moro disse que, na reunião ministerial de 22 de abril, o presidente cobrou “a substituição do SR/RJ [superintendente no Rio], do diretor-geral e relatórios de inteligência e informação da Polícia Federal”.
Teria dito também, na versão do ex-ministro, que iria interferir em todos os ministérios e, quanto à Justiça, se não pudesse trocar o superintendente do Rio, “trocaria o diretor-geral e o próprio ministro”. Bolsonaro, no entanto, declarou nesta terça que não existiram no encontro, gravado em vídeo, as palavras Polícia Federal e nem superintendência.
Sobre esse ponto, Heleno deu a mesma versão de Ramos. Disse que Bolsonaro, na reunião, cobrou “de forma generalizada” todos os ministros da área de inteligência, “tendo também reclamado da escassez de informações de inteligência que lhe eram repassadas para subsidiar suas decisões, fazendo decisões específicas sobre sua segurança pessoal, sobre a Abin, sobre a PF e sobre o Ministério da Defesa.”
Acesso a relatórios – Moro disse em depoimento que, na reunião ministerial, após cobrar acesso a relatórios de inteligência da PF, Bolsonaro ouviu de Augusto Heleno que o presidente não podia receber aquele tipo de documento.
Ao depor, Heleno disse que não se recorda se a fala a ele atribuída realmente aconteceu, razão pelas qual não pode dizer a que tipo de relatório se refere a frase.
Solução intermediária – Moro disse que, um dia após a reunião ministerial, se reuniu com Ramos, Heleno e Braga Netto (Casa Civil), relatando as pressões do presidente, a possibilidade de sair do governo e, nessa hipótese, “falar a verdade” publicamente. Heleno teria se comprometido a conversar com Bolsonaro para demovê-lo da demissão de Valeixo.
Heleno confirma a conversa com Moro. Diz que aceitou falar com o presidente sobre a questão de Moro, mas que já sabia da determinação de Bolsonaro de demitir o presidente.
Braga Netto, ministro da Casa Civil
Reunião ministerial – Moro disse que Bolsonaro lhe disse precisar de pessoas de sua confiança em cargos de comando da PF para que pudesse interagir, telefonar e obter relatórios de inteligência.
Para corroborar essa informação, afirmou que, na reunião ministerial de 22 de abril, o presidente cobrou “a substituição do SR/RJ [superintendente no Rio], do diretor-geral e relatórios de inteligência e informação da Polícia Federal”.
Teria dito também, na versão do ex-ministro, que iria interferir em todos os ministérios e, quanto à Justiça, se não pudesse trocar o superintendente do Rio, “trocaria o diretor-geral e o próprio ministro”. Bolsonaro, no entanto, declarou nesta terça que não existiram no encontro, gravado em vídeo, as palavras Polícia Federal e nem superintendência.
Braga Netto corroborou a versão de Bolsonaro ao depor. Afirmou que, ao mencionar a troca da “segurança no Rio de Janeiro”, no seu entender, o presidente tratava de sua segurança pessoal naquele estado, a cargo do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), e não da PF.
Solução intermediária – Moro disse que, um dia após a reunião ministerial, se reuniu com Ramos, Heleno e Braga Netto, relatando as pressões do presidente, a possibilidade de sair do governo e, nessa hipótese, “falar a verdade” publicamente. Braga Netto disse que, para acalmar Moro, ele e os colegas disseram que iriam conversar com Bolsonaro.
Segundo o ministro da Casa Civil, “não houve o compromisso de demover” Bolsonaro da intenção de mexer no comando da polícia. Braga Netto disse que não chegou a falar com o presidente e que não teve uma iniciativa de buscar uma “solução intermediária” para o impasse .
Investigações Incômodas – Braga Netto foi questionado sobre eventuais investigações da PF que poderiam estar incomodando Bolsonaro e, com isso, o levando a pressionar pela troca em postos-chave da corporação.
O chefe da Casa Civil disse se recordar apenas que ele se queixava de não terem sido esclarecidas as circunstâncias do depoimento de um porteiro de seu condomínio, no Rio de Janeiro, envolvendo seu nome no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O porteiro admitiu depois que errou ao falar de Bolsonaro.
O ministro disse ainda que se recorda que Bolsonaro reclamou dos dados recebidos pelo Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência). Braga Netto falou que os dados, compilados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), eram insuficientes.
Perguntas e respostas
Qual a origem e o objetivo da investigação?
O inquérito foi aberto horas depois de Sergio Moro pedir demissão do Ministério da Justiça com acusações ao presidente Jair Bolsonaro. O objetivo da apuração é verificar se as afirmações do ex-ministro são verdadeiras ou se ele mentiu sobre o comportamento do chefe do Executivo.
Bolsonaro poderá ser denunciado pela PGR e, se o Congresso aprovar o prosseguimento das investigações, será afastado do cargo automaticamente por 180 dias.
Quais os possíveis crimes investigados?
No pedido de abertura de inquérito, o procurador-geral da República, Augusto Aras, citou oito crimes que podem ter sido cometidos: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Nada impede, no entanto, que a investigação encontre outros crimes.
Moro também é investigado? Por quais supostos crimes?
A PGR não afirma, no pedido para apurar o caso, os crimes que podem ser imputados a cada um. Interlocutores de Aras, porém, afirmam que os delitos possivelmente cometidos por Moro são denunciação caluniosa, crime contra a honra e prevaricação.
O que Moro disse em depoimento à Polícia Federal?
O ex-ministro reafirmou as acusações feitas ao pedir demissão do Executivo e detalhou sua relação com Bolsonaro. Sobre a intromissão no trabalho da Polícia Federal, Moro revelou que, por mensagem, o presidente cobrou a substituição na Superintendência da PF no Rio de Janeiro.
“Moro você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro pelo WhatsApp, segundo transcrição do depoimento do ex-ministro à PF. Além disso, ressaltou que o presidente teria reclamado e demonstrado a intenção de trocar a chefia da corporação em Pernambuco.
O que Moro apresentou como possíveis provas?
O ex-juiz da Lava Jato apresentou conversas trocadas por WhatsApp e relatou que Bolsonaro chegou a ameaçá-lo em uma reunião ministerial, essa gravada pelo governo.
Qual o interesse de Bolsonaro na Superintedência da Polícia Federal no Rio de Janeiro?
O presidente até agora não explicou. Ele nega interferência, nas tentou forçar a substituição do chefe do órgão no estado quatro vezes em menos de um ano e meio. Segundo o ex-juiz Sergio Moro, o presidente fez pressões pela mudança em agosto de 2019 e em janeiro, março e abril deste ano.
A preocupação com investigações, desconhecimento sobre processos, síndrome de perseguição, inimigos políticos e fake news são alguns dos principais pontos elencados por pessoas ouvidas pela Folha de S.Paulo para tentar desvendar o que há no Rio de interesse a Bolsonaro.
Quem irá definir se os relatos de Moro configuram uma ingerência passível de denúncia ou apenas o exercício de prerrogativas presidenciais?
Ao finalizar as apurações, a PF fará um relatório em que concluirá que ambos são inocentes ou, se for o contrário, indiciará os dois ou apenas um deles. Esse relatório policial será encaminhado à PGR, que não fica vinculada à conclusão da corporação. Ou seja, caberá a Aras analisar as provas e decidir se oferece ou não a denúncia.
Há prazo para a conclusão das investigações?
O Código de Processo Penal estabelece que inquéritos têm de ser concluídos em 30 dias ou em 10 dias se envolver réu preso. Esse prazo, no entanto, nunca é respeitado, inclusive nas investigações que correm perante o STF.
O despacho do ministro Celso de Mello obrigando a PF a ouvir Moro em até cinco dias, e não em 60 dias, como havia determinado inicialmente, é um indicativo de que o magistrado quer acelerar as apurações. Não dá para afirmar, porém, até quando elas se estenderão.
Quais podem ser as consequências a Bolsonaro nessa investigação?
O presidente pode ser denunciado pela PGR e, se a acusação for aceita por dois terços da Câmara dos Deputados, ele será afastado automaticamente do cargo por 180 dias, até uma solução sobre a condenação ou não do investigado. Caso o Legislativo barre o prosseguimento das investigações, o processo voltará a correr após ele deixar o mandato.