Desde que Javier Milei chocou a Argentina com sua vitória inesperada nas eleições primárias de agosto, analistas e jornais ao redor do mundo passaram a salientar os pontos em comum entre a trajetória do economista que disputa o segundo turno das eleições presidenciais neste domingo (19) e a de outros dois políticos que também tiveram uma ascensão surpreendente: os ex-presidentes Donald Trump, dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, do Brasil.
As comparações com Bolsonaro e Trump, dois líderes de quem Milei se diz admirador, já eram feitas desde 2021, quando o economista argentino que se define como libertário foi eleito deputado, e ganharam mais destaque depois que sua coalizão, La Libertad Avanza (“A Liberdade Avança”, em tradução livre), despontou nas primárias, com mais de 30% dos votos.
Milei, Bolsonaro e Trump costumam ser descritos por alguns analistas como líderes populistas de um novo movimento global de “direita antipolítica” (ou, para alguns, de “direita radical”) que se constrói questionando a direita tradicional.
Os três se apresentam como “outsiders” e ganharam popularidade com um discurso antissistema e antielite, e uso das redes sociais para se conectar diretamente com suas bases.
Mas, apesar de várias afinidades, também há distinções importantes entre os três.
A BBC News Brasil conversou com analistas sobre as principais semelhanças e diferenças entre Milei, Bolsonaro e Trump.
O deputado argentino, que estreou na política por um movimento político minúsculo em 2021, enfrentará nas urnas o ministro da Economia, Sergio Massa, da coalizão União Pela Pátria, que reúne peronistas de diferentes linhas ideológicas, incluindo o kirchnerismo, de centro-esquerda.
A maioria das pesquisas de opinião projetam um cenário acirrado, com disputa voto a voto, sendo difícil prever quem vai vencer o embate, um dos mais difíceis nos 40 anos do retorno da democracia, comemorados neste ano de 2023.
Cultivo da imagem de antissistema e ‘outsider’
Assim como Trump e Bolsonaro, Milei se apresenta como alguém que não faz parte do establishment e que chegou para lutar contra as elites políticas.
“A casta tem medo” foi uma de suas frases de efeito durante a campanha.
Analistas entendem que “casta”, na visão do candidato, seriam principalmente políticos kirchneristas, mas também empresários.
Estreante na política, sua ascensão meteórica é atribuída ao discurso contra “os políticos de sempre” e a decadência argentina “dos últimos cem anos”.
Patricio Navia, professor da Universidade de Nova York, entende que esta característica de se apresentar como fora do sistema político é o principal ponto de semelhança entre os três — MIlei, Trump e Bolsonaro.
“Os três se parecem no sentido de serem antissistema, mas conhecendo bem o sistema. E aproveitam esse conhecimento para dizer: ‘Eu conheço o sistema, é corrupto e discrimina vocês, o povo puro e honesto'”.
A narrativa ‘antissistema’ inclui a mensagem de que eles são os “redentores” que vão resolver os problemas do país, porque estão mais bem capacitados, mas também porque vão resgatar um suposto passado melhor que o país já teve, observa Navia.
“Trump tinha o discurso de ‘Make America Great Again’ (‘Torne os EUA grandes novamente’, em tradução livre). Milei diz que a Argentina deu certo quando se abriu ao mundo, mas desde que o peronismo surgiu (há 80 anos), a Argentina vai mal. Quer dizer, ‘Let’s make Argentina great again’ (ou, ‘Vamos fazer a Argentina grande de novo’).”
Navia vê em Bolsonaro uma linha semelhante. “Mas o mundo ideal de Bolsonaro era ‘voltemos ao Brasil de quando havia um governo militar que ordenava o país inteiro'”.
Essa imagem, nos três casos, é reforçada por um discurso marcado pela quebra de protocolo político e por um estilo belicoso.
“Esse componente antissistema é explorado pelos três”, assinala Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais do Berea College, no Estado americano do Kentucky.
Poggio ressalta que esse não é um traço objetivo, e é mais uma questão de estilo do que de conteúdo, em busca de conexão com eleitores que se consideram fora da política tradicional.
Mas, apesar das semelhanças na maneira como se apresentam, os três líderes têm trajetórias diferentes.
Milei, que foi economista em um dos principais grupos empresariais da Argentina, a Corporacion América, que possui negócios que vão da administração de aeroportos à agroindústria, ganhou fama com suas participações explosivas em programas de TV.
Ele, no entanto, só entrou na política em 2021, quando foi eleito deputado. Na época, a bancada de seu partido, A Liberdade Avança, foi formada apenas por ele e pela sua atual candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel.
Por sua vez, Bolsonaro já tinha três décadas de experiência como parlamentar quando foi eleito à presidência, em 2018.
No caso de Trump, que construiu sua carreira como empresário de sucesso, o ingresso na política ocorreu com sua conquista surpreendente do Partido Republicano, um dos dois principais partidos políticos nos Estados Unidos.
“Trump fez campanha como outsider, dizia (aos eleitores) que não era de Washington, que estava indo a Washington para agitar e mudar as coisas”, diz à BBC News Brasil o cientista político Todd Belt, professor da George Washington University, em Washington DC.
“Ele dizia que iria trazer suas habilidades como empresário, e que elas seriam superiores às dos insiders”, lembra Belt.
Inicialmente rejeitado pela liderança tradicional, Trump acabou não apenas vencendo as eleições de 2016, mas transformando o partido à sua semelhança. Ainda hoje, após perder a disputa de 2020 e ser alvo de várias investigações, Trump continua sendo o líder do Partido Republicano e o favorito nas pesquisas para definir o candidato republicano que disputará a Presidência na eleição do ano que vem.
“Nem Bolsonaro nem Milei contam com uma estrutura partidária como a de Trump”, salienta Poggio. “Isso também é uma diferença importante, que faz com que tenham de recorrer a uma questão muito mais personalista, muito mais focada na pessoa, já que não podem recorrer ao discurso partidário.”
Uso das redes sociais e base de eleitores
Tanto Milei quanto Trump e Bolsonaro inicialmente não eram levados a sério por seus adversários e pela mídia tradicional. Os três líderes se assemelham na maneira como usaram as redes sociais para se conectar diretamente com sua base eleitoral e, a partir daí, capturar a cobertura da imprensa.
Com declarações bombásticas, fugindo do ‘politicamente correto”, eles criaram momentos virais em redes como Facebook, Twitter ou TikTok, com milhões de visualizações. Isso, por sua vez, levou a mídia tradicional a dar cada vez mais espaço a esses candidatos.
Adepto mais recente deste protocolo, Milei conquistou o fervor dessa base de apoiadores com declarações estridentes e propostas vistas como radicais. Caracterizou a noção de mudanças climáticas como uma mentira socialista, prometeu “dinamitar” o Banco Central do país e dolarizar a economia, chamando a moeda local de “excremento”, e chamou de “maligno” o papa Francisco, que é argentino.
De jaqueta de couro preta e empunhando microfone, o argentino alimenta uma imagem roqueira em comícios e aparições públicas enquanto não teme os críticos ao dizer que seus cachorros, clones genéticos de seu falecido cão Conan, são os “maiores estrategistas (políticos) do mundo”.
“Não há ninguém que tenha sido capaz de usar as mídias sociais para impulsionar a cobertura da mídia tradicional da maneira que Trump fez”, ressalta Belt, lembrando que o sucesso da campanha do americano em 2016 serviu de modelo para outros líderes ao redor do mundo.
Poggio observa que sempre houve candidatos com esse estilo. Mas, antes da popularização das redes sociais, esses políticos eram filtrados pela mídia tradicional, não recebiam tanta cobertura.
“Os grandes jornais, as grandes redes de TV, não davam plataforma para esse tipo de candidato”, diz Poggio. “Hoje, o incentivo das redes sociais é justamente o oposto. Você consegue mais engajamento quanto mais xingamentos, quanto mais absurdo você é.”
Bolsonaro foi eleito presidente em 2018 apesar de ter inicialmente apenas 8 segundos de propaganda eleitoral na TV. “Isso só foi possível por conta dessa fragmentação da comunicação que existe hoje, permitida pelas redes sociais”, diz Poggio.
No caso de Milei, as redes sociais também jogam um papel central. Sua popularidade nas plataformas é impulsionada por jovens da Geração Z, que compõem parte importante de seu eleitorado. Muitos estão desiludidos com políticos tradicionais, após décadas de crises econômicas constantes no país.
O argentino ganhou tração especialmente no TikTok, onde tem 1,4 milhão de seguidores.
Em seus comícios, chama a atenção a presença de jovens com menos de 30 anos, principalmente do sexo masculino. Muitos dos eleitores que ajudaram Trump a chegar à Presidência em 2016 também eram do sexo masculino, principalmente homens brancos e sem diploma universitário.
Mas, apesar de também terem muitos eleitores jovens, no caso de Trump e Bolsonaro a característica mais marcante dos seguidores não é a idade, e sim o sentimento de alienação política, econômica e cultural, na visão de Poggio.
“Estão fora do processo político, sentem que não têm vez, sentem que os políticos não os ouvem, sentem que, portanto, é necessário alguém justamente que se apresente como outsider, de fora desse sistema, que prometa destruir esse sistema”, nota Poggio.
A visão do argentino Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, de Buenos Aires, é semelhante. Para Fraga, os três parecem ter entendido a frustração das sociedades a partir da desigualdade social, o que leva setores a se identificarem com um “outsider” em busca do progresso econômico, agora estancado, ou de pedidos de “maior rigor” na segurança pública.
Discurso anti-China e antiesquerdista
A China, assim como o Brasil, são os alvos constantes nas críticas de Javier Milei. Ele afirmou, várias vezes, que os empresários “são livres” para negociar com “os países que quiserem”, mas que seu governo não terá relação com os dois países, os principais sócios comerciais da Argentina.
O candidato argentino entende que a China, governada pelo partido comunista, e o Brasil, no momento presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, à frente de uma coalização liderada pelo esquerdista PT, são países “comunistas e socialistas” e deles afirma querer distância, caso seja eleito presidente.
Com esses posicionamentos, Milei se apresenta como anticomunista como Jair Bolsonaro.
Ambos, assim como Trump, se posicionam contra as ideias e políticas da esquerda.
O ex-presidente dos EUA também lançou mão da retórica anticomunista. Em sua campanha para as eleições de 2024, ele disse que quer barrar a entrada de “comunistas e marxistas” no país.
Embora os três também façam declarações contra a China, analistas lembram que há diferenças importantes nesse contexto.
Para Belt, no caso de Trump, o discurso anti-China não tem base em uma ideologia anticomunista, mas está mais ligada ao fato de que muitos de seus apoiadores, que tinham perdido seus empregos em fábricas, culpavam a China, e o candidato viu nisso uma oportunidade.
“A primeira coisa que Trump fez ao chegar à Presidência foi implementar impostos mais caros para determinadas importações da China”, observou o professor Patricio Navia, da Universidade de Nova York.
As disputas entre os dois países foram constantes no governo Trump e, de certa forma, permaneceram na gestão de Joe Biden, notou Rosendo Fraga. Na sua visão, o lema ‘Make America Great Again’ não era contra a Rússia, mas contra a China.
Poggio ressalta que, apesar da semelhança do discurso anti-China, a realidade do Brasil e da Argentina é muito diferente da dos Estados Unidos, que é a maior potência do mundo.
“Bolsonaro, logo que se torna presidente, percebe que esse discurso anti-China não tinha como colar na realidade, dado que a China é o maior parceiro comercial do Brasil. É (também) um dos maiores parceiros comerciais da Argentina.”
Apoio religioso e narrativa messiânica
O candidato argentino estuda o Torá, livro sagrado judaico, e tem um rabino como referente espiritual. Ele costuma citar frases bíblicas ou de inspiração bíblica com frequência e às vezes o faz em hebraico, segundo a imprensa local.
“A batalha pode ser difícil, mas as forças do céu sempre vencerão”, discursou Javier Milei recentemente.
É uma referência a um versículo do Antigo Testamento (livro dos Macabeus, capítulo 3, versículo 19), que diz: “Em uma batalha, a vitória não depende do número de tropas, mas das forças do céu”. Foi a mesma frase que usou ao tomar posse como deputado há dois anos num movimento que é visto por analistas como tendo aspectos “messiânicos” ao defender que sua carreira política tem apoio divino.
No Brasil, Jair Bolsonaro também explorou a ideia de que tinha um mandato divino para chegar ao poder, algo repetido sempre por sua esposa evangélica, Michelle, e reforçado por ele, que tem Messias como nome do meio.
Bolsonaro se declara católico, mas vai a eventos evangélicos com frequência e fez do apoio de segmentos evangélicos uma das forças de sua trajetória. O brasileiro contou com expressivo apoio do eleitorado evangélico tanto em 2018, quando saiu vitorioso, quanto em 2022, quando perdeu para Lula.
Na Argentina, Milei não tem apoio sólido desses eleitores evangélicos nem das lideranças religiosas, nem parece buscar isso ativamente. Os evangélicos representam cerca de 15% da população argentina, metade da fatia no Brasil.
No último fim de semana, a Federação das Igrejas Evangélicas da Argentina divulgou comunicado que foi interpretado como rejeição à eleição de Milei. O texto rechaça “projeto que promova o livre porte de armas”. Javier Milei tem sido ambíguo quanto à questão das armas. Diz que, se eleito, o tema ficará a cargo de sua vice.
O candidato não faz questão nem mesmo de cortejar o papa Francisco, que é argentino. Milei criticou o pontífice em uma entrevista ao apresentador americano Tucker Carlson (ex-Fox News). “O papa tem muita influência política. Ele está ao lado de ditaduras sangrentas. O papa tem afinidade com os comunistas assassinos”, afirmou citando Cuba e Venezuela.
Segundo Todd Belt, da George Washington University, nos Estados Unidos, Trump inicialmente também não tinha um apoio muito grande dos evangélicos. Mas isso mudou quando ele fez de uma de suas principais promessas na campanha de 2016 indicar juízes conservadores e antiaborto para a Suprema Corte, e também quando ele escolheu como seu vice-presidente um nome tradicional da direita religiosa, Mike Pence.
Belt lembra que agora, depois que o objetivo de derrubar o direito ao aborto foi atingido em nível federal nos EUA, líderes evangélicos americanos estariam considerando apoiar outro candidato republicano, “que esteja mais próximo da moralidade que defendem em sua vida pessoal”, em suas palavras.
Mas, para além das lideranças religiosas, boa parte dos fiéis das congregações não compartilham esse sentimento, e continuam extremamente fiéis a Trump. “Apesar de Trump estar perdendo parte do apoio no topo, isso não ocorre na base. Ele ainda tem o movimento evangélico firmemente a seu lado”, diz Belt.
Aborto e casamento gay
Milei e Bolsonaro também têm semelhanças em outros temas caros aos setores conservadores da sociedade, como críticas ao que classificam como ideologia de gênero e oposição à descriminalização do aborto, que ocorreu na Argentina em 2020.
Mas, se Bolsonaro se apresenta como defensor da família tradicional e conservador, Milei tem um discurso diferente, e se coloca não como conservador, mas como ultraliberal.
Ainda assim, Milei, que já chegou a defender a venda de órgãos (depois deixou de mencionar a proposta), não se alinha à liberdade individual quando o tema é direito ao aborto.
Ele disse que se for eleito pretende convocar um plebiscito sobre a Lei de Interrupção Voluntária do Aborto, aprovada em 2021, sob o argumento de que é contra a interrupção voluntária da gravidez e a forma como a medida foi aprovada — em uma votação no Congresso. Ele disse que é “a favor da vida” por convicção “filosófica, biológica e matemática”.
Carlos Gustavo Poggio, do Berea College, lembra que o aborto é um elemento importante porque envolve a questão da religião e da base religiosa que apoia esses candidatos.
“Mas, como no caso do Milei, essa base não é muito expressiva, para ele este é um tema que não tem tanta importância”, diz Poggio. “Para Bolsonaro é um tema mais central, justamente para mobilizar eleitores mais evangélicos e eleitores mais religiosos.”
No caso de Trump, um dos marcos de sua Presidência foi a indicação de três juízes conservadores à Suprema Corte dos Estados Unidos, que acabaram tendo papel crucial na decisão do ano passado que anulou o direito constitucional ao aborto, garantido desde 1973.
Mas, segundo Todd Belt, o ex-presidente americano não tinha uma perspectiva conservadora sólida em relação ao aborto, e abraçou o tema mais por ser vantajoso politicamente do que por convicção pessoal.
“Trump nunca foi contra o aborto até se tornar candidato”, diz o professor.
Após a decisão da Suprema Corte, vários Estados aprovaram leis restritivas em relação ao aborto, e o tema tem beneficiado os democratas em eleições legislativas e estaduais.
“Trump meio que percebeu que esse é um tema que está sendo problemático para os republicanos. O ideal, para Trump, seria não discutir esse tema. Mas isso será muito difícil, porque os democratas vão obrigá-lo a discutir (na campanha à próxima eleição presidencial)”, diz Poggio.
Já quando o tema é casamento gay, uma pauta que tem oposição clara do bolsonarismo no Brasil, Javier Milei defende suas credenciais libertárias e disse que não é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque a “individualidade deve ser respeitada”.
Ele diz ser contra o Estado se envolver na formalização de qualquer casamento. “Para mim, não tem a menor importância a escolha sexual (de uma pessoa). Se a pessoa quiser estar com um elefante, e se tem o consentimento do elefante, é um problema da pessoa e do elefante. (..) O que não se pode é impor algo a partir do Estado”, disse durante entrevista a um jornalista peruano.
A frase de Milei provocou controvérsia por ter citado elefantes ao falar de homossexualidade.
Narrativa de fraude eleitoral
Trump rejeitou sua derrota nas urnas em 2020 e, apesar da ausência de provas sobre irregularidade nas eleições, disseminou entre seus apoiadores a ideia de que teria havido fraude. Isso culminou com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Episódio semelhante ocorreu no Brasil após a derrota de Bolsonaro no ano passado. Alegando fraude no sistema de votação eletrônico brasileiro, apoiadores do presidente derrotado invadiram edifícios do governo federal em Brasília em 8 de janeiro deste ano.
Segundo Poggio, Bolsonaro copiou a estratégia de Trump. “É um discurso importante também para manter a base mobilizada, um discurso que reforça a identidade de antissistema”, diz Poggio. “‘O povo me ama, mas o sistema está contra mim, não quer que eu seja eleito'”, exemplifica.
“Infelizmente, apesar de violar as normas democráticas, é (uma estratégia) bem-sucedida”, ressalta Belt. “Nos Estados Unidos, todos os republicanos que se manifestaram contra o que Trump fez e a violência de 6 de janeiro acabaram (posteriormente) se unindo a ele, porque ele conseguiu continuar dominando o Partido Republicano.”
Javier Milei, mesmo saindo vencedor das primárias em agosto, chegou a alegar fraude, e afirmou, sem apresentar evidências, que adversários haviam roubado cédulas de seu partido, o que teria lhe custado inúmeros votos e pontos percentuais de vantagem na disputa do primeiro turno, quando ficou atrás de Sérgio Massa. Um jornal argentino comparou a estratégia à de Trump e Bolsonaro.
Autoridades do sistema eleitoral criticaram a atitude, ratificando que o sistema eleitoral argentino é “confiável”.
Nesta semana, em entrevista na TV, Milei negou ter feito denúncias de fraude à Justiça Eleitoral. “Não fiz e não pretendo fazer”, disse.
Livre mercado e apoio dos principais setores econômicos
Milei tem declarado que o Estado “só atrapalha” e defende a liberdade de mercado. Ele acha que os empresários serão mais prósperos e haverá menos corrupção se as negociações empresariais, incluindo com outros países, não incluírem a presença estatal.
A quase ausência do Estado defendida por Milei o diferencia do “protecionismo de Trump” e do posicionamento de Jair Bolsonaro quando foi presidente brasileiro.
“Bolsonaro queria um Estado poderoso que promovesse reformas conservadoras. Ele era neoliberal em algumas coisas, mas também muito conservador e protecionista em outras coisas”, diz professor Patricio Navia, da Universidade de Nova York. “Trump queria um Estado protecionista. Eles são diferentes numa série de dimensões que são muito importantes de políticas públicas.”
O candidato argentino não conta com o apoio explícito dos setores empresariais do país que temem tanto a implementação de suas propostas, como a dolarização da economia, como o impacto de abalos nas relações com Brasil e China, países que ele critica. Num discurso diante de empresários, Milei afirmou que acabaria com as obras públicas e foi aplaudido timidamente.
“Hoje, o empresariado prefere Sergio Massa. Já o conhecem, sabem como trabalha, conhecem seu estilo. E Milei recusou se reunir com a entidade União Industrial Argentina (UIA, que costuma ser comparada com a FIESP, poderosa entidade empresarial brasileira)”, analisa o argentino Rosendo Fraga.
Fraga avalia, porém, que a “resistência” do empresariado e do mercado financeiro poderá se acomodar e ocorrer uma aproximação caso Milei seja eleito. O candidato recebeu apoio do ex-presidente Mauricio Macri, bem visto pelos grandes setores econômicos.
“O mercado tem resistência a Milei porque não sente que o controla ou que ele se deixa controlar por eles”, disse. Milei tem, porém, apoio de setores como as empresas de tecnologia e até no âmbito do petróleo, insatisfeitos com a política econômica de Massa.
A grande expectativa é que Milei anuncie um ministro da Economia confiável, para aplacar as desconfianças, caso vença. Esta foi a estratégia usada por Jair Bolsonaro no Brasil, que teve como pilar de sua primeira campanha o liberal Paulo Guedes, já anunciado como seu czar econômico. O ex-ministro da Economia brasileiro já era bem visto no mercado e angariou apoio majoritário no sistema financeiro e em importantes setores empresariais.
Militares e ditadura
Milei e Bolsonaro também tem pontos de contato na relação que travam com o passado de regimes militares dos dois países — uma realidade sem paralelo com os EUA de Donald Trump.
Capitão do Exército reformado, Jair Bolsonaro fez da reivindicação da ditadura brasileira (1964-1985) uma bandeira de campanha, defendendo seus supostos avanços econômicos e rejeitando as acusações de violações de direitos humanos que aconteceram no período.
Já Javier Milei trouxe o tema para a campanha argentina de uma maneira inédita desde a redemocratização do país, em 1983. Em dois debates, Milei questionou o total de vítimas da ditadura argentina, dizendo que não seria os 30 mil informados pelas organizações de direitos humanos.
Analistas ouvidos pela reportagem entendem que Milei segue a pauta de sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel. Ela já disse que, se eles forem eleitos, pretende rever as indenizações pagas pelo Estado às vítimas da ditadura militar (1976-1983). A dupla também propõe estabelecer compensação às vítimas de atentados de guerrilhas de esquerda nos anos 1970.
Nesta semana, Villarruel voltou a afirmar que o ex-centro de tortura da Marinha argentina, a ESMA, agora chamado Espaço Memória e Direitos Humanos, deve ser desativado e ser transformado em escolas. O lugar foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em setembro.
Na Argentina, à diferença do Brasil, os líderes do regime ditatorial foram levados ao banco dos réus nos anos 1980. Desde a retomada da democracia (1983), os militares não têm influência determinante na política do país.