A dona de casa Maria de Fátima Coimbra de Jesus, de 33 anos, tem seis filhos. A casa dela é de taipa, barro amassado entremeado em tiras de madeira e bambu, tem dois quartos, chão de terra batida e foi construída pela própria família. Não há televisão nem fogão a gás. Conforme matéria da revista Veja, Maria cozinha com lenha num fogareiro improvisado, e as refeições, quando a sorte ajuda, têm caranguejo ou peixe com farinha, pescados por seu companheiro nas redondezas. “Tem dia que a gente não tem nada para comer. Tem dia que a gente almoça, mas não janta”, conta ela. Maria mora em Serrano do Maranhão, que fica a 500 quilômetros de distância por rodovia da capital, São Luís, e ostenta um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do país — está na 5461ª posição entre 5 570 municípios. Na cidade, de 15 000 habitantes, 84% da população sobrevive graças ao Auxílio Brasil, programa que foi turbinado por Jair Bolsonaro (PL) e se tornou uma de suas principais apostas para diminuir a desvantagem em relação a Lula (PT) entre os eleitores mais pobres. O novo valor do benefício, de 600 reais até dezembro, começou a ser pago no último dia 9 a mais de 20 milhões de famílias.
A 2 000 quilômetros de distância de Serrano, o comportamento de Maria de Fátima está sendo observado com extrema atenção. O plano da dona de casa é usar o dinheiro para comprar arroz, feijão e óleo. Ou seja: espantar a fome, mal que aflige 33 milhões de brasileiros. Com o ensino médio incompleto, ela ainda não sabe em quem votará para presidente, mas deixa claro que seu critério para a escolha do candidato será a ajuda que cada um deu ou dará aos mais necessitados. “Na última eleição, eu votei no Bolsonaro, mas agora estou indecisa. O Bolsonaro ajuda muito, e o Lula ajudou também”. A mãe de Maria, dona Domingas, segue a mesma linha. Analfabeta, ela sustentou a prole de sete filhos com o antigo Bolsa Família e agora vive como aposentada do INSS. A família, portanto, já tem pelo menos duas gerações atendidas por programas de transferência de renda. “Às vezes, meus netos ficam sem comer à noite. A vida da maioria aqui é desse jeito”, lamenta ela. De fato, essa realidade nada edificante é assim não apenas nos recantos maranhenses, mas Brasil afora. As estatísticas mostram que 53% dos eleitores têm renda mensal de até dois salários mínimos. Em razão de seu tamanho, esse grupo deve ser decisivo na corrida presidencial e, por isso, tornou-se prioridade para todas as campanhas.
Até aqui, Lula leva vantagem nesse segmento. De acordo com pesquisa Genial/Quaest divulgada na quarta-feira 17, o ex-presidente tem 55% das intenções de voto entre aqueles com renda familiar mensal de até dois salários mínimos. Bolsonaro marca 27%, e os outros concorrentes somados chegam a 7%. A situação é de certa estabilidade na comparação com o levantamento anterior, realizado duas semanas antes, quando o petista registrou 52% e o ex-capitão, 25%. Entre as duas sondagens, o governo começou a pagar o novo valor do Auxílio Brasil, mas o desembolso, que é feito de forma escalonada, só beneficiou quatro dos dez grupos atendidos a cada mês. A esperança do presidente é que as intenções de voto em seu favor subam à medida que todos os grupos recebam os recursos, tanto em agosto quanto em setembro. A recuperação ganharia tração às vésperas da votação do primeiro turno, em 2 de outubro. A lógica de Bolsonaro é a seguinte: com um pouco mais de dinheiro no bolso e um pouco mais de comida no prato, o eleitorado mais pobre mostrará gratidão a ele. Uma gratidão que, segundo seus coordenadores de campanha, já é visível entre aqueles que têm renda mensal de dois a cinco salários mínimos, beneficiados com o barateamento do preço da gasolina e a recuperação do emprego. Nesse segmento, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro caiu de 9 para 4 pontos em duas semanas, conforme a Quaest.
Os efeitos da injeção de renda nas regiões mais pobres são visíveis. Em Serrano do Maranhão, formam-se longas filas na lotérica e no posto de atendimento da Caixa nos dias de pagamento do Auxílio Brasil. O dinheiro, como em qualquer canto do mundo, faz a roda da economia girar. Dono de um pequeno açougue, Nelson Ned mata geralmente uma vaca por dia, o suficiente para atender sua clientela cativa, mas tem de duplicar a oferta quando o benefício é repassado aos moradores. “Metade da população não come carne sem ajuda do governo. Muita gente pendura a conta e fala assim: ‘Quando o Bolsonaro liberar o auxílio, eu pago a conta’”, ressalta o açougueiro. Ned, que votou em Fernando Haddad na última eleição, afirma que ainda não escolheu seu candidato a presidente, mas aposta que o Auxílio Brasil impulsionará a campanha de Bolsonaro. “O auxílio representa uns 60% de todas as minhas vendas. O movimento do comércio é nos dez dias do mês que pagam o auxílio. Depois disso, é uma calamidade”, reforça Valmir Pinto, dono de uma mercearia, que também elogia a iniciativa do presidente.
Em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro aposta no pacote bilionário de benefícios — que inclui, entre outras coisas, a duplicação do valor do vale-gás, pago a 5,6 milhões de famílias — para chegar ao segundo turno com uma pequena desvantagem para Lula, pré-requisito para que haja uma chance mínima de virada. O presidente e seus aliados têm feito uma intensa divulgação do novo Auxílio Brasil destacando alguns pontos, como o fato de o valor desembolsado até o fim do ano ser três vezes maior do que a média do benefício do antigo Bolsa Família (189 reais). Os bolsonaristas também ressaltam que o Auxílio Brasil incorporou mais 2,2 milhões de famílias, totalizando 20,2 milhões de famílias beneficiadas. “Os efeitos do ‘fica em casa que a economia a gente vê depois’, do ‘fecha tudo’ e de uma guerra que atinge toda a economia mundial permanecem e, por isso, esse aumento de 200 reais no benefício fará diferença para quem mais precisa”, escreveu o presidente numa rede social. Na prática, o mandatário e seu rival Lula disputam o coração, o bolso e o voto dos mais pobres. O PT dá como certo que Bolsonaro ganhará algum terreno com o avanço do pagamento dos benefícios, mas já reage a fim de conter danos eleitorais.
Integrantes do partido têm dito publicamente que Bolsonaro nunca se preocupou de verdade com os mais pobres e só turbinou o Auxílio Brasil quando percebeu que corria sério risco de ser derrotado por Lula. O presidente não teria agido por sensibilidade social, mas por mera urgência eleitoral. Lula também tem explorado a inflação para dizer que o reajuste do Auxílio Brasil não é capaz de neutralizar a carestia dos alimentos. Num discurso direto, o ex-presidente alega que o pobre hoje come menos e vive pior do que quando ele governava o país. “O eleitor pobre, principalmente das regiões Norte e Nordeste, é um eleitor grato. Ele é grato às políticas sociais do Lula, como Bolsa Família e Luz para Todos, que melhoraram diretamente a vida das pessoas mais pobres”, afirma o cientista político André Rosa, especialista em relações governamentais pelo Ibmec. “O presidente Bolsonaro está tentando buscar esse eleitor com os programas sociais como o Auxílio Brasil”, acrescenta. Nessa disputa pela gratidão dos desassistidos, os candidatos ao Palácio do Planalto têm recorrido a muito palavrório inócuo e a pouca proposta consistente (veja o quadro).
Bolsonaro, que aumentou o valor do Auxílio Brasil para 600 reais até dezembro, agora fala em prorrogá-lo se conquistar a reeleição. “Ele percebeu a bobagem e agora está dizendo que vai continuar. Se quisesse continuar, fazia sem colocar o fim em dezembro”, provocou Lula. Já o ex-presidente prometeu que tornará permanente o valor de 600 reais e que incluirá novos beneficiários no programa, como mães-solo. Em terceiro lugar nas pesquisas, Ciro Gomes anunciou um programa de renda mínima de 1 000 reais para 60 milhões de pessoas. Na quarta colocação, Simone Tebet também prometeu instituir um benefício de renda mínima para eliminar a pobreza extrema. Como se sabe, medidas emergenciais são necessárias para atenuar a fome e a pobreza no curto prazo, mas não são capazes de resolver esses dois problemas estruturais. É aí que está o nó da questão: os candidatos estão mais preocupados em ganhar a eleição através da empulhação do que com a elaboração de propostas capazes de mudar realmente a realidade dos mais necessitados. Pelos programas de governo apresentados até aqui, a família de Maria e a de dona Domingas vão para mais uma geração na condição de beneficiárias de programas assistencialistas.
Como destaca a Carta ao Leitor desta edição de VEJA, há décadas fome e miséria servem de combustível para a demagogia — e não há no horizonte perspectiva de mudança. Esse quadro não mudou na campanha presidencial de 2022. “A gente foi incapaz enquanto país de criar um sistema, especialmente para a Região Nordeste, que pudesse tirar as pessoas da pobreza. A China tirou 700 milhões de pessoas da pobreza entre 1978 e 2022, três Brasis e meio. Eles fizeram isso com planejamento, políticas públicas estruturadas e, principalmente, mantidas a longo prazo”, diz o economista William Baghdassarian, professor do Ibmec. “O problema do Brasil é que as políticas públicas nem sempre são mantidas com a troca de governantes, e as decisões políticas não são feitas com o objetivo de tirar as pessoas da pobreza.” A prioridade é ganhar a eleição, com ou sem propostas concretas, tanto faz para os candidatos. Outra prova disso foi o primeiro dia oficial de campanha, na terça-feira 16, quando Lula e Bolsonaro também travaram o primeiro duelo. Foi uma demonstração desalentadora do baixíssimo nível que infelizmente tende a ser a marca registrada da disputa presidencial.
Em diferentes atos públicos, o petista afirmou que o rival está “possuído pelo demônio” depois de criticar a postura negacionista de Bolsonaro em relação à pandemia de Covid-19. Já o presidente — mantendo o sarrafo do debate no chão — insinuou que, se Lula for eleito, o povo será proibido de acreditar em Deus. Em busca de apoio entre os religiosos, os candidatos começaram muito mal, agredindo a inteligência alheia, para dizer o mínimo. Há décadas se fala da necessidade premente de acabar com o abismo que gerou dois países diferentes: o Brasil rico e desenvolvido e Brasil pobre e medieval. O primeiro se orgulha de produzir alimentos suficientes para abastecer os maiores mercados do mundo. O segundo tem 23 milhões de pessoas vivendo com menos de 7 reais por dia. O número revela o agravamento de uma chaga secular, para a qual os candidatos a presidente não estão dedicando a devida atenção. No Brasil real, a maioria miserável permanece quase sempre invisível, com exceção, talvez, do período eleitoral, quando é alvo de disputa renhida e lugares como Serrano do Maranhão, mesmo a 2 000 quilômetros de Brasília, passam a merecer alguma atenção.
Por
, colaborou Leonardo CaldasPublicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803