Na tentativa de acalmar a base e construir um cenário de estabilidade no Legislativo, o Palácio do Planalto acelerou a liberação de emendas e repassou de uma só vez R$ 700 milhões para deputados e senadores na terça-feira. Trata-se do maior valor já distribuído em apenas um dia desde o início da gestão e representa 58% de todo o montante encaminhado até o momento. Os dados levantados por Alice Cravo, Camila Turtelli e Dimitrius Dantas, do O Globo, apontam que o derrame de recursos beneficiou os principais partidos aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o líder do ranking é o PSD, com R$ 143 milhões, seguido por PT, com R$ 136 milhões; MDB, com R$ 91,3 milhões; e União Brasil, com R$ 75 milhões.
Deste grupo, contudo, somente o PT entregou a Lula a fidelidade esperada pelo presidente durante a votação do decreto que alterava o marco do saneamento. Trechos da proposta do governo foram derrubados pela Câmara na semana passada, na primeira derrota sofrida pelo Executivo no Congresso desde a posse do petista. Apesar de somarem 142 deputados, PSD, MDB e União contribuíram com somente oito votos favoráveis às mudanças defendidas pelo Planalto.
A liberação de recursos não é apenas uma reação ao revés na Câmara, mas uma preparação para votações importantes que virão pela frente no Congresso, como a do novo arcabouço fiscal. Além disso, a partilha se dá no momento em que estão sendo gestadas Comissões Parlamentares de Inquérito para apurar responsabilidades das autoridades durante os atos de 8 de janeiro e o Movimento Sem Terra (MST), historicamente alinhado ao PT. Nos últimos dias, articuladores do Planalto intensificaram a ação para reduzir as arestas com o Congresso.
Todos os parlamentares têm direito a emendas, mas o governo consegue controlar a velocidade e para quem as verbas são liberadas primeiro. Por isso, apesar de ter a maior bancada atual na Câmara, o PL foi o oitavo partido que mais recebeu, atrás do PDT, por exemplo.
Conforme prometido pelo Executivo, boa parte dos valores liberados são de emendas ligadas ao Ministério da Saúde. Embora a maior fatia tenha ido para congressistas da Câmara, na lista dos dez maiores beneficiários, nove são senadores — Mara Gabrilli (PSD-SP), Daniella Ribeiro (PSD-PB), Jayme Campos (União-MT) e Renan Calheiros (MDB-AL) encabeçam o ranking. Entre os deputados, quem está na frente é Aluisio Mendes (Republicanos-MA), com R$ 13 milhões. Ele integra um partido do Centrão, base de apoio do governo de Jair Bolsonaro e que agora flerta com o Palácio do Planalto. Nesta leva, o governo federal empenhou R$ 467 milhões para deputados e R$ 232 milhões para senadores.
Montante recorde
O montante de recursos despejados nesta leva é, de longe, o maior empenhado em apenas um dia desde janeiro. Até então, o Executivo tinha liberado no máximo R$ 184 milhões no mesmo intervalo de tempo, em 23 de março.
Ao todo, o governo já empenhou R$ 1,1 bilhão em emendas, mas o valor deve aumentar já nos próximos dias. De acordo com parlamentares, a partir de hoje será possível fazer indicações para emendas discricionárias. Elas sairão do Ministérios da Saúde, da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) por meio das lideranças partidárias. O governo prometeu distribuir ao longo do ano R$ 6 bilhões dessa rubrica, além de restos a pagar de emendas ainda de 2022.
O empenho é a primeira fase da transferência de recursos públicos. Ao todo, os pagamentos do governo têm três fases: ao empenhar um valor, o Executivo se compromete a pagar aquela despesa. No caso de uma obra, por exemplo, o empenho é o que garante o início dos serviços. Apenas após a entrega da melhoria é que o governo realiza a liquidação e o pagamento.
Outra frente de esforços passa por uma agenda de reuniões, nas quais emissários de Lula vão cobrar fidelidade dos partidos da base. A estreia ocorreu ontem com o PSB, do vice Geraldo Alckmin, e à noite foi a vez do PSD. Um ponto de constrangimento logo na largada apareceu no posicionamento majoritariamente contrário do PSB ao decreto proposto pelo governo para alterar o marco do saneamento — situação semelhante à de outras siglas aliadas.
A justificativa apresentada pelo líder do partido, Felipe Carreras (PE), se baseou no fato de a legenda compor um bloco com outros oito partidos, nem todos afinados ao Planalto. A presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann, rebateu o argumento.
— O que eu deixei claro, falando pelo PT, é que não podia ter uma opção entre governo e bloco. Quem está no governo tem que estar com o governo.
Mais tarde, Carreras acrescentou que, a portas fechadas, o Planalto reconheceu “que deve ajudar e fazer um esforço”. Segundo ele , há reclamações dos deputados sobre a demora na nomeação de cargos regionais — “uma cobrança geral”, de acordo com o deputado.
Havia a expectativa sobre a presença de Lula na reunião, mas ele não compareceu. Na semana passada, o presidente chegou a cobrar publicamente o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a “organizar” a base. Nomes de confiança do petista o aconselharam, porém, a não tomar para si a articulação, para não passar a imagem de esvaziamento do responsável pelas negociações com o Parlamento.
— Nunca foi tarefa do presidente da República fazer articulação política. Ele tem quem faça, que é o ministro Padilha — disse o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
As tentativas de ajustes na relação com Câmara e Senado ocorrem também em meio a divergências internas. Ontem, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou à GloboNews que é preciso admitir o “erro” do governo ao longo da tramitação do decreto que alterava o marco do saneamento.
— Temos que reconhecer um erro. Eu tinha pedido duas ou três vezes que nós fizéssemos antecipadamente uma reunião com líderes para apresentar o decreto. E, pelo excesso de trabalho e pela agenda dos parlamentares, não conseguimos fazer essa reunião com antecedência.
Chá de cadeira
A ofensiva do governo agora é tentar reverter a situação no Senado. Além de Costa, o ministro Jader Filho (Cidades) também esteve ontem no Congresso para um encontro com senadores da oposição, incluindo aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, como Rogério Marinho (PL-RN) e Marcos Pontes (PL-SP). No dia anterior, uma comitiva de ministros visitou o Senado, mas foi embora sem ser recebida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Nos bastidores, a avaliação de integrantes de partidos de centro é que será muito difícil conseguir barrar a reversão do decreto e que o melhor movimento seria a revogação da medida de Lula, para que não haja outra derrota no plenário do Senado.