Pessoas com deficiência, que têm seu Dia Internacional lembrado nesta terça-feira (3), compõem segundo reportagem da Folha de S. Paulo, apenas 1,4% dos servidores no Executivo federal, segundo dados do painel estatístico de pessoal. A cifra fica muito atrás da demografia desse grupo, que representa 8,9% da população do país, de acordo com o último dado divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A ação das juntas médicas de concursos, que avaliam se um profissional com deficiência está apto ou não para assumir um cargo, e desafios no acesso à educação ajudam a barrar a entrada de mais pessoas com condições físicas, sensoriais e intelectuais diferentes no setor, de acordo com especialistas.
No início deste ano, Lucas Antonio de Oliveira, 27, foi aprovado em um concurso público para agente educacional de secretaria escolar na prefeitura de Piraquara (PR). Para assumir o cargo, ele, que é cego, precisou passar por três juntas médicas. Em todas, foi considerado inapto para a posição.
Desde 2018, Lucas já é servidor público em outra cidade paranaense, onde atua cadastrando beneficiários de programas sociais. Em Piraquara, a posição era para funções mais burocráticas, segundo o edital.
Isso inclui, por exemplo, encaminhar correspondências, redigir documentos e manter em dia dados de profissionais da escola. De acordo com Lucas, ele informou à banca que faria essas atividades usando leitores de tela.
Mas, na descrição do cargo, atender e acompanhar alunos também estaria entre as responsabilidades. Foi essa uma das justificativas que deram a ele para rejeitar sua posse, segundo o servidor.
“Disseram que cegos não poderiam trabalhar [ali] porque envolve crianças”, diz Lucas. “Perguntei ao médico por que e ele falou que não discutiria aspectos técnicos comigo.”
Procurada, a prefeitura de Piraquara não respondeu aos questionamentos da reportagem até a publicação deste texto.
No setor público federal, o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é o principal empregador de pessoas com deficiência, de acordo com dados do painel estatístico de pessoal. Em seguida, vêm os ministérios da Fazenda e da Saúde.
Tanto no setor público quanto no privado, ainda é comum comparar a forma como pessoas com e sem deficiência fazem tarefas do dia a dia, de acordo com Guirlanda Benevides, coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Mercado de Trabalho e Pessoas com Deficiência, vinculado ao Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho) da Unicamp.
Na opinião dela, isso fortalece o capacitismo, já que o profissional com alguma demanda física ou sensorial pode não fazer o trabalho da mesma maneira que os demais –o que não significa que ele seja incapaz de concluí-lo.
Segundo Guirlanda, são as pessoas com deficiência que devem decidir se estão aptas ou não para assumir um cargo.
“Quando falamos desse grupo, os critérios são diferentes. Sempre existiu um conflito entre como o setor avalia o que o profissional com deficiência pode ou não fazer e como o próprio profissional se autoavalia”, afirma.
Segundo Anna Paula Feminella, secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ainda na Folha de S. Paulo, a solução não seria eliminar as bancas dos concursos, já que essa é uma etapa necessária para confirmar se a pessoa de fato tem uma deficiência, como ocorre na heteroidentificação racial.
Mas, para a secretária, a banca pode se tornar mais humanizada com a regulamentação da avaliação biopsicossocial, método que inclui outros profissionais além dos médicos, como psicólogos. Com essa análise, é possível entender não só as barreiras físicas, mas sociais que a pessoa com deficiência encontra ao assumir uma vaga, de acordo com a secretária.
“Juntas médicas precisam mudar o paradigma para perceber não o impedimento do indivíduo, mas, sim, sua funcionalidade para o cargo que ele está concorrendo”, diz. “A avaliação biopsicossocial não fica só na ideia de CID [Classificação Internacional da Doença], porque deficiência e doença são coisas distintas.”
A secretária afirma ainda que outro desafio para avançar no acesso dessa população a cargos no setor público é o baixo índice de escolaridade.
Dados do IBGE divulgados no ano passado apontam que a taxa de analfabetismo entre pessoas com deficiência é de 19,5%, cifra que cai para 4,1% no restante da população. Só 25,6% de brasileiros com alguma demanda física ou sensorial concluíram pelo menos o ensino médio. Entre pessoas sem deficiência, a taxa é de 57,3%.
As barreiras podem persistir mesmo entre profissionais que passaram pelo sistema de ensino e pretendem fazer concurso público. Pessoas alfabetizadas em Libras (Língua Brasileira de Sinais), por exemplo, podem ter mais dificuldade para encontrar preparatórios para o certame ensinados nessa modalidade.
De acordo com a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), para além do acesso via concurso, também é preciso avançar em políticas que ajudem a manter pessoas com deficiência em cargos no setor público.
Em sua experiência no Senado, rampas, elevadores acessíveis e um sistema de votação pelo movimento facial permitiram que ela exercesse suas funções de forma independente.
Mas, segundo a senadora, ainda há barreiras de acessibilidade no setor público: para além da falta de estrutura física, tecnologias assistivas e adaptação de sistemas internos continuam incipientes. A mudança de cultura entre servidores, para que passem a entender a necessidade de incluir profissionais com deficiência, também permanece sendo um desafio.
“Muitos gestores e colegas não estão preparados para entender que a inclusão é um direito e que adaptações razoáveis não são privilégios, mas garantias legais”, diz. “Embora as ações afirmativas sejam um marco importante, a baixa representatividade demonstra que as medidas precisam ser ampliadas e acompanhadas de fiscalização rigorosa, formação de gestores e campanhas de conscientização.”