Há 60 anos, o pai do ex-presidente Fernado Collor de Melo matou um colega no Senado e saiu impune. Mas esse não foi o primeiro assassinato entre colegas parlamentares na política brasileira.
O Brasil vivia um clima político ríspido e polarizado em dezembro de 1929, há quase 95 anos. O país estava a poucos meses da eleição presidencial, disputada entre o paulista Júlio Prestes, candidato da situação, e o gaúcho Getúlio Vargas.
O governo do presidente Washington Luís recomendava a seus aliados no Congresso a tática de debandada, a fim de impedir, sempre que possível, o quórum mínimo das sessões. Isso ajudaria na campanha de Prestes, então presidente (cargo equivalente ao de governador) de São Paulo, ao deixar os deputados oposicionistas isolados no plenário, diz Felipe van Deursen na reportagem no portal Uol.
A Aliança Liberal, formada em apoio à candidatura de Getúlio Vargas, reagia de maneira espalhafatosa. Os deputados da coligação faziam seus discursos do lado de fora da Câmara, que àquela época funcionava no Palácio Tiradentes, no Centro da então capital federal, o Rio de Janeiro.
Nas escadarias do belo palácio em estilo eclético, hoje sede da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, os políticos inflamavam centenas de pessoas que assistiam aos discursos.
Foi em um dia desses, de climas exaltados dentro e fora do palácio, que a Câmara dos Deputados vivenciou um episódio até então inédito, que teria desdobramentos imediatos na história brasileira. Em 26 de dezembro de 1929, um deputado gaúcho matou um deputado pernambucano dentro do Congresso.
O crime
Ildefonso Simões Lopes, 66 anos, era um político com larga carreira. Engenheiro bem-sucedido, filho das elites gaúchas de Pelotas ligadas às charqueadas, foi deputado estadual e federal algumas vezes.
Como ministro da agricultura, indústria e comércio no governo Epitácio Pessoa (1919-22), criou cursos técnicos de agricultura prática, apoiou o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil para explorar o petróleo e o carvão nacionais e vistoriou obras contra as secas ao lado do marechal Cândido Rondon.
Deixou o cargo por divergências entre sua sigla, o Partido Republicano Rio-Grandense, e o governo federal. Em 1929, era vice-presidente da Aliança Liberal – portanto, um dos principais aliados de Vargas.
Manuel Francisco de Sousa Filho, 43 anos, era um deputado federal em segundo mandato. Advogado e jornalista, esteve próximo da política pernambucana desde o berço: o pai fora prefeito de sua cidade natal, Petrolina. Mas a carreira política começou na Bahia. Ele foi intendente (correspondente a prefeito) de Juazeiro, do outro lado do São Francisco, e deputado estadual antes de se tornar deputado federal por Pernambuco. Em 1929, Sousa Filho fazia parte da maioria governista.
Naqueles dias, Simões Lopes se mostrava exaltado nas conversas e nas sessões. Quando ouviu tiros do lado de fora da Câmara, ele rapidamente foi ver do que se tratava, achando que um correligionário pudesse ter sido atingido. Não foi o caso, mas duas pessoas ficaram feridas.
Cenas do tipo estavam ficando comuns. As escadarias do Palácio Tiradentes viraram um palco de provocações e brigas entre partidários de Getúlio e de Júlio Prestes. Oradores arrancavam aplausos de parte do público, e logo vinham vaias, urros e tudo que era impropério. Certa vez, outro deputado federal, o também gaúcho Flores da Cunha, chegou a reagir aos xingamentos dando tiros para o alto.
Após checar o ocorrido, Simões Lopes voltou injuriado à Câmara. Segundo o “Jornal do Brasil”, que dedicou toda a primeira página da edição do dia seguinte ao ocorrido, Sousa Filho, “galhofeiro”, lhe perguntou quantos mortos e feridos o colega havia contabilizado. E emendou:
“É que você podia estar lá no meio deles, ao lado do Bexiguinha da Lapa”, respondeu Simões Lopes.
“Não admito esse paralelo, que me daria o direito de incluir também a você no grupo do Bambu.”
Bexiguinha da Lapa e Bambu eram dois conhecidos arruaceiros malandros que alimentavam o clima de tensão e desordem no lado de fora do palácio. Associar um rival político a esses tipos era considerado uma ofensa, ainda mais quando os parlamentares insinuavam que o oponente deveria estar no plenário, debatendo, frente a frente, e não do lado de fora, discursando para baderneiros.
Mesmo 23 anos mais velho, Simões Lopes partiu para cima de Sousa Filho. Dirigiu-lhe um soco, que atingiu, ou não, o peito do pernambucano (as fontes divergem sobre os detalhes do ocorrido). Nisso, o engenheiro Luís Simões Lopes, 26 anos, filho do deputado gaúcho, decidiu interferir. Deu uma bengalada nas costas de Sousa Filho.
Ele teria se intrometido na briga porque viu que Sousa Filho sacou um punhal para atacar seu pai. Mas, de acordo com o “Jornal do Brasil”, o pernambucano só puxou a arma após ser agredido com a bengala. Segundo o jornal, outro deputado presente, Machado Coelho, conseguiu tirar o punhal da mão de Sousa Filho, que não pestanejou: pegou um pedaço da bengala, quebrada após a pancada, e partiu para cima do jovem Luiz, que, na confusão, caiu no chão.
Pai e filho foram detidos. Segundo o “Correio da Manhã”, a polícia apreendeu as armas:
Um revólver Smith and Wesson cano curto, usado no crime, e um Colt, de propriedade de Luiz, além da bengala partida.
A repercussão
Lira Neto lembra que o deputado estadual mineiro Virgílio Alvim de Melo Franco, o Virgilinho, previu que o episódio repercutiria a favor da candidatura de Getúlio:
Vargas estava com viagem marcada para o Rio dali a dois dias. O embaixador americano, Edwin Morgan, expressou ao Departamento de Estado dos Estados Unidos seu receio:
“A menos que o governo tome medidas fortes e cautelosas, não é improvável que ocorram outros crimes decorrentes da exaltação política. Como a maioria dos brasileiros está acostumada a portar revólveres ou facas como parte de seus acessórios diários, é comum ocorrerem assassinatos por qualquer instante maior de raiva ou de paixão.”
Até então, Getúlio não estava tão convicto da ida ao Rio. Seus correligionários temiam uma repercussão negativa e pediram que ele adiasse a viagem. Mas Vargas topou esperar apenas dois dias. Chegou dia 30, a dois meses das eleições, e foi recebido com festa.
Mesmo assim, Júlio Prestes venceu as eleições, em março de 1930. Mas jamais tomou posse, porque a Revolução de 1930, em outubro, enterrou a República Velha, que ele representava, e iniciou a Era Vargas.
Simões Lopes e seu filho foram inocentados naquele mesmo histórico 1930. A corte julgou que eles agiram em legítima defesa.
Já Luís foi um dois principais assessores do novo presidente. Tornou-se próximo de Getúlio. Até demais. Sua esposa, Aimée Sotto Mayor, teve um caso com o também casado Vargas, que caiu vítima de “uma paixão alucinante”, em suas próprias palavras.
Luís seguiria trabalhando com Getúlio. Exerceu diversos cargos, entre eles presidente da recém-criada Fundação Getúlio Vargas, em 1944. Morreu em 1994.