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sábado 24 de agosto de 2024 às 10:22h

Anos de Getúlio Vargas foram ‘embrião da polarização’, diz biógrafo

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Figura popular da cultura tradicional do Rio Grande do Sul, Teixeirinha (1927-1985) gravou a música “24 de Agosto” em 1962. Era uma homenagem a Getúlio Vargas, também gaúcho, conforme Naief Haddad, Folha de S. Paulo, que havia cometido suicídio oito anos antes, na data que dá nome à canção.

“Com saúde, ele venceu guerra e revolução / Depois foi morrer a bala pela sua própria mão”, diz um dos trechos.

Getúlio Vargas em sua fazenda em Itaqui (RS), no final dos anos 1940
Getúlio Vargas na sua fazenda em Itaqui (RS) no final da década de 1940 – Reprodução/Fundação Getulio Vargas/CPDOC

Com rimas pouco inspiradas, longe do melhor do repertório de Teixeirinha, essa música não tem resistido bem à passagem do tempo, ao contrário da data em si, que está na memória daqueles que se interessam pela história política do país.

A morte do presidente, que completa 70 anos neste sábado, inspirou autores como Rubem Fonseca (“Agosto”) e Jô Soares (“O Homem que Matou Getúlio Vargas”) em meio a outras tantas produções culturais, jornalísticas e acadêmicas sobre o episódio.

Getúlio chegou ao poder federal por meio da Revolução de 1930, quando assumiu a chefia do governo provisório. Quatro anos depois, quando endossado pela Assembleia Constituinte, tornou-se presidente da República.

Em 1937, tramou um golpe e exerceu a autoridade como lhe convinha, dissolvendo o Congresso e os partidos. O presidente deu lugar ao ditador no período que ficou conhecido como Estado Novo e se estendeu até 1945, quando Getúlio renunciou. Acabava, então, sua primeira fase no Palácio do Catete.

A segunda parte foi mais curta. Começou no início de 1951, depois de ser eleito pelo voto popular, e teve seu desfecho em 24 de agosto de 1954, quando Getúlio atirou no próprio peito com um revólver calibre 32.

Pijama de seda que Getúlio vestia quando se suicidou, em 1954, o revólver usado e o projétil; as peças estão expostas no Museu da República, no Palácio do Catete, sede do governo federal até 1960 – Museu da República/Divulgação

Foram, portanto, mais de 18 anos no poder. Como os versos da música de Teixeirinha, os debates da era Vargas ficaram datados?

Não, segundo Lira Neto, autor da trilogia “Getúlio”, a principal biografia do líder gaúcho. Para o jornalista, os temas políticos e econômicos daquela época nos ajudam a entender o Brasil de 2024.

“São as mesmas questões que estão na pauta do dia. Estado máximo, Estado mínimo, reforma da Previdência, banco de fomento. Onde está a raiz disso tudo? Getúlio. O modelo da CLT é sustentável? Deve ou não ser flexibilizado? Foi ele quem instituiu a CLT”, lembra. “Essa polarização na política a que nós assistimos também tem origem naquela época.”

De acordo com Lira, aquele período viu surgir “o embrião de uma polarização que foi se radicalizando. Mais tarde, logicamente, tomou uma proporção avassaladora”.

Getúlio não pertencia à esquerda, era um “anticomunista ferrenho”, avalia o biógrafo. Nas décadas de 1930 e 1940, a aposta na intervenção do Estado na economia aproximava o governante dos grandes regimes totalitários da época, à direita e à esquerda –”principalmente à direita”, segundo Lira.

Nos anos 1950, porém, a Guerra Fria revirou as peças do xadrez ideológico.

“Ideias como a de uma economia planificada passaram a ser associadas a um viés de esquerda, e muita gente passou a vê-lo como alguém que se aproximava do regime soviético. Mas era o mesmo Getúlio, que manteve a coerência.”

Na oposição, estava a UDN (União Democrática Nacional), partido de orientação conservadora cujo representante de maior projeção era o jornalista Carlos Lacerda. “O espírito udenista existe até hoje: o patriotismo, o moralismo, a indignação seletiva. Esse é um discurso que se recicla, mas a base é a mesma”, afirma.

O biógrafo ressalta a capacidade de Getúlio de lidar com os meios de ampla difusão. “Foi o primeiro político brasileiro a usar [com eficiência] o rádio como um veículo poderoso de comunicação. E o rádio era para a época o que as redes sociais são para os dias de hoje.”

Pouco depois das 8h30, o barulho do tiro foi ouvido no Catete e, nas horas seguintes, o suicídio de Getúlio dominou a programação das principais rádios do país. Estima-se que em torno de 100 mil pessoas tenham participado do cortejo fúnebre no dia seguinte.

Milhares de pessoas acompanham o cortejo fúnebre do presidente Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro – Acervo UH/Folhapress

Antes daquele mês de agosto, o país já não vivia dias tranquilos. Getúlio enfrentava greves e indicadores econômicos preocupantes.

Em entrevista à Folha em 1978, Tancredo Neves lembrou esse momento, em meados de 1954, quando era ministro da Justiça do governo Getúlio. “Os norte-americanos decidem desestabilizar o regime. Usam as manobras clássicas. Era preciso fazer o cerco econômico para promover a inflação, um dos grandes fatores de desordem política. Como o fazem? Cortam a importação de café. Somos levados a emitir, para suprir a falta de exportação. Em junho e julho, depois de uma continuada redução dos embarques, os EUA não nos compram uma saca de café”.

Além disso, Getúlio tentou mais de uma vez fazer alianças com a oposição, mas não obteve êxito. Iniciativas de impacto, como a duplicação do salário mínimo, tampouco lhe asseguraram a estabilidade no comando do país.

Em agosto, um cenário que exigia atenção deu lugar a uma crise grave. Em 5 de agosto daquele mês, aconteceu o atentado contra Lacerda, que sofreu um ferimento no pé. O major Rubens Vaz, que o acompanhava, foi atingido por dois tiros e morreu.

O jornalista Carlos Lacerda, que governou a Guanabara de 1960 a 1965 – Reprodução

A participação como mandante do crime de Gregório Fortunato, chefe da guarda palaciana, logo ficou evidente. Também surgiram suspeitas de autoria intelectual envolvendo Benjamim Vargas, irmão do presidente.

As reações foram enfáticas, a começar pela cúpula das Forças Armadas, que já vinha dando sinais de insatisfação com o presidente. Ao fim de uma reunião na madrugada de 23 para 24 de agosto, Getúlio decidiu se licenciar do cargo. Não seria suficiente, já que os militares exigiam a renúncia definitiva.

Para Lira, há pelo menos dois outros pontos na conjunção de fatores que levou ao suicídio de Getúlio.

O primeiro é de ordem familiar. Uma reportagem publicada nos dias seguintes ao atentado da rua Tonelero, como o episódio ficou conhecido, mostrou que Maneco Vargas, filho de Getúlio, havia vendido uma fazenda da família a Fortunato, que a adquiriu graças a um empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ex-ministro do Trabalho.

“Getúlio sabia que o chefe da segurança não tinha condições financeiras para comprar essa fazenda. E o negócio se deu por um empréstimo em um banco oficial, intermediado por um ex-ministro. Para o presidente, era um favorecimento incompatível com o seu padrão moral”, diz Lira. “Esse fato o tirou da sua decantada frieza.”

Por fim, há uma marca da personalidade de Getúlio. Em várias passagens da sua trajetória política, registradas em seus diários, ele citou a possibilidade de recorrer a um “sacrifício pessoal”, um eufemismo para o ato de tirar a própria vida. Acreditava que essa seria uma solução nobre para preservar sua honra.

Naquela manhã, há 70 anos, saiu da vida para entrar na história, como está no parágrafo final da sua carta-testamento.

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