quarta-feira 12 de fevereiro de 2025
André dos Santos, brasileiro deportado, durante chegada em Belo Horizonte nesta sexta. — Foto: Henrique Campos/TV Globo
Home / NOTÍCIAS / Animais, anéis, documentos: brasileiros deportados dos EUA deixam tudo pra trás e se queixam de falta de regras claras
quarta-feira 12 de fevereiro de 2025 às 07:46h

Animais, anéis, documentos: brasileiros deportados dos EUA deixam tudo pra trás e se queixam de falta de regras claras

NOTÍCIAS


“Eles não estão nem aí com o que você construiu no país. Até mesmo o animal de estimação ficou para trás.”

Esse é o relato do tratorista André dos Santos, de 26 anos, um dos deportados vindos dos Estados Unidos no segundo voo de brasileiros que chegou a Belo Horizonte (MG) na noite da última sexta-feira (7) (leia mais abaixo).

Além de Foggy, um furão de 1 ano, André deixou para trás uma casa recém mobiliada na cidade de Needham, no estado de Massachusetts.

“A esposa ficou e está cuidando dele para mim. Se não fosse ela, ele [Foggy] estaria passando fome. É muito triste. Ela está ajeitando tudo para vir, peço a Deus que ela não seja pega”, desabafa.

Nos Estados Unidos, André trabalhava com caminhão de guincho cerca de 14 horas por dia, todos os dias da semana, para conseguir garantir a renda que precisava.

Até que, em novembro do ano passado, quando estava indo ao banco, foi preso pela Imigração e Alfândega dos EUA (ICE). Passou cerca de dois meses e meio detido.

André conta que não pensou em reaver os itens, por causa do alto custo do transporte e da burocracia do trâmite.

Entre esses órgãos procurados estão Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Justiça, Ministério dos Direitos Humanos e a Polícia Federal, mas recebeu pouca ou nenhuma informação sobre o que ocorre com esses bens.

Mas o que acontece com os bens que ficam nos Estados Unidos? O portal g1 entrevistou especialistas em direito de imigração e que acompanham o tema, além de órgãos oficiais.

Interlocutores do Itamaraty informaram que a responsabilidade pelos bens é de exclusividade dos deportados e que o órgão não tem qualquer ingerência nesse contexto.

Já os especialistas informaram que, geralmente, os itens ficam perdidos, uma vez que a guarda deles ou as providências ficam a cargo dos próprios imigrantes, mas que há possibilidade de resolver alguns casos à distância (entenda mais a seguir).

Casa recém mobiliada do deportado André nos Estados Unidos — Foto: Arquivo pessoal
Casa recém mobiliada do deportado André nos Estados Unidos — Foto: Arquivo pessoal

 Caso parecido ao de André aconteceu com o bancário Pedro Henrique Torres, de 26 anos, e a esposa dele Camila Lopes Torres, de 27 anos. Pedro sequer conseguiu levar uma mala de mão ao ser deportado.

Entre os bens deixados por ele nos Estados Unidos estão documentos pessoais, o celular e itens de valor sentimental, como as alianças de casados, dadas a ele como herança pela avó, antes de ela falecer.

“Chegamos aqui sem nada, somente com o passaporte e o telefone da minha esposa. Chegamos sem dinheiro, chegamos sem poder comunicar com a minha mãe”, conta.

Pedro afirma que foi o único brasileiro deportado nesse último voo que não conseguiu embarcar com os pertences.

Ainda segundo ele, os cartões de débito e crédito, a certidão de casamento e também uma correntinha de ouro que ele tinha dado de presente para a esposa também ficaram.

“A minha aliança foi a minha avó que deixou pra mim, deixou para que a minha mãe me desse quando eu fosse me casar”, conta o bancário. “Eu vi a minha bagagem, vi tudo, assinei papeis e o pessoal foi levando. Quando chegou na última detenção, antes de eles me deportarem pra cá, eles falaram que não estavam achando os meus pertences lá.”

Pedro relata ainda que ele e a esposa foram detidos nos Estados Unidos no momento em que buscavam dar entrada no pedido de asilo.

E que, em vias de serem encaminhados para o Brasil, conseguiu que os agentes da Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) anotassem os itens perdidos para que, se achassem, enviassem para um primo lá nos Estados Unidos.

Segundo Pedro, os agentes deram duas opções a ele: ser deportado logo ou ficar mais 15 dias preso esperando pelo próximo voo enquanto os agentes procuravam os pertences, mas sem garantia.

“Eu acabei vindo sem nada porque minha esposa também estava no voo e eu não tinha contato com ela para explicar a situação, eu não ia deixar ela vir sozinha”, argumentou Pedro.

Ao chegar no Brasil, o bancário foi orientado pela equipe de assistência social a enviar um e-mail para o Escritório de Representação do Ministério das Relações Exteriores em Minas Gerais, para a Polícia Federal e para a Embaixada dos Estados Unidos para tentar reaver os itens.

Em resposta ao e-mail, onde ele descreveu todos os itens deixados, nesta segunda (10), o Escritório do MRE em Minas informou a ele que a Divisão de Assistência Consular (DAC) do Ministério das Relações Exteriores já está ciente do caso para tomar as devidas providências.

E-mail trocado entre Pedro e a unidade do MRE em Minas Gerais. — Foto: Arquivo pessoal

E-mail trocado entre Pedro e a unidade do MRE em Minas Gerais. — Foto: Arquivo pessoal

Itens ficam perdidos

Desde 2023, o professor de pós-graduação de geografia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais Durval Magalhães, acompanha a situação dos deportados brasileiros no estado. Ele chefia um projeto de pesquisa sobre o tema.

Magalhães afirma que, de acordo com relatos, os bens dos deportados geralmente ficam perdidos. No entanto, o especialista destaca que não há informações muito concretas sobre as providências tomadas pelos dois países.

“Normalmente, as pessoas nos indicam que perderam tudo e vieram com a roupa do corpo se o processo de deportação for rápido”, menciona.

“O que tem sido comentado é que as pessoas que acreditam estar em risco de deportação estão buscando contar com apoio de pessoas que poderão representá-las no país, principalmente no caso de tutela de filhos menores”, completa.

A conselheira federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), especialista em Direitos Humanos, Sílvia Souza, ressalta que é preciso entender, em um primeiro momento, que a pessoa deportada não está sofrendo uma sanção penal, mas, sim, uma sanção administrativa.

Sílvia, contudo, afirma que não existe nenhum tratado ou convenção sobre os direitos da pessoa deportada e que acordos de organismos internacionais ligados aos direitos humanos têm poucas chances de prosperar nos Estados Unidos, já que ele não é obrigado a aceitar a jurisdição desses órgãos.

“A deportação tem que observar os princípios basilares da civilização atual, embasados na Declaração dos Direitos Humanos: dignidade, integridade física, assistência do consulado, direito de informação de como o processo funciona no seu idioma”, afirma.

“Quanto a possibilidade de reaver os bens que ficaram nos Estados Unidos, o governo americano não se responsabiliza pelos bens particulares das pessoas que ficaram lá. Essas pessoas, elas terão que buscar ajuda de conhecidos no país ou de empresas que fazem isso, ONGs que podem providenciar a remessa dos seus bens para cá”, esclarece.

A conselheira exemplifica ainda que, se esses bens forem saqueados, como casa e carros, o governo americano não pode ser responsabilizado.

“É uma situação muito delicada, porque existe um custo embutido nesse processo, por exemplo, se ela contratar uma empresa particular que ofereça serviço de assistência jurídica e de assistência para, por exemplo, enviar valores financeiros, vender bens móveis e imóveis”, pondera.

Dados do instituto Pew Center de 2022 estimaram que 11 milhões de imigrantes ilegais vivem no território americano sendo que, desse total, 230 mil seriam brasileiros.

Carros, imóveis e contas bancárias

A professora da Faculdade de direito da Universidade de Brasília (UnB) Inez Lopes, por sua vez, analisa a questão dos bens dos deportados como um caso fortuito, de difícil previsão e igualmente delicado.

Nesse contexto, ela explica que, embora os bens pertençam à pessoa deportada, como conta bancária, veículos e itens pessoais, não existe regra explicita com relação aos direitos de pessoas deportadas.

“O Estado tem o direito de tirar essas pessoas do país porque elas estão irregulares e, assim, não se concede o direito de tirar os bens”, afirma. “Mas, quando a gente tem uma visão da dignidade da pessoa humana, o Estado americano deveria assegurar o direito de propriedade desses bens, mas pelos relatos não é isso que acontece”, prossegue.

O fato de os Estados Unidos não fazerem parte de um sistema interamericano de direitos humanos, segundo ela, dificulta ainda mais a situação dos deportados. A especialista sinaliza ainda que o Brasil tem um sistema mais humanizado comparativamente.

“Nos Estados Unidos, eles praticam violação de direitos humanos porque não se assegura direitos basilares como o direito de retirar os pertences. Se você desse à pessoa o direito de ter um tempo para pegar seus bens seria menos traumático”, afirma.

Inez também destaca o papel, nesses casos, da solidariedade. “Por exemplo, se em um imóvel alugado por imigrante o responsável por esse imóvel encontrar bens pessoais deixados pelo deportado e que considera importante, ele pode levar ao consulado, à embaixada mais próxima, mas será que as pessoas vão ter essa solidariedade internacional com os imigrantes?”, questiona.

A especialista frisa que em situações de dinheiro deixado em contas bancárias internacionais é possível resolver a situação à distância. O que não é permitido, segundo ela, é o banco expropriar os valores de deportados.

“O valor deixado lá vai ficar na conta eternamente se ela não buscar, mas essas coisas podem ser resolvidos à distância. O deportado sempre vai ser cliente do banco e o banco terá que continuar cumprindo com o acordo feito com o cliente”, diz. “Não pode haver confisco em caso de deportação”.

No caso de carros, a professora afirma que não é possível passar a propriedade desses bens sem autorização da pessoa, mas que, em caso de multas feitas por outra pessoa no carro de um deportado, por exemplo, não é possível responsabilizar o dono do carro pela infração.

“A responsabilidade cessa quando ele é deportado”, argumenta. “Mesma coisa se acontecer algo com o animal de estimação deixado para trás. Isso foge da responsabilidade da pessoa deportada, passando a ser do Estado americ

Existem formas de se preparar?

Em entrevista ao g1, uma socióloga brasileira e organizadora comunitária da equipe do Massachusetts Immigrants and Refugees Advocacy Coalition (MIRA) explicou que existem grupos de acolhimento que oferecem treinamentos sobre como proceder diante de um caso de deportação.

“A gente sempre está fazendo, mesmo antes desse caso das deportações em massa. A gente fala especificamente de como se preparar para um possível caso de deportação. Então, tem alguns formulários de gerenciamento de bens, de quem pode pedir falar com um contador pessoal, por exemplo, ou quem pode tomar uma decisão sobre o seu filho, caso você não esteja aqui”, detalha a profissional.

Brasileiros que estão em situação irregular no país podem procurar esse tipo de atendimento e se precaver, diante do cenário imposto pelo presidente Donald Trump.

“No site MiracleAlysia.org tem uma série de materiais, inclusive em português, contendo alguns desses formulários que tratam do plano de preparação familiar para possíveis casos de deportação”, orienta.

Segundo voo de deportados da era Trump

O segundo voo com 111 brasileiros deportados dos Estados Unidos neste novo mandato de Donald Trump pousou em Belo Horizonte por volta das 21h40 da última sexta (7).

Eles chegaram no Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins, na Região Metropolitana, em um voo da Força Aérea Brasileira (FAB).

Desta vez, os passageiros desembarcaram sem as algemas já em Fortaleza, no Ceará, mas, ao chegar à capital cearense, se queixaram que passaram até 12 horas sem comer.

Como a cidade é uma das mais próximas dos EUA, o governo brasileiro decidiu que ela seria a porta de entrada dos deportados. Dessa forma, eles ficariam menos tempo algemados, procedimento de praxe do governo americano.

Retirada das algemas

Esse foi segundo avião enviado pelos EUA com imigrantes deportados desde o início do novo governo de Donald Trump.

Nos últimos dias do governo de Joe Biden, em 10 de janeiro, um outro avião com 100 imigrantes deportados já havia pousado no Brasil.

O primeiro voo da nova era Trump, no último dia 24, chegou ao Brasil em meio a polêmicas sobre as condições as quais o grupo foi submetido ao longo do trajeto.

Houve um desentendimento com a tripulação devido ao calor, e os 88 deportados abriram uma porta de emergência e desembarcaram por uma ponte inflável ainda algemados.

Segundo a Polícia Federal, o uso de algemas em imigrantes é uma praxe em voos fretados dos EUA para repatriação, mas elas são retiradas ao pousar no Brasil, já que os deportados não são prisioneiros.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, ordenou a retirada das correntes e solicitou que os deportados fossem levados a Belo Horizonte em um voo da FAB. O Itamaraty diz que cobrará EUA por tratamento ‘degradante’

Medidas anunciadas

Nos primeiros dias de governo, Trump começou a tirar do papel promessas que fez durante a campanha presidencial.

Uma das primeiras medidas de Trump foi a assinatura de uma declaração de emergência na fronteira entre México e Estados Unidos.

O presidente anunciou que tropas do Exército e da Guarda Nacional também seriam enviadas à região para reforçar a segurança.

Além disso, agentes federais de imigração receberam poderes ampliados para deter suspeitos. A medida também facilitou a liberação de recursos para retomar a construção do muro na fronteira.

Nesse mesmo contexto, o governo americano encerrou programas que permitiam a entrada de estrangeiros por motivos humanitários.

O governo Trump também ampliou o alcance da chamada deportação acelerada, que permite expulsões rápidas de imigrantes ilegais sem a necessidade de uma audiência judicial.

Qualquer imigrante que não comprove que reside há dois anos nos EUA pode ser alvo.

Sob Biden, a deportação expressa possuía algumas limitações. Por exemplo, a medida só era adotada em todo o país para quem entrasse nos Estados Unidos por via marítima e estivesse a menos de dois anos no país.

Ainda durante o governo Biden, quem entrava por via terrestre só poderia ser alvo da deportação expressa se fosse detido a até 160 km da fronteira e estivesse no país há menos de 14 dias.

Agora, todas essas restrições foram eliminadas. Segundo o governo, a medida está dentro dos limites legais estabelecidos pelo Congresso.

A deportação expressa já foi alvo de polêmica durante o primeiro mandato de Trump. O caso chegou a parar na Suprema Corte.

Veja também

Mais de 34°C: Barra no Oeste da Bahia entre as cidades mais quentes do Nordeste; confira ranking

Cinco cidades baiana registraram temperaturas igual ou acima de 34°C nas últimas 24h, segundo o …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Content is protected !!