Por quase dois anos, Anielle Franco enfrentou praticamente todas as etapas de um caso clássico de assédio e importunação sexual. Em 2022, ainda no período de transição de governo, ouvia insinuações veladas. Mais tarde, já como ministra da Igualdade Racial, vieram as frases embaraçosas, os comentários sexistas e os convites impertinentes. Por fim, os gestos grosseiros e os toques indesejados e não consentidos. O medo, a vergonha e a sensação de impotência costumam paralisar as vítimas em situações assim, especialmente quando o agressor é alguém poderoso e dono de uma reputação considerada acima de qualquer suspeita, como era o caso de Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos. Por não saber exatamente como reagir, Anielle fez o contrário do que ela mesma aconselharia: a princípio, a exemplo da maioria das mulheres que atravessam esse ciclo sinistro, se calou. “Ficamos com medo do descrédito, dos julgamentos, como se o que aconteceu fosse culpa nossa”, reconhece ela, em entrevista exclusiva a
, da revista Veja.É a primeira vez que a ministra fala publicamente sobre os longos meses em que conviveu com o colega, que parecia ter duas personalidades. Em público, comportava-se como o professor brilhante e defensor de causas socialmente importantes. Reservadamente, agia como um predador. Anielle não consegue esconder o constrangimento ao ser instada a comentar as experiências traumáticas que vivenciou nesse período, particularmente o episódio em que o problema ganhou dimensões terríveis. As investidas de Almeida haviam atingido o ponto mais alto da escalada de baixarias quando ele, no meio de uma reunião, tentou um contato físico mais íntimo. Indignada, a ministra o chamou para conversar, falou de seu incômodo com a situação e pediu que ele parasse. O ministro reconheceu os exageros, se desculpou, mas, ao se despedir, sussurrou uma frase chula no ouvido dela.
“É importante deixar claro que o que aconteceu comigo foi um crime de importunação sexual”, diz Anielle, ao quebrar o silêncio que se autoimpôs desde que o caso veio a público. Ao mesmo tempo, adverte, logo de início, que ainda é muito difícil tratar do assunto. “A gente está falando de um conjunto de atos inadequados e violentos, sem consentimento e reciprocidade, que, infelizmente, mulheres do mundo inteiro vivenciam diariamente”, justifica. A entrevista da ministra a VEJA foi concedida na quarta-feira 2, horas depois de ela prestar depoimento à Polícia Federal, onde rememorou momentos muito difíceis de sua conturbada convivência no governo com o ex-ministro dos Direitos Humanos, demitido pelo presidente da República após o escândalo. A seguir, os principais trechos.
A senhora se sente à vontade para falar sobre o episódio que resultou na demissão do ministro Silvio Almeida? É muito difícil falar sobre isso… Ninguém se sente à vontade pra relatar uma violência. E, nesse caso, a gente está falando de um conjunto de atos inadequados e violentos que aconteceram sem consentimento e reciprocidade e que, infelizmente, mulheres do mundo inteiro vivenciam diariamente. Mas é importante deixar claro que o que houve foi um crime de importunação sexual. Fui vítima de importunação sexual. Precisamos reforçar isso para evitar que mulheres continuem sendo vítimas desse tipo de agressão. Não podemos normalizar uma situação como essa, independentemente de quem a pratique.
“Não tínhamos relação profissional até a transição do governo. Ali começaram as atitudes inconvenientes, que foram aumentando até chegar à importunação”
O que aconteceu exatamente entre a senhora e o ex-ministro? Apesar da dor, da violência e da decepção, falei todo o necessário nas instâncias devidas, conforme me comprometi a fazer. Publicamente não quero entrar em detalhes, para preservar as investigações em curso e também porque não quero repetir, repetir e repetir a violência. Traumas não são entretenimento.
Como era a sua relação com o ex-ministro? Eu o conhecia pela sua trajetória acadêmica. Não tínhamos nenhuma relação profissional até a transição do governo, em dezembro de 2022. Ali começaram as atitudes inconvenientes, que foram aumentando ao longo dos meses até chegar à importunação sexual. Por um tempo, quis acreditar que estava enganada, que não era real, até entender e cair a ficha sobre o que estava acontecendo. Fiquei sem dormir várias noites. Eu só queria trabalhar, focar na missão, no propósito e em toda a responsabilidade que se tem quando se assume um cargo como o meu. Mas não conseguia.
A senhora se arrepende de algo que fez ou deixou de fazer em relação a esse episódio? Fico me perguntando o tempo todo por que não reagi na hora, por que não denunciei imediatamente, por que fiquei paralisada. Me culpei muito pela falta de reação imediata, e essas dúvidas ficaram me assombrando. Me lembrava de todas as mulheres que já tinha acolhido em situação de violência. Mas o fato é que não estamos preparadas o suficiente para enfrentar uma situação assim nem quando é com a gente. Eu me senti vulnerável.
Por que isso acontece? Ficamos com medo do descrédito, dos julgamentos, como se fosse culpa nossa. Nos sentimos questionadas e pressionadas. Foi exatamente por esse processo que passei, mas não vou me culpar mais nem me arrepender de nada do que fiz. Agi conforme meus valores, meu caráter e meus princípios.
“Eu quis acreditar que estava enganada, que não era real, até cair a ficha sobre o que estava acontecendo. Fiquei sem dormir várias noites. Só queria trabalhar. Mas não conseguia”
Como foi para uma ministra de Estado, uma mulher empoderada, viver essa situação aflitiva? Muito difícil. Ninguém se sente à vontade ficando em silêncio em uma situação assim. Mas eu não queria a minha vida exposta e atravessada mais uma vez pela violência. Sou muito mais do que isso e me orgulho da minha trajetória. Só queria que aquilo parasse de acontecer. Como uma pessoa que sempre teve muita fé, acreditava que em algum momento aquilo acabaria e eu conseguiria seguir a minha vida.
Qual foi a sensação quando o caso foi revelado publicamente? Me senti mais vulnerável ainda. Fiquei em silêncio porque tudo aquilo era muito violento. Estava atravessada pela forma como as notícias saíram e pelo cerco dos jornalistas. Sei que vivemos nesse mundo de internet, em que tudo é muito rápido e todo mundo quer saber de tudo, mas nenhuma vítima, de qualquer tipo de violência que seja, tem a obrigação de se expor, falar quando as pessoas querem que ela fale. As vítimas têm de falar na hora em que elas se sentirem confortáveis. Vou repetir isso quantas vezes for necessário: vítima é vítima. Você fala quando se sente apta e acolhida a falar.
“Fico me perguntando por que não reagi na hora, por que não denunciei. Me culpei muito pela falta de reação imediata, e essas dúvidas ficaram me assombrando”
A senhora já tinha passado por alguma situação de assédio ou algo semelhante? Cresci vendo minha irmã e minha mãe me defenderem e se defenderem de abusadores no transporte público. Me lembro que uma vez um homem baixou as calças, em plena luz do dia, em nossa direção. Minha irmã me defendeu. Ela era a mais velha. Encostavam em mim sem nenhum pudor nem vergonha, achando serem donos do meu corpo. Na rua, em casa, no trabalho, conviver com assédio é violento demais para qualquer mulher. É um tipo de violência que machuca a gente emocional e psicologicamente. São marcas que ficam por muitos anos. Mudam a forma como a gente anda na rua, como a gente fala, se movimenta.
A primeira-dama Janja postou uma foto beijando sua testa logo após a importunação ter sido revelada. Janja é uma grande companheira de luta e desde que cheguei ao governo ela se tornou amiga e parceira. A postagem simboliza mais do que solidariedade. É uma manifestação de apoio e de compromisso com a agenda de proteção às mulheres, de tolerância zero à violência e à opressão.
O governo tem dado as respostas necessárias ao problema do assédio, que atinge milhões de mulheres todos os anos? O governo criou um programa de prevenção e enfrentamento do assédio e da descriminação para fortalecer as políticas de defesa dos direitos das mulheres. Também temos um grupo de trabalho que está tratando exclusivamente desse problema na administração pública. É um esforço que busca medidas concretas de transformação. Paralelamente, eu também ensino a minhas filhas que ninguém pode tocar nosso corpo sem autorização. Penso nisso todos os dias. É muito triste ter de falar sobre isso com uma criança, mas é necessário. Estamos falando sobre transformar uma cultura que naturaliza a violência, mudar o entendimento sobre o respeito à autonomia e à humanidade de todas nós.
Olhando adiante, o que a inspira? Poderia falar sobre muitas coisas. Mas acho que a primeira é a força e a coragem de todas as mulheres que hoje enfrentam violências em seus espaços e, mesmo assim, estão de pé. Isso me inspira.
Qual o principal desafio do governo na sua área? Sem dúvida, é definir as prioridades de um ministério responsável por políticas para 56% da população mais vulnerável do país. Temos buscado fazer avançar uma agenda propositiva para que as pessoas entendam que um país com igualdade racial é um país melhor para todo mundo. Isso por si só já é gigantesco. Ainda há muita resistência sobre nossa forma de vestir, de falar, olhares desconfiados. O Estado tem um papel central na redução das desigualdades. Uma das prioridades neste momento é garantir uma maior presença de pessoas negras na administração pública e nas empresas. O mundo está caminhando nessa direção e não podemos ficar para trás.
“Ninguém se sente à vontade ficando em silêncio em uma situação assim. Mas não queria a minha vida exposta mais uma vez por uma situação de violência”
Seguir em frente depois de experiências traumáticas não deve ser tarefa das mais simples. É bem difícil. Mas minha mãe, que perdeu uma filha, venceu um câncer e hoje trabalha dia e noite para fortalecer outras mulheres, é uma inspiração. Minha irmã, que lutou, trabalhou e conquistou um espaço de poder com uma agenda de transformação, me inspira. Conviver e acompanhar de perto o compromisso político e a dedicação do presidente Lula também é inspirador.
Desde o assassinato da sua irmã a senhora lida com a violência de gênero, e agora sofreu na própria pele o problema. Tira-se algum aprendizado disso? Sim. A violência de gênero e de raça se manifesta de várias formas e tem dimensões estruturais, com consequências diretas em nossa vida cotidiana. Existem redes, programas e políticas para combater isso, mas precisamos dar o passo mais difícil: criar coragem para romper o ciclo do silêncio, buscando ajuda ou alguém de confiança que possa nos apoiar para atravessar a situação. Espero, de verdade, que isso que estou falando ajude a fortalecer as mulheres que estejam passando por essa situação. Sei que temos condição de mudar essa realidade. Juntas, podemos agir por um projeto de sociedade em que assédios, importunações e violência não sejam mais parte do nosso cotidiano.
Publicado na revista Veja de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913