A Câmara dos Deputados recebeu no último dia 22 uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que estabelece a maior anistia da história a irregularidades eleitorais cometidas por partidos políticos, que só em 2022 receberam R$ 6 bilhões dos cofres públicos.
Assinada por 184 deputados, incluindo os líderes do governo, José Guimarães (PT-CE), e da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ), o texto proíbe qualquer punição a ilegalidades cometidas até a promulgação da PEC (incluindo o desrespeito ao repasse mínimo de verbas a mulheres e negros nas eleições), além de permitir a volta do financiamento empresarial para quitação de dívidas anteriores a 2015.
A PEC 9/2023 leva a assinatura de 13 partidos e federações, sendo que os principais são o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro (40 deputados assinam), a federação liderada pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva (33), além de PSD (33), MDB (29), PP (17), Republicanos (15) e Podemos (8).
O primeiro artigo da PEC estende para a disputa de outubro de 2022 a anistia aos partidos que não cumpriram a cota mínima de repasse de recursos públicos a mulheres e negros.
Se aprovada, a proposta consolida a total impunidade ao descumprimento generalizado dessas cotas, que entraram em vigor vagarosamente ao longo do tempo com o objetivo de estimular a participação de mulheres e negros na política.
Em abril de 2022, o Congresso já havia aprovado e promulgado uma PEC anistiando as legendas pelo não cumprimento das cotas nas eleições anteriores.
Motivada pela impunidade ou não, o fato é que partidos têm reiteradamente descumprido essas cotas. Como a Folha mostrou, as cúpulas dos três Poderes só tiveram quatro mulheres após a ditadura militar (1964-1985) e seguem masculinas e brancas até hoje.
O segundo artigo da PEC estabelece que “não incidirão sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução e recolhimento de valores, multa ou suspensão do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, nas prestações de contas de exercício financeiro e eleitorais dos partidos políticos que se derem anteriormente à promulgação desta alteração de Emenda Constitucional”.
Ou seja, uma vez aprovada a PEC, ficariam praticamente inócuas as análises pela Justiça Eleitoral das contas dos partidos relativas à aplicação do dinheiro público no seu dia a dia e nas eleições.
Há um longo histórico de malversação de dinheiro público pelas legendas e de uso para gastos de luxo, como compra de helicópteros, imóveis, carros de mais de R$ 100 mil, além de vultosos gastos em restaurantes.
Já o terceiro artigo permite que os partidos voltem a receber dinheiro empresarial “para quitar dívidas com fornecedores contraídas ou assumidas até agosto de 2015”, época em que o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu o financiamento de empresas a partidos e candidatos.
Nas minirreformas eleitorais aprovadas pelo Congresso no ano anterior a cada eleição, tem sido comum o afrouxamento de regras e da fiscalização, o que inclui em determinados momentos perdão aos que descumprem a lei —mas até agora nada foi aprovado com a magnitude que a atual proposta de anistia prevê.
A Folha procurou nesta quinta-feira (30), diretamente ou por meio de suas assessorias, José Guimarães e Carlos Jordy, os líderes do Republicanos, Hugo Mota (PB), e do PSD, Antonio Brito (BA), além dos presidentes do MDB, Baleia Rossi (SP), e do Podemos, Renata Abreu (SP), que também assinam a PEC.
Foram procurados ainda o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Rui Falcão (PT-SP), onde a PEC inicia a tramitação, e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), responsável por pautá-la em plenário caso ela seja aprovada na CCJ e em uma comissão especial.
Não houve respostas.
A reportagem procurou também outros líderes partidários para colher a opinião de cada um sobre o texto. Somente Zeca Dirceu (PR), líder da bancada do PT, disse por meio da assessoria que apoia a medida.
Parlamentar que encabeça a PEC, Paulo Magalhães (PSD-BA) assina a justificativa da proposição.
No texto, ele não faz menção à anistia geral das prestações de contas partidárias e diz que o perdão ao não cumprimento das cotas também em 2022 visa “preservar a estabilidade das eleições e garantir segurança jurídica” em decorrência, entre outros pontos, de uma suposta dúvida sobre a abrangência da regra (se nacional ou regional).
Para ser aprovada, uma PEC precisa do apoio mínimo de 60% dos parlamentares (308 de 513 na Câmara e 49 de 81 no Senado), em dois turnos de votação em cada Casa. Caso isso ocorra, ela é promulgada e passa a valer, não havendo possibilidade de veto do Poder Executivo.
O diretor-executivo do Transparência Partidária, Marcelo Issa, ressalta várias medidas que foram tomadas pelo Legislativo no sentido de flexibilizar as regras de financiamento e aplicação de recursos públicos, restringindo as prerrogativas da Justiça Eleitoral e dificultando a identificação de irregularidades.
“Essa PEC e o projeto do novo Código Eleitoral, aprovado pela Câmara em 2021, são os principais exemplos desse processo, que causa ainda mais preocupação no atual contexto global de crise da democracia”, afirma.
No ano passado, os partidos e candidatos receberam dos cofres públicos R$ 5 bilhões do fundo eleitoral e R$ 1 bilhão do fundo partidário.
“Ver uma proposta como essa é muito revoltante para a gente, que está nessa luta por mais mulheres na política”, diz Laiz Soares, cofundadora da Conecta, aceleradora de mulheres na política.
“Eu entendo o lado dos partidos, entendo que é difícil às vezes operacionalizar as candidaturas, tem vários desafios de implementação, mas eu acho que nada justifica essa anistia, acho que não é o caminho”.
Desde a apresentação, no dia 22, 10 deputadas e um deputado apresentaram requerimentos para retirar suas assinaturas da proposta, mas o regimento da Câmara não permite retiradas ou acréscimos de assinaturas após o início da tramitação da PEC —que necessita de ao menos 171 apoiamentos para ser apresentada.
A única possibilidade de arquivamento da medida, agora, é caso a maioria absoluta dos subscritores requeira a retirada da proposta.