Berlim trabalha para regular toda a cadeia de suprimentos da cânabis, desde o cultivo até o consumo, como prometido pela coalizão governamental. Mas segundo a Deutsche Welle, o processo é longo e complexo, e ativistas exigem descriminalização já.A maconha está nas bocas na Alemanha, não apenas no dia a dia, mas também na política. Do contrato de coalizão governamental dos partidos Social-Democrata (SPD), Verde e Liberal Democrático (FDP) consta, claramente: “Introduziremos a distribuição controlada de cânabis a adultos para fins recreativos em estabelecimentos licenciados”.
Para traduzir essas palavras secas em política prática, contudo, é preciso saltar numerosos obstáculos. Sob a liderança do Ministério da Saúde, a questão envolve praticamente todas as pastas do governo federal, exceto a da Defesa, como explica o encarregado federal para questões de dependência e drogas, Burkhard Blienert: “Passa pela agricultura, proteção de menores, polícia, e não para nos aspectos tributários, nem de longe.”
A inclusão de tantas instâncias torna complexo o processo legislativo: “Justamente, não é uma lei de uma única casa, mas diversos pontos precisam ser harmonizados entre si. A meta é uma construção coerente, garantindo a proteção da saúde e dos menores de idade.”
Milhões de consumidores = bilhões para o Estado
O cientista econômico Julius Haucap calcula que haja na Alemanha 4 milhões de consumidores de cânabis, a maioria apenas ocasional. “Tentamos calcular o que isso representa em termos de quantidade: partimos de um valor de mercado de 400 toneladas, o que circula entre 4 e 5 bilhões de euros.”
Somando as arrecadações de impostos e custos sociais, assim como a economia de recursos na polícia e Justiça, Haucap chegou a quase 5 bilhões de euros por ano, num parecer elaborado no terceiro trimestre de 2021 e apresentado numa conferência de especialistas, em meados de 2022.
Durante cinco dias, ele se reuniu com cerca de 200 especialistas alemães e estrangeiros, além de representantes de diversas organizações, desde o setor de saúde ao Departamento Criminal Alfandegário, passando pela Associação Alemã do Cânhamo (DHV).
Entre os presentes esteve Dirk Heitepriem, vice-presidente da Federação do Setor Econômico da Cânabis (BvCW). “O mais surpreendente para mim foi que ninguém discutiu mais sobre o ‘se’, mas só sobre o ‘como’.” Segundo ele, o intercâmbio entre os grupos “que têm interesses totalmente diversos” foi marcado por abertura, coleguismo e construtividade.
De onde vem o produto?
O processo de consultação foi também um sinal de partida para a liberalização concreta da maconha na Alemanha, seguindo um roteiro tão ambicioso quanto de final aberto, explica Heitepriem.
“O combinado é que no terceiro trimestre o governo federal aprovará pontos básicos, sobre cuja base se elabora um projeto de lei. Este irá então para o parlamento. Parto do princípio que os debates serão no ano que vem. Quando a lei será aprovada e quando entra em vigor, está nas mãos do parlamento.”
Até então, será preciso ter respondido um grande número de questões. Uma bem central é: de onde vem a mercadoria? O representante do setor vê pouca margem de escolha para o comércio internacional e a importação de países produtores tradicionais, como Marrocos ou Líbano.
“As convenções das Nações Unidas se interpõem no caminho, assim como os regulamentos europeus. Partimos do princípio que pelo menos de início vai ter que haver uma produção nacional. Para isso são necessários altos investimentos, e sobretudo um prazo de espera de um ano e meio a dois, até se disponibilizarem as capacidades de produção necessárias.”
As convenções da ONU sobre drogas também ocupam o encarregado federal Burkhard Blienert, pois “até agora, se interpretaram os acordos baseados no direito internacional no sentido de perseguir a cânabis criminalmente de forma rigorosa”.
No entanto, uma das convenções da ONU data da década de 1960, constata o político social-democrata: “Eram outros tempos. Mas se agora se quer entrar numa nova época, uma política moderna para drogas e dependência que também faça jus à política de saúde, é necessário realizar debates e discussões – também sobre como se deve entender esses acordos no ano 2022.”
Descriminalização já?
Tais debates já tiveram efeito no Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes (OICE) das Nações Unidas, o qual esclareceu recentemente que “medidas para descriminalização do consumo pessoal e posse de pequenas quantidades de drogas não infringem as determinações das convenções sobre drogas da ONU”. Ao mesmo tempo, o painel constata que a legalização de toda a cadeia de fornecimento, do cultivo até o consumidor, passando pelo comércio, extrapola o quadro das convenções.
Ainda assim, o Uruguai e o Canadá já legalizaram o comércio e distribuição da cânabis, assim como 21 estados americanos, portanto na contramão das regras internacionais, mas sem que tenha havido consequências.
Haucap diagnostica um forte movimento internacional pela legalização da erva, e como a Alemanha é o país mais populoso da Europa, seus vizinhos acompanham com grande interesse o que lá acontece. “Se a Alemanha criar um mercado legal para a cânabis, na minha opinião isso emitirá um sinal muito positivo”, avalia o economista.
Contudo, apesar de todos os sinais no sentido da legalização, a cada três minutos um consumidor de maconha cai nas malhas da polícia e da Justiça alemãs, ainda comprometidas com a velha legislação nacional sobre entorpecentes. E como pode demorar anos até lojas autorizadas poderem apresentar a erva em suas prateleiras, ativistas exigem, como primeiro passo, a descriminalização imediata do consumo, como permitem as convenções da ONU.
Sedimentando essa exigência, a estatística mais recente do Departamento Criminal Federal mostra que apenas um entre seis casos ligados à cânabis tem a ver com o comércio da droga: são menos de 30 mil, contra 190 mil “delitos ligados ao consumo”. Portanto, em vez de prender os grandes peixes do tráfico, as redes da proibição pegam os pobres maconheiros.
O político Blienert vê com olhos críticos a reivindicação de descriminalização imediata: “Eu gostaria de ter o mercado regulamentado, que envolve a descriminalização. Prefiro não separar agora elementos isolados, mas sim pensar tudo em conjunto. Queremos um resultado redondo, homogêneo.”