Enquanto os governos dos Estados Unidos e da Europa lutavam nesta semana para tirar seus cidadãos e colegas afegãos de Cabul, a Rússia foi um dos poucos países que não se mostrou visivelmente alarmado com a volta ao poder do Talebã.
Diplomatas russos descreveram os novos homens no comando da capital afegã como “pessoas normais” e argumentaram que a cidade está mais segura agora do que antes.
O presidente russo, Vladimir Putin, declarou na sexta-feira (27/8) que o controle do Talebã é uma realidade com a qual eles teriam que trabalhar.
Bem diferente da visão sobre a desastrosa guerra na década de 1980 no Afeganistão, para apoiar o governo comunista que controlava Cabul. que durou nove anos e da qual muitos russos ainda se lembram.
Palavras gentis ao Talebã
Diferentemente da maioria das embaixadas estrangeiras na capital afegã, a Rússia diz que sua missão diplomática permanece aberta e usa palavras gentis para se referir aos novos governantes.
O embaixador Dmitry Zhirnov se reuniu com um representante do Talebã 48 horas após o grupo extremista islâmico assumir o poder e declarou não ter visto nenhuma evidência de retaliação ou violência.
O representante de Moscou na Organização das Nações Unidas (ONU), Vassily Nebenzia, falou sobre um futuro brilhante de reconciliação nacional, com a lei e a ordem voltando às ruas e o “fim de muitos anos de derramamento de sangue”.
O enviado especial do presidente Putin ao Afeganistão, Zamir Kabulov, chegou a dizer que era mais fácil negociar com o Talebã do que com o antigo “governo fantoche” do ex-presidente exilado Ashraf Ghani.
Além disso, diplomatas russos afirmaram na semana passada que Ghani havia fugido com quatro carros e um helicóptero cheio de dinheiro em espécie, acusações que ele definiu posteriormente como mentirosas.
Mapeando a situação
A Rússia ainda não reconheceu os talebãs como governantes do Afeganistão, mas houve um aparente abrandamento da retórica.
A agência estatal de notícias Tass substituiu nesta semana o termo “terrorista” por “radical” em suas reportagens sobre o Talebã.
Moscou vem estabelecendo contato com o grupo há algum tempo.
Apesar de o Talebã estar na lista da Rússia de organizações consideradas terroristas e proibidas desde 2003, representantes do grupo têm ido a Moscou para dialogar desde 2018.
O ex-governo afegão apoiado pelo Ocidente acusou o enviado russo de ser um defensor declarado do Talebã e de excluir o governo oficial de três anos de negociações em Moscou. Kabulov negou a acusação e disse que eles eram ingratos.
Mas, já em 2015, ele afirmou que os interesses da Rússia coincidiam com os do Talebã quando se tratava de lutar contra os jihadistas do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico (EI).
Isso não passou despercebido em Washington. O então secretário de Estado americano, Rex Tillerson, acusou a Rússia em agosto de 2017 de fornecer armas ao Talebã — o que Moscou negou e descreveu como “desconcertante”.
O Ministério das Relações Exteriores em Moscou declarou que pediu “aos nossos colegas americanos que fornecessem evidências, mas foi em vão… Não oferecemos nenhum apoio ao Talebã”.
Em fevereiro deste ano, Kabulov enfureceu o governo afegão ao elogiar o Talebã por cumprir “imaculadamente” sua parte nos acordos de Doha e acusar Cabul de sabotá-los.
Foco na segurança regional
Apesar dos laços mais estreitos com o Talebã, Moscou por enquanto permanece pragmática, observando os desdobramentos — e, até agora, não removeu o grupo de sua lista de terroristas.
Putin disse esperar que o Talebã cumpra suas promessas de restaurar a ordem. “É importante não permitir que terroristas cheguem aos países vizinhos”, afirmou.
Os fatores-chave que definem a política da Rússia são a estabilidade regional e sua própria história dolorosa no Afeganistão. O país quer fronteiras seguras para seus aliados da Ásia Central e evitar a propagação do terrorismo e do tráfico de drogas.
Quando os Estados Unidos miraram no Talebã após os ataques de 11 de setembro e estabeleceram bases nos ex-estados soviéticos da região, a Rússia inicialmente recebeu bem a ação. Mas as relações logo ficaram tensas.
No início deste mês, a Rússia realizou exercícios militares no Uzbequistão e no Tadjiquistão, com o objetivo de tranquilizar os países da Ásia Central, alguns dos quais são seus aliados militares.
No mês passado, a Rússia obteve garantias do Talebã de que nenhum avanço afegão ameaçaria seus aliados regionais e que eles continuariam a lutar contra o EI.
A amarga memória da guerra
Moscou enfatiza que não tem interesse em enviar tropas ao Afeganistão — e não é difícil entender por quê.
A Rússia lutou em uma guerra sangrenta e, muitos diriam, inútil no Afeganistão nos últimos anos da União Soviética na década de 1980.
O que começou como uma invasão em 1979 para apoiar um regime amigo durou nove anos e custou a vida de milhares de soldados soviéticos.
Isso transformou a então União Soviética em pária internacional, e muitos países boicotaram as Olimpíadas de Moscou de 1980. Acabou sendo um grande fardo para a economia soviética, que estava em declínio.
Enquanto a União Soviética estabeleceu um governo em Cabul liderado por Babrak Karmal, os Estados Unidos, Paquistão, China, Irã e Arábia Saudita forneceram dinheiro e armas aos mujahideen, militantes islâmicos que lutaram contra as tropas soviéticas e seus aliados afegãos.
Muitos dos que morreram eram recrutas adolescentes, e a guerra os fez perceber o quão pouco as autoridades soviéticas se importavam com seu próprio povo.
Acredita-se que a guerra acelerou o fim da União Soviética, pelo menos em parte, ao provocar desilusão em relação a seus governantes. A guerra terminou com uma retirada militar desonrosa em fevereiro de 1989.
Medo em relação ao futuro
A Rússia pode ter dado a impressão de que estava preparada para a ascensão do Talebã ao poder, mas alguns especialistas acreditam que ela foi pega de surpresa tanto quanto todos os outros países.
“Não podemos falar de nenhuma estratégia de Moscou”, diz Andrey Serenko, do Centro Russo para Estudo do Afeganistão Contemporâneo, que acredita que as decisões estão sendo tomadas à medida que as coisas acontecem.
“O que preocupa Moscou é chegar tarde para a remodelação da arquitetura regional.”
Outros em Moscou desconfiam do que o governo do Talebã pode fazer. Andrei Kortunov, chefe do grupo de especialistas do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, acredita que eles lutarão para controlar todo o país, especialmente o norte, e isso poderia ameaçar a Rússia e seus vizinhos.
“Talvez algumas células da Al Qaeda, talvez o Estado Islâmico, com base no Afeganistão, instigariam algumas ações na Ásia Central”, avalia.
Ele também teme uma forte deterioração da economia afegã, que por sua vez pode levar a mais instabilidade.