Vendido para ser transformado em sucata, o antigo Navio-Aeródromo (NAe) São Paulo da Marinha do Brasil ainda tem alguma chance de ser preservado. Emerson Miura, presidente do Instituto São Paulo/Foch, organização que quer transformar o porta-aviões em museu, entrou com uma ação popular na Justiça do Rio de Janeiro para impedir que o navio seja desmantelado.
Como informou o CNN Brasil Business anteriormente, o porta-aviões São Paulo foi arrematado em março deste ano por R$ 10,55 milhões pela Cormack Marítima, empresa de serviços marítimos do Rio de Janeiro que participou do certame representando o estaleiro turco Sök Denizcilik Ticaret. O leilão foi conduzido pela Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron, vinculada ao Ministério da Defesa).
“Tentamos comprar o porta-aviões em leilões anteriores, mas a Marinha não permitiu a nossa participação. Só entraram no leilão empresas que tinham como único propósito desmontar o navio. Isso traz sérios riscos ambientais. Transformar o porta-aviões em museu é a melhor solução”, disse ele, que reúne entusiastas e ex-tripulantes brasileiros e franceses que trabalharam a bordo da embarcação.
Antes de servir em águas brasileiras, o navio, construído na década de 1960, foi uma das principais embarcações da Marine Nationale, a marinha da França, onde navegava com nome Foch. O navio foi adquirido pela Marinha do Brasil no ano 2000, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por cerca de US$ 12 milhões. Em 2017, o comando naval confirmou a desativação do NAe São Paulo.
Marcelo Soares e Gisele Branco, advogados responsáveis pela ação popular que tramita na 16° Vara Federal do Rio de Janeiro, dizem haver possíveis irregularidades nas documentações de transferência do navio e a condução da compra.
“A homologação de um edital só pode ser confirmada depois que todos os prazos dos processos transcorreram. No caso, a homologação civil foi feita antes do término do prazo de recurso para a publicação do julgamento da licitação”, disse Gisele.
O processo ainda aponta que não há como saber se a empresa que arrematou o barco, a Cormack Marítima, tem condições de cumprir as normas ambientais para transportar o porta-aviões até o desmonte na Turquia, conforme os termos do edital.
“Ressalte-se que essa questão não é de somenos importância, afinal, o que estamos tratando no caso em comento é o reboque pelo oceano atlântico, atravessando dois continentes, além de percorrer quase toda a extensão do mar mediterrâneo com um navio que possui em seu conteúdo grande quantidade de amianto, se constituindo em uma potencial bomba ecológica”, cita um trecho da ação popular movida por Miura, que é ex-soldado da Força Aérea Brasileira.
A reportagem não conseguiu contato com a Cormack Marítima.
Questionado sobre a ação popular, o Centro de Comunicação Social da Marinha (CCSM) informou que não tinha nada a declarar.
Sobre quando o navio deveria deixar o Brasil rumo ao desmonte na Turquia, a Marinha informou que inicialmente, o prazo para retirada era 3 de agosto. “Posteriormente, a data foi transferida, por solicitação do arrematante, pela Comissão de Fiscalização do Comando da Força de Superfície (ComForSup), para 1º de novembro de 2021. Portanto, a Emgepron tem apenas o conhecimento do novo prazo informado.”
Casco para reciclagem
Em termos técnicos, o NAe São Paulo já não é mais um navio ou um porta-aviões, mas sim um “casco”. Antes de ser negociado, a embarcação passou pelo processo de desmobilização, que consiste na retirada de equipamentos e outros itens que ainda podem ser reaproveitados.
Em junho, a Marinha do Brasil informou ao CNN Brasil Business que a embarcação foi desativada “em função do grau de obsolescência de seus equipamentos e dos elevados custos e riscos de um processo de modernização”. O barco está atracado no Arsenal da Marinha na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro.
Sem condições de ser modernizado ou revendido para outro país, o porta-aviões foi oferecido no mercado para ser transformado em sucata. A Marinha também descartou a ideia de transformar o navio em museu “devido a custos e riscos envolvidos”.
Segundo os termos da alienação do casco, o comprador deve garantir que ele será reciclado de forma segura e ambientalmente adequada, respeitando as resoluções da Organização Marítima Internacional (IMO) e da Convenção de Basileia, que trata do controle e movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos.
O desmonte correto do navio é uma exigência da França, antigo dono do porta-aviões. Uma cláusula no acordo de venda define que a embarcação, ao final de sua vida útil, deve ser desmantelada de forma segura e respeitando o meio ambiente, caso esse seja o seu destino. Além disso, por exigência dos franceses, o serviço de desmanche do barco deve ser realizado exclusivamente por estaleiros de reciclagem credenciados pela União Europeia.
Esse detalhe no contrato impede o porta-aviões desativado de ser enviado para os desmanches de navios na Ásia, que não possuem as certificações ambientais da UE. A região mais notória nesse tipo de atividade fica em Alang, na costa oeste da Índia, onde velhas embarcações são desmontadas em condições precárias.
Segundo estimativa da ONG internacional Shipbreaking Platform, que monitora o desmanche de navios e seus resíduos tóxicos, o NAe São Paulo pode conter 900 toneladas em materiais tóxicos.
Alang, por sinal, foi o destino final do NAeL Minas Gerais, o primeiro porta-aviões da armada brasileira (adquirido de segunda mão do Reino Unido em 1956), após mais de 40 anos de serviços prestados. “Já perdemos o Minas Gerais. Não podemos perder o São Paulo. É um navio histórico para história naval e para a Marinha do Brasil. Temos plenas condições de transformar o porta-aviões em museu, sem nenhum risco ambiental”, disse Miura.
O processo do ex-militar que tenta preservar o barco menciona que “a França já permitiu o seu desmantelamento, mas nunca impediu que o navio possa se tornar um museu, um polo de atividades culturais, ou que tenha qualquer outra destinação”.
Museu flutuante, mas longe do Brasil
Porta-aviões desativados e convertidos em museus flutuantes são atrações famosas nos Estados Unidos, como o Intrepid Museum Sea, estacionado na Ilha de Manhattan, em Nova York. Tal como o exemplo americano, o plano de Miura para o NAe São Paulo prevê áreas de exposição de aeronaves, restaurantes, salas de aula, entre outras atividades.“Temos parceiros para viabilizar todo o projeto, desde a compra do casco, o transporte, adaptação, etc. Só não temos o porta-aviões. Mas aqui no Brasil vai ser muito difícil, talvez impossível. O plano agora é criar o museu em outro país. Há um investidor estrangeiro interessado no navio e montar o museu”, disse Miura.
Maior navio de guerra do Hemisfério Sul
Quando ainda estava ativo, o São Paulo era o porta-aviões mais antigo do mundo em operação. Também é dele o feito de ter sido o maior navio de guerra que navegou com a bandeira de uma nação do Hemisfério Sul, com 32,8 mil toneladas de deslocamento e 265 metros de comprimento.
A embarcação foi lançada ao mar em 1960 e serviu a marinha da França com o nome Foch de 1963 até o ano 2000. Com a identidade francesa, a embarcação atuou em frentes de combate na África, Oriente Médio e no leste europeu. Era um porta-aviões de formato clássico, com sistema de lançamento de aeronaves por catapultas e cabos de frenagem para pouso.
Com a Marinha do Brasil, a embarcação teve uma carreira curta e conturbada, marcada por problemas mecânicos e um grave acidente com três vítimas. Devido a esses percalços, o porta-aviões passou mais tempo parado em manutenção do que navegando, enquanto serviu no litoral brasileiro.
De acordo com dados da Marinha, o São Paulo permaneceu 206 dias no mar, navegou por 54.024,6 milhas (85.334 km) e realizou 566 catapultagens de aeronaves. A principal aeronave operada na embarcação com a bandeira do Brasil foi o caça naval AF-1, designação nacional para o McDonnell Douglas A-4 Skyhawk, hoje operado a partir de bases terrestres.