Três décadas após a eleição de Fernando Collor à Presidência da República, quem busca ocupar o mesmo cargo ainda tem dificuldades para tratar e se posicionar sobre o aborto, tema recorrente nos pleitos desde 1989. A interrupção da gravidez é assunto segundo o Estadão, a ser evitado por um candidato para não afugentar potenciais eleitores.
Neste ano, a campanha nem sequer começou, mas o assunto já foi usado para acentuar a polarização entre bolsonaristas e petistas. Não por acaso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi alertado por aliados para medir as palavras após sinalizar a intenção de discutir a atual legislação.
“O aborto deveria ser transformado em uma questão de saúde pública e todo mundo ter direito e não ter vergonha”, disse o petista em evento recentemente. Hoje, há liberação para casos de risco à vida da mãe, estupro e anencefalia do feto – esta última por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2012.
A declaração dada por Lula, no entanto, não segue a postura adotada por ele ou pela ex-presidente Dilma Rousseff no período em que o PT governou o País. Nenhum dos dois incentivou debates mais amplos ou propôs alterações na lei.
Na eleição de 2010, Dilma teve de recuar depois da repercussão negativa de seu programa inicial de governo, no qual defendia a legalização da interrupção da gravidez. Chegou a enviar uma carta a igrejas cristãs para afirmar ser contra o procedimento. Comprometeu-se ainda a não tentar modificar a legislação.
Tudo igual
De lá para cá, candidatos à Presidência da esquerda à centro-direita evitaram se comprometer com a questão nos últimos anos. Marina Silva (Rede), por exemplo, defendeu a realização de um plebiscito; Fernando Haddad, candidato do PT em 2018, repassou a responsabilidade ao Congresso; Aécio Neves (PSDB) e José Serra (PSDB) limitaram-se a dizer que são contra. Católico, o médico Geraldo Alckmin (PSB), hoje pré-candidato a vice de Lula, nunca debateu o aborto à luz da saúde pública.
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2016 pelo Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB), mais de meio milhão de mulheres recorrem à prática todos os anos no Brasil e quase metade delas vai parar no Sistema Único de Saúde para complementar o procedimento – no primeiro semestre de 2020, o SUS atendeu quase 90 mil mulheres em razão de abortos malsucedidos.
Para a psicóloga Rosângela Talib, mestre em ciências da religião, existe uma “política negacionista no Brasil” quando se trata de aborto. “É uma prática que só ressalta as desigualdades sociais. Hoje, apenas 3,6% dos municípios brasileiros têm condições de realizar o aborto legal.”
De acordo com a jurista Flavia Piovesan, ex-vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Países Americanos (OEA) e ex-secretária de Direitos Humanos do governo Michel Temer (MDB), “a ilegalidade do aborto leva à clandestinidade, que, por sua vez, leva à insegurança e à morte seletiva de mulheres notadamente de baixa renda e alta vulnerabilidade”. “O aborto é doloroso em qualquer circunstância, mas o Estado deve se guiar por uma razão laica e secular.”