Nos doze meses que ficou fora do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro (PL) atravessou um oceano de desventuras: foi a inspiração do vandalismo institucional de 8 de janeiro, perdeu os direitos políticos por oito anos no primeiro de uma dúzia de processos que podem tirá-lo das eleições para sempre, investigações mostraram o seu envolvimento segundo o colunista Thomas Traumann, da revista Veja, em uma mal explicada venda de joias presenteadas pelo reino da Arábia Saudita, seu assessor mais direto fechou um acordo de delação premiada aprovado pelo STF, a oposição se dividiu e parte já integra o governo Lula, sua opinião foi ignorada nas votações no Congresso, sua militância foi incapaz de organizar uma manifestação popular e a candidatura oposicionista em 2026 é discutida como se sua opinião fosse desimportante. E, apesar de tudo, com ou sem Bolsonaro, o antipetismo segue forte.
Três pesquisas divulgadas nesta semana mostram as dificuldades do governo Lula em avançar sobre o eleitorado que votou em Bolsonaro em 2022 e a resiliência do antipetismo. A Genial/Quaest mostrou que 45% dos brasileiros acham que o país está indo na direção certa, enquanto 43% acham que vai no rumo errado. É como se existissem dois Brasis: 79% dos eleitores de Lula acham que o país vai melhorar e 81% dos eleitores de Bolsonaro acham que vai piorar.
Os dois grupos enxergam um futuro diferente e discordam também sobre o passado: para 53% dos eleitores de Lula, a economia melhorou no último ano. Para 64% dos bolsonaristas, piorou. Os dois grupos seguem do mesmo tamanho que em 2022: apenas 7% dos lulistas e 6% dos bolsonaristas se arrependem do voto no ano passado.
Apesar do tom governista a favor de uma reconciliação nacional, inclusive com uma campanha publicitária bem planejada, 58% dos eleitores da pesquisa Genial/Quaest consideram que o primeiro ano do governo Lula ampliou a divisão no país. O grupo dos eleitores que consideram o governo Lula regular, o alvo de todas as campanhas do governo, é ainda mais duro: 64% acham que o governo ajudou a desunião. Mesmo entre os eleitores de Lula, 31% acham que o governo acirrou a polarização. Entre os bolsonaristas, isso é quase unanimidade: 89%.
No Datafolha, a solidificação do quadro é explicada em uma pergunta que pediu aos eleitores para se definirem politicamente em escala de 1 a 5, em que 1 significa ser bolsonarista e 5, petista. O resultado foi que 25% se colocam na escala mais extrema do bolsonarismo (mesmo índice de dezembro de 2022), e 7% se posicionam na posição 2 (igual à pesquisa anterior). 30% se colocam na posição mais extrema de petismo (ante 32% em dezembro de 2022), e 10%, na posição 4 (eram 9% no final do ano passado). No meio da tabela, estão 21% (em dezembro de 2022 eram 20%). Em um ano, as mudanças foram cosméticas.
A pesquisa PoderData foi a primeira a detectar um saldo negativo para o governo entre os que o consideram ótimo e bom (32%, 4 pontos percentuais a menos que em setembro) e ruim/péssimo (35%, mesmo índice da pesquisa anterior). Embora se trate de oscilação na margem de erro, este é um sinal que deve ser olhado com lupa nos próximos meses. A boa notícia para o Palácio do Planalto na pesquisa PoderData é que 49% acham o governo Lula melhor que o de Bolsonaro e 38% pior.
No livro Biografia do Abismo, eu e o cientista político Felipe Nunes demos o nome de “calcificação” para este fenômeno no qual as duas grandes bolhas da política permanecem do mesmo tamanho não importam os fatos. A calcificação é resultado de um processo extremo da polarização, no qual fatores que antes podiam render enorme popularidade, como uma melhora na economia, deixam de ter tanto efeito. Esses fatores objetivos são substituídos por um debate de valores e identidades, o campo no qual os dois grupos discordam em quase tudo. Numa sociedade calcificada, um lulista ou um bolsonarista defende antes de tudo as posições do seu grupo – e essa sensação de pertencimento vale mais do que os fatos.
Pela regra da razoabilidade, o primeiro ano do governo Lula superou as expectativas. Acossado pelos vândalos de 8 de janeiro, o presidente não caiu na armadilha do pedido de ajuda militar que poderia empurrar o País a uma crise institucional. Contrariado, ele fez um acordo com o Centrão que permitiu uma maioria instável no Congresso e lhe deu mais soluções do que problemas. Depois de dois meses de discurso de palanque contra o Banco Central, o presidente entregou as rédeas da economia ao ministro Fernando Haddad com resultados efetivos. O PIB vai fechar 2023 em 3% (a previsão no início do ano girava em 0,8%), a inflação em 4,5% (era 5,3%), dólar em R$ 4,93 (era R$ 5,27%), a taxa Selic em 11,75% (era 12,25%). O déficit vai ultrapassar os R$ 200 bilhões, mas o montante inclui a bola de neve dos precatórios. A relação dívida/PIB que, segundo o mercado, iria chegar a 80% estacionou no 74%, em parte pela revisão do PIB de 2022, mas já sem a conta dos precatórios. É um saldo positivo.
O terceiro mandato de Lula começou com um slogan ambicioso e contraditório, “União e Reconstrução”. O mote simultaneamente reconhecia a divisão extremada da eleição de 2022, se propunha a reconciliar o país e defendia a restauração do status quo pré-Bolsonaro. Um ano depois a missão impossível se revelou… impossível. O Brasil de 2023 está tão dividido quanto o de 2022. Quem aprender mais rápido a conviver com essa sociedade calcificada sairá em vantagem para a disputa de 2024 e 26.
Flanco no front externo
Quando perguntados pela Genial/Quaest quais as melhores ou as piores ações de Lula no seu primeiro ano no governo, os eleitores se dividem tanto que nenhuma alternativa chega aos dois dígitos. Mas agregando as opções, fica claro que os melhores impactos vieram da área social (recriação do Minha Casa Minha Vida teve 7% de menções, aumento do Bolsa Família 7%, Bolsa para alunos não abandonarem escola 6%, volta do Farmácia Popular 6%, Programa de renegociação de dívidas, o Desenrola, 6%, etc.) e os piores, da política externa.
Chama a atenção a lista de maiores erros do governo Lula. Os três temas mais citados foram:
Viagens internacionais de Lula 5%
Não classificar o Hamas como grupo terrorista 5%
Retomar relações com Venezuela 5%
A lista prossegue com temas como controle de armas e diminuição na presença feminina no governo, mas logo depois retorna ao front externo:
Disse que EUA e Europa tem responsabilidade na guerra da Ucrânia 3%
Não fechou o acordo Mercosul e União Europeia 2%
Embora seja óbvio que exista má vontade de eleitores de Bolsonaro com a diplomacia lulista, é notável que 20% citam episódios internacionais. Nenhuma outra área do governo foi tão criticada, segundo a pesquisa. É uma percepção a ser vista com atenção.