Louvado pelo bolsonarismo, o psicólogo canadense Jordan Peterson galgou, ainda que sem querer, a posição até então ocupada por um de seus admiradores: o escritor Olavo de Carvalho, guru da nova direita brasileira. Discípulos de Olavo, como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG), fizeram peregrinação segundo Bernardo Mello, do O Globo, à palestra de Peterson no último mês, em São Paulo, onde ele apresentou seu novo livro “We who westle with God” (“Nós que lutamos com Deus”, em português). Foi a primeira vinda ao Brasil do canadense, que destilou seu repertório de citações bíblicas e reflexões que fazem fronteira com a autoajuda.
Peterson, de 62 anos, ex-professor de Harvard e da Universidade de Toronto, ganhou fama para além do seu canal no YouTube (hoje, com mais de 8 milhões de inscritos) graças à postura contra o politicamente correto, o feminismo e os direitos de pessoas transgênero. Ele já foi descrito por Olavo como alguém com “notável senso da realidade”. O guru bolsonarista, morto em janeiro de 2022, até criticava as referências teóricas do canadense, “um grande admirador de Carl Jung e Friedrich Nietzsche”. Mas Olavo, que dizia “não levar muito a sério” nem o psiquiatra suíço, criador de noções como a do “inconsciente coletivo”, nem o filósofo alemão, crítico da moral cristã, considerava que Peterson “extraía o melhor dos dois”.
Diferenças à parte, Olavo e Peterson convergiram na crítica às “pautas identitárias” e em associar tudo que dá errado à esquerda. Nas redes sociais, Olavo costumava citar aforismos de Peterson, como “nunca peça desculpas a uma multidão sedenta de sangue” ou “o homem capaz de enfrentar predadores é o que mais provavelmente atrairá as mulheres”.
As semelhanças foram mais do que o suficiente para encantar a bancada bolsonarista. Alunos aplicados de Olavo, a ponto de serem recebidos em outros tempos na residência do guru em Richmond, nos Estados Unidos, Eduardo e Nikolas mostraram também estar em dia com as lições de Peterson. Ao posar com o canadense em São Paulo, ambos citaram mantras como “arrume seu quarto” e “escolha seu maldito sacrifício”, regras ditadas por Peterson para quem deseja “ver mais claramente a verdade”. Após o encontro, o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro se referiu a Peterson como “principal influenciador vivo do ocidente”.
Tietagem em São Paulo
Nomes como a deputada Bia Kicis (PL-DF), o deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP) e o ex-coach Pablo Marçal (PRTB), pré-candidato à prefeitura de São Paulo, também fizeram fila para tietar Peterson em São Paulo. Dois dias depois, numa palestra em Porto Alegre — cidade atingida por uma tragédia climática há dois meses —, Peterson afirmou que “catástrofes são causadas por seus próprios pecados”, segundo o jornal “Folha de S. Paulo”.
Kicis se referiu à palestra do canadense como um “verdadeiro privilégio” e argumentou que ele “não cabe em nenhuma caixinha em que queiram rotulá-lo”.
— Ele é corajoso e não se dobra às imposições do politicamente correto, porque prima pela busca da verdade.
Para o psicanalista Christian Dunker, professor titular da USP, Peterson e Olavo se aproximam no apelo a um público majoritariamente masculino e branco, hoje ressentido — e até deprimido — por sentir que tem menos influência cultural e financeira do que no passado.
O canadense, porém, fura a bolha radicalizada e trafega também por frases motivacionais e por uma visão pretensamente científica da religião.
Um dos recursos que usa à exaustão é a história dos irmãos Caim e Abel — em que o primeiro, segundo a narrativa bíblica, sacrificou o segundo em vingança contra Deus, que havia recusado uma oferenda anterior. A história é o ponto de partida para Peterson argumentar que as “pessoas dispostas a sacrificar a si mesmas”, no lugar de terceiros, são os bastiões contra o “totalitarismo assassino” e a “degeneração do Estado”.
Na palestra no Brasil, ao citar a história, Peterson também associou o ressentimento àqueles que “não oferecem o melhor de si”.
— Olavo insuflava uma lógica conspiratória e se vendia como um bronco do meio digital, alguém que falava palavrão. Peterson, embora critique a ocupação de espaços na academia pela esquerda, não tem o apelo paranoico, nem se encaixa na estética do tosco. Tem credenciais universitárias e carrega uma certa polidez característica de uma direita conservadora que não tem nada de outsider — avalia Dunker.
Estudiosa da ascensão da direita brasileira e pesquisadora do Cebrap, a cientista política Camila Rocha enxerga ainda um componente emocional por trás do sucesso de Peterson. O canadense, que já revelou sofrer com vício em antidepressivos, busca se conectar com um público que, para além de conteúdo motivacional, procura “inspiração”.
— Ele se apresenta como uma figura paterna, o que de certo modo também era projetado no Olavo. Havia toda uma peregrinação de jovens para conhecê-lo, visitá-lo em sua casa — diz a pesquisadora.
‘Ficar em cima do muro’
Na vinda ao Brasil, Peterson pouco se aventurou a falar sobre questões concretas do país. O psicanalista Christian Dunker considera que, por estratégia, Peterson “mantém certo distanciamento” da política partidária.
Procurada pelo GLOBO, sua assessoria não respondeu os contatos. Em entrevista à emissora Jovem Pan, Peterson se arriscou a deixar um recado para a “geração nem-nem” brasileira — jovens que, por dificuldades de inserção no mercado formal, estão sem estudar ou trabalhar. Na resposta, disse que a estagnação “é o purgatório”, etapa fronteiriça ao inferno:
— Quando Jesus voltar no fim dos tempos, as penas mais severas serão para aqueles que ficam em cima do muro. É melhor se comprometer, ainda que com algo que você descubra ser errado. Ao menos você aprenderá o que é um erro.